INSTINTO: Os sonhos como resistência ao sistema
(Instinct) Diretor: Jon Turteltaub. Anthony Hopkins. Cuba Gooding Jr., Donald Sutherland. 123 min.
Não é fácil lutar contra o sistema, lutar sempre, ao longo de toda a vida. Opor-se de modo esporádico, protestar sazonalmente, é algo que muitos fazem. Geralmente dura pouco, não é uma oposição consistente. Perseverar em opinião contrária ao sistema, de modo sereno, trocando os gritos espasmódicos pelo labor eficaz, em atitude positiva, construindo uma realidade diferente daquela que se critica, é atributo de poucos. Talvez o mais importante seja saber o porquê do contraste, explicitar os motivos reais que nos levam a agir de modo diferente aos outros. Atuar em divergência com o sistema, sem saber por que, é irracional, e não perdura.
Não há como deixar de lado uma história já comentada, a do telefone do filósofo inglês. Tinha esse filósofo uma curiosa gravação que atendia os chamados telefônicos quando ausente. A secretária eletrônica –answering machine, em inglês, textualmente “máquina de responder”- dizia : “Isto não é uma máquina de responder; é uma máquina de fazer perguntas –questioning machine. Quem é você e o que quer da vida?” Diante da surpresa, o perplexo interlocutor ouvia alguns segundos depois prosseguir a gravação: “Não se assuste. A maioria das pessoas vêm a este mundo e vão embora, sem ter respondido estas duas simples questões”. Saber quem somos e o que queremos é condição sine qua non para atuar de modo consciente, responsável e, quando necessário, situar-se em oposição ativa e racional a um sistema.
Um amigo jornalista me advertiu sobre o filme Instinto. “Assista, vai gostar. Veja quando o psicopata lhe pergunta que é o que ele, o psiquiatra, perdeu”. Espicaçado por esta curiosidade me fiz com uma cópia do filme, e esperei a tal cena aparecer. Um psiquiatra idealista quer reformar um cientista considerado psicopata, que desistiu dos seres humanos para viver com os gorilas. Até que ponto isso seja patológico é algo muito discutível, pois, excentricidades deixadas de lado, o querer desistir da raça humana não é sensação tão alheia aos que convivemos, diariamente com o gênero do animal racional. O psiquiatra pensa estar triunfando, descobrindo a pólvora, até que o cientista o agarra pelo pescoço, e ameaça estrangula-lo. Uma surpresa, um susto, agora que tudo estava indo bem, que o louco estava sendo domesticado. Estava mesmo?
É o cientista falando; “O que perdes-te? Que é o que eu tirei de você com a minha atitude?. Escreve ou te mato”. O psiquiatra, mais assustado com o fracasso terapêutico do que com o risco de vida, escreve: perdi o controle. “Controle? –diz o louco- Você nunca controlou nada, a não ser a TV e o ar condicionado. Todos controlam tua vida. O que é que tirei de você? Escreve rápido”. Nova tentativa, e o psiquiatra rabisca “liberdade”. “Que liberdade? A de ir à academia para fazer ginástica? Você nunca teve liberdade, você vive preso no sistema. Última chance, escreve ou te mato: que é o que perdes-te, que é o que tirei de você?”. Lentamente, o psiquiatra, com pulso trêmulo escreve: “Minhas ilusões”. Excelente, agora sim: é a perda das ilusões o que nos mata, não o muito trabalho, nem a pressão do sistema, nem a incompreensão de muitos, nem o pouco retorno financeiro. O que detona o ser humano é perder, pelo caminho, suas ilusões, esvair-se na rotina, sangrar lhe lentamente, gota a gota, o seu entusiasmo.
A associação de ideais nos traz um espectro variado. Lucy e o sapo. Lucy era, no romance de Bram Stoker, uma das vítimas do Conde Drácula, que a cada manhã levantava um pouco mais fraca, pois tinha sido sangrada pelo vampiro durante a noite. Não exageradamente, aos poucos, sem reparar, em anemia progressiva. O sapo é outra história também conhecida. Está o batráquio na panela, em água gelada. Se o colocamos em água fervendo, pulará fora imediatamente, sentirá queimar. Mas se a panela é esquentada pouco a pouco, não percebe o aumento gradativo –pouca coisa- da temperatura, até morrer escaldado. Perder as ilusões –aos poucos, gradativamente, no meio da rotina, sem saber o que somos e o que queremos- fecha o prognóstico fatal. Ativar a secretária eletrônica da alma – instalar uma permanente questioning machine, é a única vacina possível contra essa doença progressiva e letal.
O filme chega ao final. O cientista é refratário a qualquer tratamento. A atitude inovadora e idealista do psiquiatra não foi suficiente para reintegrá-lo na sociedade, no sistema. Mas o jovem médico aprendeu a lição, e mais do que ajudar foi ele o ajudado. “Você me ensinou a viver de outro modo. Você me mostrou como é viver fora do sistema. E o que mais medo me dá é que vou ter que voltar para o jogo, para o faz de conta de todos os dias, para a hipocrisia que me consome. Viverei de novo tentando agradar a todos, e perdendo-me a mim mesmo”. Um lamento enorme de quem viveu por alguns momentos fora do sistema, em atitude criadora, inovadora, respirando a brisa refrescante. Algo assim como dizer que foi bom enquanto durou, me entusiasmei com o teu modo de viver, com sair do circo no qual estava preso, consegui recuperar minhas ilusões. Mas agora vou ter que voltar ao de sempre.
Esta é a realidade que apalpamos no nosso dia a dia. Este é o gênero humano do qual o psicopata quer desistir e que nos rodeia no trabalho, na rua, nas festas sociais, nas agremiações políticas, nas organizações. Uma instituição formal da mediocridade, de quem se conforma com o sistema – com o que todos fazem, um culto ao Maria-vai-com-as-outras – e são incapazes de sonhar, de sentir-se livres. Desgastam-se na rotina, perdem suas ilusões, tem medo de ser felizes. São os medíocres, os que almejam o reduzido horizonte de uma vida sem problemas, uma aposentadoria confortável, e uma casa na praia para o lazer e a velhice. São eles os gerentes do sistema, feito à sua imagem e semelhança, onde somente eles têm vez. Um sistema que não é restrito a clubes e bingos, mas que, infelizmente, atinge as instituições que deveriam gerar líderes: as universidades, as associações profissionais, o palco da vida política. Um sistema perverso que nos atinge a cada um de nós – afinal também somos o tal gênero humano!!- quando abdicamos da nossa grandeza, e as ilusões nos escapam pelos bolsos puídos pela traça da rotina. Somos cada um de nós quando desligamos a gravação da alma, que nos pergunta, uma vez e outra: quem sou e que é o que eu quero?