Thomas Hardy: “Tess dos D’Urbervilles”
Editora Pedrazul. Vitória. 2016. 465 págs.
Quando li este livro por primeira vez, há quase 30 anos, penso que cometi uma injustiça com Thomas Hardy e com a protagonista. Explico. Estava eu na época envolvido na docência na faculdade de medicina, e um dos tópicos das minhas aulas era o estudo dos temperamentos: nada mais importante para um médico do que conhecer-se para também conhecer os outros; saber navegar nos diversos modos de perceber o mundo, e de reagir perante o que o mundo nos apresenta.
Lembro perfeitamente que quando abordávamos o temperamento assim denominado nervoso, quer dizer, alguém que é por natureza pura emoção, uma antena parabólica -hoje diríamos uma fonte de 5G- que capta tudo, mas não processa nada, sempre citava Tess como exemplo desse temperamento. A frase que Hardy coloca para apresentá-la é contundente: “Nessa altura da vida, Tess Durbeyfield não passava de um recipiente de emoções ainda não afetadas pela experiência”. A definição pareceu-me tão precisa -emoções não trabalhadas- que não avalie a temporalidade, quer dizer, a referência ao momento de uma adolescente nascendo para a vida.
Hoje, releio Tess, e vejo a estatura moral dessa mulher, que cresce conforme o romance se desenvolve. Uma mulher belíssima, como escreve o autor comparando-a com as outras: “Algumas tinham olhos bonitos; outras, um nariz bonito; outras, boca e corpo bonito. Poucas, quase nenhuma, eram belas por completo”. Mas uma mulher que se posiciona, responde com decisão, bate o pé quando necessário com o interlocutor que ensaia seduzi-la: “Já passou por sua cabeça que o que todas as mulheres dizem algumas mulheres sentem realmente?”. E a experiência da qual carece no início, vai fazendo ato de presença, e conferindo-lhe maturidade, não sem o ceticismo que provoca o desengano: “Sua única ideia parecia ser afastar-se da humanidade – ou daquela fria acreção chamada mundo, tão terrível quando considerado em conjunto, mas tão comum e até digno de pena em suas unidades”. Devo por tanto desculpas a Tess e ao seu criador, e aqui as apresento formalmente.
A escrita de Hardy é cirúrgica, disseca as personagens. A família de Tess que, dito de passagem, nada ajuda no crescimento da protagonista. A mãe, que “sentia um pouco como costumava sentir-se ao se sentar ao lado de seu agora marido naquele mesmo lugar durante a corte, fechando os olhos para seus defeitos de caráter e considerando-o apenas em sua ideal apresentação como pretendente”. Alguém que não quer enxergar a realidade, e tem por objetivo casar a filha de qualquer jeito: “Essa caça ao marido indolente era um dos prazeres remanescentes de Mrs. Durbeyfield em meio à imundície da criação de filhos”. O pai, que descobre sua possível origem nobre -de Durbeyfield quer tornar-se um D’Urbervilles- tinha “fraqueza de constituição e fazia dos seus pequeno pecados, montanhas”. E uma molície notável: “Durbeyfield era o que localmente se chamava de um sujeito preguiçoso; tinha bastante força para trabalhar de vez em quando; mas esses momentos nem sempre coincidiam com as horas regulares; e, desacostumado ao trabalho, não era particularmente consistente quando força e momento coincidiam”.
Disseca personagens, e mantém a ironia britânica: “De que adiantava o sangue normando sem a ajuda do lucro vitoriano?”. E, como escritor situado em plena época vitoriana, não poupa críticas à moral da época, não isenta de hipocrisia: “Ainda que visitar os pecados dos pais sobre os filhos possa ser moralmente bom para divindades, tal medida é desprezada pela natureza humana comum; e, portanto, não oferece consolo (….) Seus corações iam ao socorro de casos extremos, quando os sutis problemas mentais dos menos desesperados da humanidade falhavam em ganhar seu interesse e atenção”.
É conhecida a destreza que Hardy tem para as personagens femininas, onde a disseção chega no detalhe: “Em razão do charme adquirido pela mulher quando ela se torna parte da natureza e não é um mero objeto posto ali como em momentos comuns. Um homem do campo é uma personalidade no campo; uma mulher do campo é parte do campo; de algum modo, desfez-se de suas próprias limitações, embebeu a essência do ambiente circundante e assimilou-se a ele”.
Quando essa habilidade é aplicada ao retrato da protagonista, assume contornos nítidos: “Ela e Mr. Clare mantinham-se ainda sobre a incerta terra entre predileção e amor, na qual nenhuma profundidade fora alcançada, nenhuma reflexão se estabelecera(..) Mas não – não eram perfeitos. E era o toque de imperfeição sobre a quase perfeição que lhe conferia a doçura, pois era aquilo que lhe dava sua humanidade (…) Sua experiência com mulheres era suficientemente vasta para que estivesse ciente de que a negativa frequentemente significava nada mais que o prefácio à afirmativa”.
Onde está o crescimento maduro de Tess, aquele que na minha primeira leitura não percebi? Na reflexão, em assimilar as vivências, aquilatando assim o caráter: “Tinham aprendido que a magnitude das vidas não está em seus movimentos externos, mas em suas experiências subjetivas”. E neste ponto Tess mostra um desempenho louvável: “As mulheres podem ser loucas, mas não chegam a ser tão ruins quanto os homens nesses assuntos”.
É o momento de se perguntar: qual foi o aprendizado na leitura -aliás, releitura- deste romance, e os comentários surgidos durante nossa tertúlia literária? O difícil tema do perdão. São quase quinhentas páginas onde o perdão é um desafio a ser conquistado com imensa dificuldade. Ocorreu-nos pensar, nessa conversa de pensadores que é a tertúlia, que a dificuldade de perdoar entranha em “congelar a imagem no tempo” de quem nos ofendeu. Explicando melhor: se nós mesmos, quando erramos, não é incomum que em menos de meia hora surja a dúvida, e até o arrependimento sereno, por que, então, mantemos a atitude do outro, do agressor, ao longo do tempo: semanas, meses, anos? Por que não lhe concedemos a possibilidade desse mesmo arrependimento?
Tema complexo e de atualidade sempre presente, porque estamos falando da condição humana. Talvez a indulgência consigo mesmo, é um bom início, algo que para Tess não foi fácil: “Ninguém culpou a Tess tanto quanto ela culpou a si mesma (…) Não tinha mais medo dele. E o motivo de sua confiança era o mesmo de sua tristeza”. Entender e aceitar a própria fragilidade para debruçar-se, compassivamente, sobre a debilidade alheia. Todo um tour de force para este mundo tão convencido de si mesmo.
Coincidentemente, na mesma semana da nossa tertúlia, tropecei com um par de escritos que apontavam ser a capacidade de perdoar um dos elementos mais divinos que o homem tem dentro de si. Somente Deus é capaz de perdoar, ou o homem, quando se aproxima dEle, do seu modo de olhar e assim ver os seus semelhantes. Thomas Hardy não chega neste nível, e ai radica talvez o seu pessimismo, como o de tantos outros: o homem que é lobo para o homem (Hobbes) ou o inferno que são os outros (Sartre). Mas, se usamos a experiência de Tess no seu crescimento maduro como pista de decolagem, temos ai um belo objetivo para melhorar -nós mesmos e o mundo- e uma ótima pauta de reflexão permanente.
Comments 2
Estou lendo Tess e sofrendo junto com ela. As ambições e insensatez da mãe de Tess me indignam, por me lembrarem de mágoas minhas. Foi bom ler seu texto e colocar no assunto esse tema tão complexo e precioso… perdão.
Conheci o romance através de uma sra.q me sugeriu a leitura.