O ESPELHO TÊM DUAS FACES

Pablo González Blasco Filmes Leave a Comment

O ESPELHO TÊM DUAS FACES (The mirror has two faces) Diretor: Barbra Streisand. Barbra Streisand, Jeff Bridges, Lauren Bacall, George Segal, Mimi Rogers. 126 min. USA 1996

O cinema tem sua magia particular. Uma magia que envolve linguagem, sentimentos, evocações e todo um festival de associação de ideias servidas a gosto de quem dirige, sempre e quando o produtor não imponha suas manias de bilheteria. Na verdade, cada diretor faz os filmes de que gosta, pinta o mundo ao seu capricho e, querendo ou não, torna-se transparente entre os fotogramas dos seus próprios filmes, verdadeiro mosaico da sua alma. Depois surgem os críticos, comentaristas e o público que interpreta e qualifica, julga e condena. Mas isso é já outra questão. O filme está lá, para quem quiser vê-lo e, sobretudo, vivê-lo. Vai muito na sensibilidade de quem assiste o poder usufruir do que é servido no celuloide. É um problema de paladar fílmico; algo que naturalmente pode ser educado, quando se possui suficiente capacidade de ressonância interior. Daí as controvérsias que as manifestações artísticas costumam suscitar; onde muitos apenas vem cores, outros distinguem figuras, e alguns identificam os sentimentos do artista. Traços pictóricos, notas musicais, versos de um poema; expressões, todas,  que são radiografia do espírito criador, para quem é capaz de captá-las.

            O cinema possui linguagem própria, como arte que é. E existem infinidade de dialetos do idioma fílmico, variações que enriquecem o vocabulário e possibilitam a expressão adequada ao momento. É como os sonetos e as odes; sinfonias, prelúdios ou árias, mas em linguagem visual. Cada sentimento exige a modalidade oportuna.

            O espelho tem duas faces é um ensaio de quem faz filmes sobre filmes, ama o cinema, e recorre, sem vergonha de mostrá-lo, a imagens e cenas de outros filmes que tem, por assim dizer, o poder de evocar com precisão o sentimento desejado. É como um apelo aos clássicos, citando autores consagrados na arte de descrever uma situação com magistral destreza. E através desse conjunto de evocações Barbra Streisand coloca a questão que ocupa o palco da sua produção: o amor que vai além do sexo.

            No diálogo com os clássicos, que transpira saudades do romantismo de outrora, Barbra faz desfilar as suas próprias lembranças em tentativa de resgate de um amor sólido, perdurável. Aconteceu naquela noite, o filme de Frank Capra que estabelece as fronteiras do cobertor -muralhas de Jericó, dizia Clark Gable- para que o sexo precoce não deturpe o amor nascente, sai em dose dupla. E Desencanto, nos compassos do concerto de Rachmaninoff, que emolduram os sentimentos confusos da moça que se apaixona pelo médico casado, na estação do trem, com um cisco no olho. Novamente David Lean, nos acordes finais de Lawrence de Arábia – que é mais longo, épico, desértico-, em tributo obrigado a um diretor que sabia como ninguém espelhar as paixões humanas…as boas e as tortas. Um grito que clama por Casablanca, que vivemos cada vez que assistimos; e as árias de Puccini – quem outro poderia ser?- que ressoam quando o namorado nos beija no meio da rua. Nessum dorma, isto é, acordem para o que quero lhes mostrar, parece dizer a diretora nas entrelinhas.

            Um diálogo com o passado, que é mais um monólogo em variações sobre o mesmo tema, por sinal apaixonante. Ou talvez uma declamação, como Hamlet, onde o “ser ou não ser”, vê-se substituído pelo “sexo ou amor”. Reflexões em voz alta, da qual participam, envolvendo-se, os que podem captar a conversa com os clássicos. Talvez por isso o filme de Barbra se presta a muitas interpretações, dependendo do nível no qual se apanhem as reflexões da diretora. É um filme em camadas, com um visual claro: a procura de um relacionamento estável entre duas pessoas maduras, para lá de quarentões. Mas a substância está no miolo, e no modo de exprimi-lo. E até, talvez, tudo não passa de uma brincadeira espirituosa de quem conhece cinema, e sabe tocar os pontos delicados da afetividade humana. Fosse pouco, faz de Lauren Bacall sua própria mãe e carrega a foto da diva nas suas peregrinações. Naturalmente uma foto antiga, da época dourada, quando, com voz de ressaca, andava às voltas com Bogey. Para os amantes da sétima arte, o filme é um prato cheio: não deixa fios soltos e, lá onde pode, engancha mais uma lembrança que estava despontando.

            O tema, por falar do argumento-recado, em si, dá pano para manga e muito têm se escrito sobre o assunto. Chesterton, que também gostava de brincar, o aborda com a sutileza do seu humor inglês. O sexo -diz- é positivo e nobre, porta de entrada para a instituição familiar, que tem, uma vez iniciada, centenas de aspectos que não são sexuais. O sexo é a porta de uma casa que compreende camaradagem, descanso, instrução, alegrias, festejos. Os românticos gostam de olhar desde a soleira; é natural, mas a casa possui perspectivas mais amplas. Há também os que nunca entram no cômodo, e ficam brincando de amor, amarrotando-se no batente. São os que, no dizer do escritor inglês, querem desfrutar várias luas de mel sem realizar nenhum casamento. Ortega, que era menos amigo de brincadeiras, comenta que se é uma bobagem afirmar que o amor de um homem por uma mulher nada tem de sexual, não é menor insensatez reduzi-lo a simples sexo. E isto é assim porque o instinto -no caso, o sexual-  tende à indeterminação, enquanto o amor governa-se pelo exclusivismo; por isso, nada imuniza tanto o homem de outras atrações sexuais, como o entusiasmo amoroso por uma mulher determinada. “A maioria não consegue chegar onde nós estamos; quando o sexo acaba, trocam de parceiro” – diz o nosso professor de matemática que, provavelmente, nunca teria lido Ortega. É o mesmo, dito  com outras palavras.

            A profundidade de abordagem vai por conta de quem assiste. E se a diretora se permite suas reminiscências e o diálogo com lembranças, nada nos impede entrar também em pessoal conversa com pensadores e filósofos, cuja leitura nutre caladamente o espírito à espera de oportunidades para desabrochar. O filme é luz verde para nosso mano a mano particular, sempre uma pista de decolagem à procura de valores implícitos. O pensamento de Gregorio Marañón vem, mais uma vez, à superfície pedindo espaço neste monólogo associativo. Comenta o médico-pensador que as crianças, as mulheres e mesmo muito homens conservam no seu íntimo como certo incômodo para a agressão sexual, para a face animal do amor. E que esse incômodo, que em modo algum impede o exercício amoroso quando a paixão está acesa, ressuma traços de desprazer quando os sentidos já estão satisfeitos. Um velho provérbio latino afirma que o animal humano sente tristeza depois de amar. E, descontentamento ou não, é talvez um dos limites que a Natureza coloca para a devassidão inútil do instinto. O homem apaixonado sabe que o amor é mais, muito mais, do que uma refrega física. E que requer, para dar continuidade à intimidade, desdobramentos maiores.

            Difícil e apaixonante equilíbrio na aventura amorosa que deve fazer questão de ir fundo na personalidade do amado, de não distrair-se com o papel de embrulho, para chegar ao miolo. Eterna questão por tantos cantada, em prosa e verso. Sacrifício necessário da paixão irracional quando se quer preservar o amor. Até Segismundo, o príncipe prisioneiro de A vida é sonho justifica seu distanciamento da bela Rosaura, porque a ama: “Rosaura, impõe-me a honra, por ser piedoso contigo, ser cruel neste momento; minha voz não te responde, para que a honra o faça; não te falo porque quero que falem no meu lugar as obras; nem te olho, porque é força, em pena tão rigorosa, que não olhe tua formosura quem quer mesmo olhar tua honra”.

            Longe voamos do espelho das duas faces. Brincadeira permitida para quem, amando também o cinema, descobre entre os fotogramas possibilidades de superação humana, de novos desafios. São essas as conquistas que estimulam a quem se sabendo de carne e osso -condição da qual não quer prescindir- aceita o duelo de escancarar as portas da matéria para chegar à liberdade da razão, onde impera o espírito. Esse é o verdadeiro trajeto do amor bem sucedido. “O amor humano, o amor do sexo -diz Gustavo Corção em As fronteiras da técnica– nasce em poesia, em encantamento, mas evolui em bem-querer mais profundo e mais obscuro, e cresce, e só pode crescer, no peregrino itinerário da obediência. Começa em visão, e progride em obscuridade para uma visão maior e definitiva.” São os perfis dessa visão que este filme singular reflete, mesmo em simples esboço, no espelho de duas faces. Uma perspectiva bifocal que faz pensar na profundidade da condição humana.

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