Albert Schweitzer: “Entre a água e a selva”.
Albert Schweitzer: “Entre a água e a selva”. Narrativas e reflexões de um médico nas selvas da África Equatorial. Ed. Unesp. 2010. São Paulo. 179 págs.
Um amigo, médico humanista, deu-me este livro de presente há já algum tempo. Agradeci e, como sempre faço, deixe ele repousar na minha estante, até encontrar o momento certo para me debruçar sobre ele. O fato, sempre encantador, de ganhar um livro, não significa necessariamente que tem de passar na frente da programação que, há muitos anos, faço das leituras que quero abordar nos próximos meses. Uma saudável quarentena na prateleira, deixa os livros mais apetitosos, faz decantar a vontade de lê-los, algo análogo ao vinho quando o deixamos envelhecer. Funcionou.
As memórias -breves, de apenas 4 anos- de Albert Schweitzer é o corpo deste livro. Quem era professor de teologia na Universidade de Estrasburgo, e músico especialista em Bach, decide, com 30 anos, estudar medicina, doutorar-se e parte com a esposa em 1913 para a Africa francófona, o Gabão, onde ficará 4 anos, praticando a medicina na selva equatorial. O trabalho notável nessa região, e as informações -científicas e também antropológicas- renderam-lhe o Prêmio Nobel a Paz em 1952.
E de fato, o que mais me impressionou foram as observações etnográficas onde revela o seu aprendizado durante a imersão na cultura africana. “Tive de aceitar, logo na primeira surpresa, a primeira aprendizagem africana: a falta de boa-fé dos nativos”. Mais do que falta de boa-fé, hoje diríamos falta de proatividade. Os nativos somente trabalham se lhes é absolutamente necessário. Vejamos este parágrafo que é contundente: “Não me sinto mais no direito de falar categoricamente da preguiça dos negros, desde que quinze nativos subiram o rio remando quase sem interrupção durante trinta e duas horas para me trazer um branco gravemente ferido. Há ocasiões em que o nativo trabalha assiduamente, mas só trabalha na medida em que as circunstâncias exigem. O filho da natureza não é nunca senão um trabalhador ocasional (…) Caso tenha aceitado um contrato e ganhado o suficiente para arranhar aquilo que tinha em vista, não verá mais motivo para continuar a sacrificar-se e voltará à aldeia, onde sempre encontrará casa e alimentos. O nativo não é preguiçoso mas sim um homem livre, daí ser um trabalhador ocasional”.
E também anota que tinha de interromper seu trabalho como médico durante algumas horas no dia, para supervisionar o trabalho dos nativos: do contrário, nada saia; não adianta dar ordens, dizer o que tem de ser feito. Se não está em cima, as coisas não funcionam. Confesso que para mim isso foi uma ótima lição de gestão: não é que os colaboradores sejam preguiçosos, é que muitas vezes perdem a perspectiva das prioridades, tem um “sistema operacional” diferente na cabeça. É preciso marcação diária, com um sorriso, e cobrando as metas. Uma de cada vez. Aí as coisas funcionam melhor. A partir dessa lição, comecei a aplicá-la no meu trabalho com sucesso. Vale tentar, ao invés de reclamar, ou de querer -sem conseguir- mudar o “sistema operacional” deste ou daquele colaborador.
Mais um aprendizado surpresa da cultura: “Caso um europeu não tome precauções, os negros o roubam conscientemente. O que não estiver baixo chave, se evapora. O nativo tem o mau hábito de deitar a mão não somente no que tem algum valor para ele, como no que o atrai naquele instante (infantil). (Por exemplo, partituras complexas desapareceram….nada de valor, mas atrai). Sensação de falta de segurança contra roubos estúpidos, não lógicos”. Inclui uma descrição do comércio de madeira, e as muitas dificuldades: tanto do cenário da selva, como da deficiência da mão de obra, nem sempre confiável. “A esperteza dos nativos em matéria de fraude no comércio da madeira atinge um grau inacreditável. Ai do comprador novato”
Mas esse vício infantil, não dispensa o senso de justiça dos nativos: “O nativo não concebe que um delito permaneça impune. Não é ânsia de contenda o que os move, mas um senso de caráter intangível da justiça que o europeu já não possui no mesmo grau. Por isso o nativo aceita a punição como algo bastante lógico, mesmo que seja, ao nosso modo de ver, desproporcional ao delito cometido. Se o culpado não for punido, tomará suas vítimas por pobres imbecis. E, ao contrário, a menor condenação injusta os deixa furiosos, não esquecerão jamais (…) O nativo, embora não consiga avaliar o esforço intelectual que representa uma conquista técnica, quando trata com o branco sente com intuição infalível se este tem personalidade e força moral. Se isso ocorrer, a autoridade espiritual é possível. O nativo utiliza o mais elementar dos julgamentos: o moral. Quando encontra a bondade unida à justiça e à veracidade, a dignidade interior por trás da dignidade exterior, então se inclina e reconhece seu mestre; quando não as encontra, permanece insolente e no fundo pensa: ‘este branco não vale mais do que eu, porque não é melhor do que eu”. Quer dizer, um julgamento próximo ao das crianças, que vem com facilidade a dimensão moral do exemplo. Como naquele conto, que somente a criança percebe “que o rei está nu”.
Temas complexos como a poligamia, onde o escritor se abstém de qualquer julgamento. Ou do álcool, uma verdadeira praga entre os nativos: “Quando estive aqui há 20 anos estas aldeias eram prósperas, e agora? Por causa da cachaça. O álcool é o adversário de todo e qualquer trabalho civilizador”. E também a antropofagia: “Difícil fazer averiguações, porque os nativos o silenciam por temor a punições. Quando alguém desaparece, pode se afirmar quase com certeza de que foi devorado”.
Também inclui aprendizados positivos que fazem pensar: “Os nativos não entendem a guerra ( a de 1914) e como não chegamos a um acordo, sendo todos brancos e tementes e Deus. Somente com o tempo se chegará a avaliar o prejuízo que a guerra causou à autoridade moral e religiosa que os brancos tinham sobre os negros (…) Os negros são mais profundos do que nós, pois não leem nenhum jornal”. Eu pensei, imagina hoje, com as redes sociais que nos tornam imbecis bem informados……felizes os nativos. E conclui: “O homem primitivo é mais bondoso do que o europeu. Com a ajuda do cristianismo podem surgir índoles de uma nobreza notável. Não sou o único branco que tem tido ocasião de se sentir envergonhado perante os nativos”
Logicamente os aspectos médicos também preenchem grande parte destas memorias. “O meu nome na linguagem dos nativos é Oganga, que quer dizer, feiticeiro. Não há outra palavra para a profissão de médico, pois os curandeiros são ao mesmo tempo feiticeiros. Meus doentes acreditam em sua lógica que que cura doenças também tem o poder de provoca-las, mesmo a distância (..) O tratamento dos cardíacos é aqui mais fácil que na Europa. Se prescrevo diversas semanas de repouso, nenhum deles me objeta que perderá seu ganha-pão ou seu emprego, pois ‘se assentam’ nas respectivas aldeias e são tratados por suas famílias”.
Schweitzer faz uma descrição pormenorizada da doença do sono, da evolução progressiva até a morte. E da luta contra a lepra, em tempos sem antibióticos, mas onde se percebe a tentativa de compensar com cuidado e dedicação exemplares. “Não digo a eles que lhes posso salvar a vida. Todos vamos morrer. Contudo poder libertá-lo de seus dias de sofrimentos, parece-me um dom supremo, sempre renovado”. Descreve também o uso de hipodermóclise para hidratar os doentes com diarreia. Algo que muitos anos depois soube que se utilizava em cuidados paliativos para os pacientes que não conseguem ingerir e onde um acesso central é descartado.
E o dia a dia na selva equatorial, onde os aspectos médicos misturam-se com os corriqueiros, não isentos de surpresas: “Num manual de medicina tropical encontrei esta frase paradoxal: Sob o sol dos trópicos é preciso principalmente tomar cuidado contra os resfriados”. Um sol que, mesmo não se notando, é implacável. A proteção é imprescindível, mesmo que pareça fraco. E continua: “É na selva que se aprende o quanto o homem é impotente em face da natureza (…) Por mais paradoxal que possa parecer, em parte alguma se está tão arriscado a morrer de fome coo no centro da vegetação luxuriante das selvas cheias de caça da África equatorial”. E a luta contra as formigas guerreiras, tremenda ameaça diária. Comer carne de macaco que é
como a do bode, mais adocicada. “Doutor , comer carne de macaco é o início da antropofagia”- disse-me um branco”.
E, já concluindo, aponta no seu relato: “A maior parte do trabalho dos médicos aqui é lutar contra doenças medonhas e horrendas que os europeus trouxeram para essa gente primitiva”. E uma advertência de grande importância, que poderia passar desapercebida: “Na África é necessário ter-se um trabalho intelectual que sustente a esfera moral. O homem culto suporta melhor a vida na selva, pois possui um conforto que os outros desconhecem (livros, música, etc.) Sente-se humano e não é corroído pelo medonho prosaísmo da vida africana”.
As missões africanas são de confissão católica ou protestante. Schweitzer move-se confortavelmente em ambos os cenários, e comenta: “A missão protestante quer formar personalidades cristãs, enquanto a católica procura formar uma igreja sólida. Para levar adiante uma obra educadora é preciso uma igreja de fundamentos sólidos, que se firme nas famílias. É o que a história de igreja nos ensina. Será que a grandeza -e a fraqueza- do protestantismo não é residir numa religião individual, ao invés, de numa igreja?? – pergunta-se.
A estatura moral deste médico e professor, ao mesmo tempo etnólogo e filósofo, vem resumida neste parágrafo que encerra nosso comentário: “Todos quantos conheceram a angústia e a dor física estão unidos no mundo inteiro por um laço misterioso. E quem se sente libertado delas e pode retornar a vida comum, não o deve fazer como se nada tivesse acontecido. Tendo travado conhecimento com o sofrimento e a angústia deve ir busca-los para ajudar o próximo, já que ele mesmo foi salvo. Essa é a confraria dos que foram marcados pela dor, e a eles cabe a iniciativa humanitária nas colônias”.
Fecho o livro, agradecido ao amigo que me presenteou, e penso que construir o verdadeiro humanismo médico implica, sim, o contato com a dor, o sofrimento do paciente que confia em nós. Mas também exige a reflexão, a leitura, o trabalho intelectual -em palavras do Schweitzer- que sustenta a fibra moral. Tanto na África, como no barulho da sociedade ocidental, que busca resultados, embebe-se da técnica, e acaba esquecendo do paciente. Sem cultura não há recurso capaz de transformar as experiências de sofrimento alheio em humanismo. A reflexão e a cultura são as enzimas capazes de catalisar esse processo.
Comments 3
Li esse livro há anos.
Você captou toda a essência dele!
Grato
Caríssimo AMIGO, fico muito feliz em saber que você gostou do presente.
Albert Schweitzer foi filho de Louis Schweitzer, cujo pai era Philippe-Chrétien Schweitzer, prefeito de Pfaffenhoffen, na Alsácia. Louis era irmão de Charles Schweitzer, pai de Anne-Marie Schweitzer, mãe do filósofo francês Jean-Paul Sartre.
Forte abraço.
Amleto Bernardi
Quanta sensibilidade e observação carinhosa quando classifica o nativo como um trabalhador ocasional e não preguiçoso.
Excelente comentário sobre as redes sociais que nos tornam imbecis bem informados.
Que experiência magnífica.
Texto e comentário sensacional.
Grata por compartilhar.