Edith Eva Eger: A bailarina de Auschwitz
Edith Eva Eger: A bailarina de Auschwitz Sextante; GMT Editores. Rio de Janeiro, 2019. 337 págs. (Título original: The Choice)
O prefácio que introduz este livro tocante, é uma ótima overture para a leitura: “A vida da Dra. Eger foi pontuada por tragédias. Ela foi presa em Auschwitz quando era apenas uma adolescente. Apesar da tortura, da fome e da constante ameaça de morte, conservou a liberdade mental e espiritual. Não se deixou abater pelos horrores que sofreu e saiu fortalecida pela experiência. Na realidade, sua sabedoria é resultado dos episódios mais traumáticos que viveu, e usar suas experiências para ajudar as pessoas a descobrir a própria liberdade. Nesse sentido, seu livro vai muito além de uma memória do Holocausto. Seu objetivo é ajudar cada um de nós a escapar da prisão da própria mente. De certa forma, todos somos prisioneiros, e a missão de Edie é nos ajudar a entender que, assim como agimos como nossos próprios carcereiros, também podemos nos tornar nossos próprios libertadores”.
A autora explicita como frequentar o passado, as experiências traumáticas, é o caminho para a própria construção. Um caminho que levou décadas para percorrer, mesmo estando em aparente liberdade e sendo uma sobrevivente: “Ao longo do tempo, aprendi que posso escolher como reagir ao passado. Posso me sentir triste ou esperançosa, posso ficar deprimida ou feliz. Sempre temos essa escolha, essa oportunidade de controle. Estou aqui, isso é agora, aprendi a repetir para mim mesma, sem parar, até o pânico começar a diminuir (…) Eu ainda não tinha percebido que meu silêncio e meu desejo de aceitação, ambos baseados no medo, eram maneiras de fugir de mim mesma. Nem que ao escolher não enfrentar diretamente a mim ou ao passado, eu ainda escolhia não ser livre, mesmo décadas depois de meu encarceramento. Eu tinha um segredo que me aprisionava”
E os desdobramentos vão muito além da sua história pessoal, são aplicáveis a qualquer um de nós, a todo momento: “Nos recusarmos a aceitar, torna-se tão intransponível quanto as paredes de tijolos e barras de aço. Quando não nos permitimos sofrer por nossas perdas, feridas e decepções, estamos condenados a revivê-las. A liberdade está em aprender a aceitar o que aconteceu. Liberdade significa reunir coragem para desmantelar a prisão, tijolo por tijolo”. E conclui de modo contundente: “Levei muitas décadas para descobrir que eu podia me fazer uma pergunta diferente. Não: Por que eu vivo? Mas sim: O que eu posso fazer com a vida que recebi? (…)Minha própria busca pela liberdade e meus anos de experiência como psicóloga clínica me ensinaram que o sofrimento é universal, mas que o complexo de vítima é opcional. Ser vítima é algo que vem de fora. Em contrapartida, o complexo de vítima vem de dentro”.
A trajetória pessoal -a liberação física, a sobrevivência, e a reconstrução como pessoa- é salpicada também de descrições tocantes. Por exemplo, o valor dos detalhes que conseguimos apreciar no meio do caos: “Mesmo no escuro do vagão de gado, o rosto dele iluminou quilômetros de cercas, quilômetros de neve. Era possível ver que os olhos dele eram gentis. Que estranho que a gentileza agora pareça um truque de luz”. Ou descrições belíssimas e também tremendas: “O que somos agora? Nossos ossos parecem obscenos, nossos olhos são cavernas inexpressivas, vazias, escuras. Rostos irreais. Unhas pretas azuladas. Somos lesões em movimento. Um desfile de zumbis em câmara lenta. Cambaleamos ao andar, os carrinhos se arrastam pelos paralelepípedos. Fila após fila, enchemos a praça da cidade de Wels, na Áustria. A população nos olha das janelas. Somos assustadores. Ninguém fala. Nós sufocamos a praça com nosso silêncio. Os moradores correm para suas casas. As crianças tapam os olhos. Passamos pelo inferno e agora nos tornamos o pesadelo de outras pessoas”
Aprende-se na leitura deste livro que a força tem de vir de dentro, do interior, não das circunstâncias. É preciso, como diz Ortega, nas suas Meditações do Quixote, redimir as próprias circunstâncias, e para isso é necessário refletir. “Não se esqueça, ninguém pode tirar de você o que você colocou em sua própria mente. Ser passiva é deixar que os outros decidam por você. Ser agressiva é decidir pelos outros. Ser assertiva é decidir por si mesma”. E exemplifica, uma vez e outra, com suas vivências passadas pela peneira da reflexão: “Meu pai, um alfaiate famoso, tirou suas medidas para um vestido certo dia, gostou de sua aparência e então mamãe optou por deixar a vida que tinha escolhido para si mesma em nome da vida que esperavam que ela levasse. Mas o que eu quero para mim? Eu não sabia. Portanto, elegi Béla como uma força a ser enfrentada. Em vez de descobrir meu verdadeiro propósito e direção, encontrei sentido em lutar contra ele, contra as limitações que eu achava que ele me impunha”.
“A autoaceitação foi a parte mais difícil da cura para mim, algo que ainda luto para realizar. O perfeccionismo surgiu na minha infância para satisfazer minha necessidade de aprovação. No entanto, esse perfeccionismo se transformou em mecanismo de enfrentamento ainda mais integrado para lidar com a minha culpa por ter sobrevivido. O perfeccionismo é a convicção de que algo está quebrado – você. Portanto, você disfarça seus defeitos com diplomas, realizações, elogios e ensaios, mas nada disso pode solucionar o que acha que está resolvendo. Ao tentar combater minha baixa autoestima, eu estava, na realidade, reforçando minha sensação de falta de valor. Ao aprender a oferecer aceitação e amor absolutos aos meus pacientes, tive a sorte de aprender a importância de me oferecer o mesmo”
“Quando você tem algo a provar, você não é livre. É mais fácil colocar a culpa em alguém ou em alguma outra coisa por sua dor do que assumir a responsabilidade para acabar com a própria vitimização. A maioria de nós quer um ditador, ainda que seja um benevolente, para poder botar a culpa e dizer: ‘Você me obrigou a fazer isso. Não tenho culpa.’ Mas não podemos passar a vida debaixo do guarda-chuva de outra pessoa e depois reclamar que estamos nos molhando. Uma boa definição de vítima é quando a pessoa mantém o foco longe dela ou quando busca alguém para culpar pelas circunstâncias atuais ou para determinar seu propósito, seu destino ou seu valor”
O cuidado dos outros, é condição de sobrevivência, eis outro ponto importante, que se relaciona com aquele pensamento tão repetido por Viktor Frankl, com quem Eger está alinhadíssima: a porta da felicidade se abra para fora e se insistimos em abrir para dentro (para nós mesmos, entenda-se) a fechamos ainda mais. Anota a autora: “Sobreviventes não têm tempo para perguntar “Por que eu?”. Para os sobreviventes, a única pergunta relevante é “E agora?”. A sobrevivência é uma questão de interdependência, não se consegue sobreviver sozinha (…) Magda perdeu a fé. Ela e muitas outras. “Não posso acreditar em um Deus que deixaria isso acontecer”, dizem. Entendo o que elas querem dizer. Mesmo assim, nunca tive dificuldade em compreender que não é Deus que está nos matando em câmaras de gás, em valas, em precipícios, em escadas com 186 degraus brancos. Deus não comanda os campos da morte. As pessoas comandam. Posso sentir que ela depende de mim para ter o próprio senso de propósito. Para ter sua razão de existir. Ao cuidar de mim, ela encontra a razão por ter sido poupada. Meu papel é ser saudável o suficiente para ficar viva, mas indefesa o suficiente para precisar dela. Essa é a minha razão para ter sobrevivido”.
E, nas suas reflexões, insiste uma e outra vez, na parte que cabe a cada um em reconstruir a sua vida, ao invés de ir despejando as culpas dos próprios traumas, nos variados culpados que a vida nos oferece: “É então que entendo o que tem me chateado. É a aparente facilidade com que meu marido deixou de lado um sonho antigo. Se algum dia Béla se sentiu angustiado por ter desistido da música, ele escondeu de mim. O que havia de errado comigo para que eu ainda tivesse tanto desejo pelo que não foi? (…) É por isso que eu me oponho à definição patológica do estresse pós-traumático, chamando-o de uma doença. Não é uma reação doentia em relação a um trauma, mas uma reação comum e natural (…) Como eu poderia ajudar as pessoas a transcender suas crenças autolimitantes e se tornarem quem elas deveriam realmente ser no mundo? Sofrer é inevitável e universal, mas a maneira como reagimos ao sofrimento varia”
É dessa atitude de onde arranca a sua terapia: “Se eu tivesse que dar um nome à minha terapia, provavelmente a chamaria de Terapia de Escolha, já que a liberdade é uma questão de escolha ( choice, em inglês) – a escolha da Compaixão, do Humor, do Otimismo, da Intuição, da Curiosidade e da Expressão. Ser livre é viver o presente”. Esse é o título original do presente livro –The Choice– talvez com menos apelo comercial que a nossa tradução ao português, mas muito mais acadêmico e profundo.
Continua a Dra. Eger elaborando o seu modelo terapêutico alinhavado com as suas próprias reflexões, com sua reconstrução: “Minhas expectativas a meu respeito eram tão altas; o medo do fracasso, tão avassalador, que eu não conseguia ver além de minha própria autorreferência para alcançar o homem que estava pedindo minha ajuda e meu amor (…) O meu sucesso profissional tinha que vir de um lugar profundo em mim – não daquela garotinha que tentava agradar os outros e conquistar aprovação, mas do meu verdadeiro eu, que era vulnerável e curioso e que estava se aceitando e pronto para amadurecer”.
Reconstrução pessoal que serve de exemplo para todos, para cada um de nós, nas prisões e campos de concentração quotidianos, que tem variadíssimas apresentações. Por exemplo, a vida laboral que, mal enfrentada, nos oprime. Eger lembra da frase na entrada de Auschwitz: o trabalho liberta. E anota: “O trabalho me libertou. Sobrevivi para poder realizar o meu trabalho. Não o trabalho que os nazistas queriam – o trabalho duro de sacrifício e fome, de exaustão e escravidão. Foi o trabalho interior, de aprender a sobreviver e a prosperar, de aprender a me perdoar e de ajudar os outros a fazerem o mesmo. Quando faço esse trabalho, deixo de ser refém ou prisioneira de nada. Sou livre”.
Reconstrução que implica necessariamente aprender a perdoar, outro desafio enorme para nossos dias: “Perdoar é sofrer pelo que aconteceu e pelo que não aconteceu, e abrir mão da necessidade de um passado diferente. Aceitar a vida como ela era, e como ela é”. Reconstrução que digere a dor, e nos faz crescer: “Nossas experiências dolorosas não são uma desvantagem – são um presente. Elas nos dão perspectivas e sentido, uma oportunidade de encontrar nosso propósito especial e nossa força (…)Ser forte não é reagir, mas responder, permitir os sentimentos, refletir sobre eles e planejar uma ação eficiente para aproximá-lo de seu objetivo. A liberdade está em aceitar o que se é, em se perdoar e em abrir o coração para descobrir as maravilhas que existem agora”.
Um belo programa de vida, que culmina, de modo prático, numa versão das quatro preguntas -tradição judaica- que a Dra. Eger nos propõe a modo de lição de casa: “O que você quer? / Quem quer isso/ O que você vai fazer sobre isso?/ Quando?” Eis um exame de consciência permanente, uma pauta, a modo de gabarito para, antes de reclamar e buscar culpados, enfrentar nossa própria realidade, a de cada um de nós. E atuar em consequência. Tarefa que ocupa toda a vida sem contemplar férias nem folgas.
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Vou ler esse livro, vou dar de presentes para algumas pessoas
“Nós recursarmos a aceitar, torna-se tão intransponível quanto…”. Essa expressão remeteu-me: “o único cara invulnerável é o vulnerável. A fecha ferina entra pela frente do peito e sai de imediato pelas costas”, ouvida e aprendida nas madrugadas, e santas malandragens boêmias.