Emmanuel Carrère: O Reino.
Emmanuel Carrère: O Reino. Emmanuel Carrère: O Reino. Alfaguara, Rio de Janeiro, 2016. 440 págs.
Não costumo gastar tempo comentando livros que não recomendo. São tropeços que experimentei, guiado por alguma crítica duvidosa. E visto que eu já sofri o tropeço, não me agrada empurrar outros para deparar-se com a mesma lombada. Por isso, tinha desistido de comentar este livro, do qual fiz a seguinte anotação: Uma conversão, uma desistência, uma permanente hesitação, cercada por uma cultura notável -lendo de tudo, e de todos os lados, de Renan até Santo Agostinho- e uma dúvida persistente, como corresponde a muitos dos intelectuais franceses. A dúvida metódica de Carrèrre, não de Descartes. Mas no final, da na mesma. A desconstrução fruto de intelectualismo e cultura mal digerida, que faz ver as coisas com olhos saturados de racionalismo. Um processo onde se apalpa uma atrofia da humildade, que é o único caminho para descortinar uma lógica que transita num plano diferente: a lógica e Deus.
Mas revendo as anotações que destaquei durante a leitura do livro, pensei que sim, poderia ser útil um breve comentário, pois afinal é o caminho que qualquer homem pode sofrer, se carece dessa lógica acima sugerida. A conversão sincera de Carrère, e a queda posterior no niilismo, traz ensinamentos que podem iluminar este doloroso processo.
É preciso reconhecer que Carrère escreve com maestria, em descrições onde se misturam fatos externos, com o seu próprio interior, e talvez por isso transpira hesitação e dúvida. Na crítica desavisada que comentei, figurava um título sugestivo sobre o estilo do francês: uma mistura do eu literário com a realidade.
Situa o tema do Cristianismo e o início da sua conversão, de modo preciso. “Os cristãos são os únicos de quem se parece ter o direito de zombar impunemente (…) Ora, um monte de gente acredita numa história igualmente delirante e esse monte de gente não passa por louco. Mesmo quem não compartilha de sua crença leva essa gente a sério. Essas pessoas têm um papel social, menos importante do que no passado, mas respeitado e, no geral, até que positivo. Seu capricho convive com atividades absolutamente razoáveis. Os presidentes da República visitam seu chefe com deferência. É ou não é estranho? (…) Perpetuando-os, proclamam um laço, digno de orgulho, com o espírito que concebeu as catedrais e a música de Bach. Eles o tartamudeiam porque é tradição, assim como nós, burgueses descolados para quem a aula de ioga no domingo de manhã substituiu a missa, tartamudeamos um mantra, seguindo nosso mestre, antes de começar a prática”.
E a seguir confessa, com ceticismo a sua conversão: “No outono de 1990, fui “tocado pela graça” — é pouco dizer que me incomoda terrivelmente formular as coisas assim nos dias de hoje, mas era como as formulava na época. O fervor resultante dessa “conversão” — minha vontade é colocar aspas em tudo — durou quase três anos, ao longo dos quais me casei na igreja, batizei meus dois filhos, fui à missa regularmente — e, por “regularmente”, não quero dizer uma vez por semana, e sim diariamente. Eu me confessava e comungava. Rezava e encorajava meus filhos a fazerem a mesma coisa — o que, agora crescidos, eles gostam muito de me lembrar com malícia (…) Sempre julguei poder contar apenas comigo. A fé, cuja graça recebi não faz muitos meses, me libertou dessa extenuante ilusão. Compreendi de repente que nos é dado escolher entre a vida e a morte, que a vida é Cristo e que seu jugo é leve. Criança, frequentei o catecismo, é verdade, fiz a primeira comunhão, mas essa educação cristã era tão formal, tão distraída, que não fazia sentido dizer que, num momento qualquer, perdi a fé”
A sua trajetória -desde a conversão até a perda da fé- tem momentos tocantes, alguns comoventes, como as Missas que teve ocasião de assistir durante umas férias numa aldeia da Suíça: “Todas as manhãs, bem cedo, ele rezava a missa, à qual assistiam quatro ou cinco pessoas da aldeia, entre eles um garoto mongoloide — falava-se mongoloide, na época, não com Síndrome de Down — que ajudava como coroinha. Por intermédio de sua mãe, que o acompanhava, eu soube o quanto aquele menino, Pascal, tinha orgulho da responsabilidade que o velho padre lhe confiara. Ele aguardava sua volta, a cada verão, com impaciência, e era bonito vê-lo, um pouco vacilante, espreitar a piscadela que lhe dava o sinal para agitar o sininho ou manejar o turíbulo (…)As únicas recordações que eu tinha das missas da minha infância resumiam-se a obrigação e tédio. Aquela, celebrada por um homem esgotado para um punhado de montanheses do Valais e um mongoloide, cujos gestos, sem exceção, confirmavam que ele estava em seu lugar, que ele não teria trocado por nenhum outro, me emocionou a ponto de eu voltar nos dias seguintes. Eu me sentia protegido naquele depósito de feno transformado em capela. Divagava, escutava, esperava que o sujeitinho inquieto e sardônico que eu não aguentava mais ser, fosse reduzido ao silêncio, que outra voz se elevasse dentro de mim”.
Agora, olhando para atrás -relendo os cadernos onde escrupulosamente anotava toda a sua trajetória – revela que essa conversão carecia de um fundamento firme: “Resta a caridade, que são Paulo diz ser a mais importante das três, e aí sou um zero à esquerda. Nenhuma caridade. Nenhuma inclinação a fazer sequer essas pequenas gentilezas que valem mais que mover as montanhas. O encontro com Deus mudou meu espírito e minhas opiniões, não meu coração. Continuo a amar apenas a mim — e muito mal. Mas o caso está previsto. A oração de que eu necessito encontra-se em Ezequiel. Repito-a sem descanso: “Tirai do meu peito o coração de pedra e dai-me um coração de carne”.
Por isso escreve de modo contundente, até estremecedor: “Suponho que, para muitos que me leem, as dúvidas que descrevo aqui parecem totalmente abstratas, especulativas, desconectadas dos verdadeiros problemas da existência. A mim, elas me dilaceraram, e escrevo estas memórias para me lembrar disso. Sinto-me tentado a ser irônico a respeito daquele que eu era, mas não quero ser irônico. Quero me lembrar da minha perturbação e do meu pavor quando senti sob ameaça aquela fé que mudava a minha vida, que eu prezava acima de tudo (…) Sim, claro, podemos dizer que Deus é a resposta que damos à nossa angústia, mas também podemos dizer que nossa angústia é o meio que ele usa para dar-se a conhecer a nós. Sim, claro, podemos dizer que me converti porque estava desesperado, mas também podemos dizer que, para me converter, Deus me concedeu a graça do desespero (…) Aquele cristianismo burguês, provinciano, isento de dúvidas, cristianismo de farmacêuticos e tabeliães que aprendi a ver com uma ironia indulgente, me repugna bruscamente. Sentia-me então em uma posição forte. Achava que o euzinho descrente que se afastava sem insistir muito não era um adversário temível. Mas é um adversário temível que se anuncia: não mais um eu passado e ultrapassado, e sim um eu vindouro, um eu talvez bem próximo, que não vai mais crer e ficará muito satisfeito de não crer”.
A partir deste momento, Carrère procede a uma releitura dos atos dos apóstolos, ao seu modo pessoal, destacando a figura de Paulo, simpatizando com Lucas, e colocando Thiago, bispo de Jerusalém, como inimigo declarado de Paulo, um revolucionário que salta por cima dos preceitos judaicos para dar entrada a qualquer um no Reino! Uma leitura cansativa, e desanimadora, que quase me fez deixar de lado o livro. Mas prossegui até o final, fazendo algumas anotações que agora invoco de volta para finalizar este comentário, ou talvez, esta advertência.
Dentre estas anotações, o perfil de S. Paulo inserindo-se no Cristianismo -seita desviada dos judeus- me aparece sugestivo, embora não seja dos mais ortodoxos, mas mostra que o escritor pensou, e muito, sobre o tema. E também que escreve com a ironia dos franceses em dúvida metódica: “Seguindo um nome de judeu completamente banal, Jesus, em versão original Ieshua , e esse nome, sucedendo a majestosa litania dos Samuel, Saul, Benjamin e Davi, provoca um efeito tão canhestro como se, depois de esgotar a lista dos reis da França, disséssemos que o último é Gérard ou Patrick. Jesus? Quem é esse Jesus? A cruz é um suplício pavoroso e, acima de tudo, humilhante. Destina-se exclusivamente à ralé da humanidade: salteadores de estradas, escravos fugidos. Para continuar a transposição, é como se anunciassem que o salvador do mundo não só se chama Gérard ou Patrick, como foi condenado por pedofilia. Também posso testemunhar, pois ele apareceu para mim por último, quando sou um simples traste e sequer o conheci em vida”
E a seguir, o perfil do apóstolo: “Paulo fazia parte dos homens que não titubeiam em dizer de onde falam, isto é, em falar de si próprios, e Lucas não demorou a conhecer sua história, tão mirabolante como seus discursos (…) Gostaria de continuar a ser ele mesmo, se chamar Saulo, não se deixar invadir, não se render. Chorava, era sacudido por tremores. Então, subitamente, tudo cedeu. Aceitou a invasão. E, em vez de destruí-lo, a coisa prodigiosa e ameaçadora que crescera dentro dele começou a embalá-lo como a uma criança (…) Paulo fazia coisa bem diferente de se amparar nas Escrituras para demonstrar a validade e as credenciais de uma doutrina. Ele dizia: Tu dormes, desperta. Tua vida mudará de ponta a ponta. Não compreenderás sequer como conseguiste viver essa vida, pesada e trevosa, como outros continuam a vivê-la como se fosse a vida, sem desconfiar de nada. Dizia: És uma lagarta, fadada a se tornar uma borboleta. Se pudéssemos explicar à lagarta o que a espera, ela certamente teria dificuldade em compreender. Teria medo. Ninguém decide facilmente deixar de ser o que é, se tornar outra coisa que não si mesmo. Mas assim é o Caminho”.
Avançando para os capítulos finais, o escritor vai desconstruindo a fé que em seu dia teve, misturando leituras de todo tipo, uma cultura vastíssima, como se tentasse convencer-se que o seu agnosticismo tem base, ou, talvez, como querendo desterrar suas próprias dúvidas, que continuem latentes: “Algo me diz que, publicado este livro, a pergunta virá: Mas afinal de contas o senhor é ou não é cristão? Escrevo este livro para não achar que, deixando de crer, sei mais sobre isso do que aqueles que creem e do que eu mesmo quando acreditava. Escrevo este livro para duvidar da minha própria opinião (…) Fiz um resumo desses pontos de vista, não me alinho a nenhum deles. Denunciar dois mil anos de revisionismo fundamentalista me parece ser o cúmulo do revisionismo (…) Empaquei, e de vez. Desde que montei a estrutura deste livro, é sempre no mesmo lugar que empaco. Enquanto se trata de narrar as desavenças de Paulo e Tiago como as de Trotsky e Stálin, a coisa flui. De discorrer sobre a época em que me julguei cristão, flui melhor ainda — para falar. Mas, quando chega a hora de adentrar o Evangelho, fico mudo. Será por haver imaginário demais, devoção demais, rostos demais sem modelos na realidade? Ou porque se, me acercando dessas paragens, eu não estivesse tomado de temor e tremor, isso não valeria a pena?”
Não há como negar que Carrère leu a Bíblia, o Novo Testamento, e não uma vez mas muitas. E leu críticas, comentários, exegeses….Leu de tudo, o que talvez explique o impasse intelectual em que se encontra: “Esse texto, de que em outros tempos me aproximei como alguém que crê, dele me aproximo agora como agnóstico. Naquela época eu queria me impregnar de uma verdade, da Verdade, agora procuro desmontar as engrenagens de uma obra literária (…) O que me incomoda, e me parece muito mais delicado de abordar, muito mais indecente que confidências sexuais, são “essas coisas”: as coisas da alma, as que dizem respeito a Deus. No meu foro íntimo, me agradava pensar que eu era mais próximo delas que os meus colegas do mundinho literário, meditando-as e guardando-as no coração. Era meu segredo, do qual falo aqui pela primeira vez”
E os desvios, chocantes, dos tempos gastos em internet aprofundando na pornografia, algo que confessa sem nenhum pudor, porque como dito acima, lhe pesam menos do que as dúvidas da alma. E conclui, de modo sincero: “Este livro, que termino aqui, escrevi-o de boa-fé, mas o que ele tenta abordar é tão maior do que eu que essa boa-fé é irrisória. Escrevi-o atrapalhado pelo que sou: um inteligente, um rico, um homem do topo: inúmeras desvantagens para entrar no Reino. Em todo caso, tentei. E o que me pergunto, no momento de deixá-lo, é se ele trai o jovem que fui e o Senhor no qual esse jovem acreditou, ou se, à sua maneira, lhes permaneceu fiel. Eu não sei”. Sinceridade louvável, falta de esperança e, sem dúvida, a carência daquela que é base de todas as virtudes, como dizia Cervantes, a humildade, para deixar-se levar até o Reino que em seu dia lhe fascinou. Uma trajetória que, embora dolorosa, pode ajudar em momentos -não infrequentes- de dúvidas e hesitação. Vale a advertência, no texto fluido de um ótimo e premiado escritor.
Comments 1
Estava a pesquisar sobre este livro, que desde já né encantou pela proposta, história e tema. Quando encontrei o seu blog.
Boa resenha. Não posso ainda falar do livro, porque ainda não o li, mas em breve lerei…
E outra, continue comentando sobre livros. Sei que é uma tarefa ingrata e cheia né nuances, porém é valida.