Living: Os sustos que nos acordam para a vida.
Living. Diretor: Oliver Hermanus. Roteiro: Kazuo Ishiguro. Bill Nighy, Alex Sharp, Aimee Lou Wood, Adrian Rawlins, Tom Burke, Hubert Burton. UK. 2022. 102 min.
Sabendo que se trata da refilmagem de um clássico, assisto sem pretensões…e fico maravilhado. Contemplo a história construída por Kurosawa nos anos 50, agora em versão britânica, mas sem negar as referências: lá está o nome do grande diretor japonês, outros da sua linhagem que carregam o mesmo sobrenome e, fosse pouco, convocam um prêmio Nobel, também nipónico- Kazuo Ishiguro- para organizar o roteiro. E para dirigir toda esta sinfonia, um diretor sul-africano, que é garantia de Commonwealth, sabor absolutamente britânico.
O resultado é um filme elegante, delicado, tocante, repleto de recados. E também um saca rolhas de reflexões: aquelas que vão se acumulando com os anos, as leituras, os escritos e, especialmente, com as vivências. Organizar essa enxurrada que acode à mente, enquanto contemplamos os fotogramas do filme -tarefa nada fácil- que me atrevo a alinhavar, desordenadamente, nestes parágrafos.
O argumento já tinha sido contado por Kurosawa: um funcionário público que gastou a vida, fazendo de conta que trabalhava, perdido entre papeis, processos que, mal ou bem, empurrava para outros departamentos. De repente chega a notícia: um câncer que lhe coloca um dead line (nunca melhor dito). E com o susto, um despertar para a vida, aquela que nunca viveu.
Na versão atual, o funcionário trabalha na Prefeitura de Londres, entre homens elegantíssimos e mulheres com vestuário impecável, mas o toque British nada acrescenta ao fundo cinza e tedioso. A mesmice da sempre, a burocracia que nada resolve, um perfeito e continuo descaso para com o usuário que nunca é atendido. Tanto no filme dos anos 50, como no atual (que está situado também no início da década dos 50 em Londres) a burocracia insensível para com o consumidor é o pano de fundo. O mesmo que vivemos hoje -e sempre- embora esteja maquiado com processos informáticos, e com máquinas que respondem que nossa ligação é muito importante para eles….Nesse processo kafkiano perdemos até o contato com as pessoas e, agora com máquinas informatizadas, não temos mais nem com quem reclamar.
Mas o filme é muito mais do que isso. É o despertar após o susto. É a consciência de que a vida é finita, e que deve ser empregada com utilidade, de preferência ao serviço do próximo. Impossível evitar a lembrança de Viktor Frankl quando diz: “Vive como se vivesses pela segunda vez e como se da primeira vez tivesses feito tudo tão falsamente como agora estás quase a fazer. Quem conseguir compenetrar-se desta representação fantástica aperceber-se-á imediatamente de toda a grandeza da responsabilidade que o homem em cada momento tem por sua vida: a responsabilidade pelo que ocorrerá na hora seguinte, pelo modo como configurará o dia de amanhã”.
Quer dizer, apalpar a finitude da vida, nos coloca na perspectiva certa. Algo lógico, de fácil entendimento, mas que na hora de pôr em prática, esquecemos. Sempre. Lembrei de uma colega médica, que ainda jovem, passou por uma cirurgia complicada. Quando fui visitá-la, já recuperada, me disse: “Isto é importante para os médicos. Você não acha?”. Sorri, um pouco perplexo, e ela acrescentou: “Você deve ser daqueles que ainda pensa que é eterno”. A vida finita -nossa vida- exige estabelecer prioridades. A todo momento. E não apenas empurrar com a barriga, como fazem os funcionários da prefeitura de Londres, com a pilha de processos que se acumulam…..
Na avalanche de lembranças, Fernando Pessoa, com sua força poética apareceu no meio do filme: “A vida é o que fazemos dela”. Assim, sem mais. E o que eu faço da vida? – pensa o expectador, no vácuo do protagonista. O que eu fiz até agora? Novamente o poeta nos responde, naqueles versos que dedica a D. Sebastião, o último rei de Portugal, antes da batalha trágica: “Louco sim, porque quis grandeza….Sem a loucura, que é o homem, mais do que a besta sadia, cadáver adiado que procria”. Sem loucura, sem sentido e propósito, o homem é um morto vivo. Como o nosso protagonista, cujo apelido -confessado em momento encantador por Miss Harris- é justamente o zumbi, um morto vivo!
E a rotina cinzenta dos funcionários, que é palco do descaso continuo com a população, essa da qual Mr. Williams quer escapar após o susto, evocou necessariamente o pensamento de Ortega na sua obra magna, A Rebelião das Massas. O homem massa, o homem vulgar, é aquele que não se exige mais do que os outros; é aquele que pensa ter somente direitos e não deveres. Aquele que vive de modo anódino, porque não descobriu a grandeza de servir, a nobreza que exige pensar nos demais –noblesse oblige.
Pode parecer algo sofisticado, mas a verdade é que o homem massa -ou o seu oposto, o homem seleto- é algo que encontramos todos os dias. Na semana passada, experimentei o pensamento de Ortega de modo gráfico. Fui renovar o meu bilhete único -privilégio dos que alcançamos certa idade- e na prefeitura, enquanto eu estava sendo atendido, sentou no guiché do lado, um homem de condição muito modesta. Reparei que a atendente lhe criticou porque não tinha trazido o CEP do seu endereço, para onde deveria encaminhar o bilhete único dele. Senti que o assunto estava se encrencando e decidi ajudar. Peguei a conta de luz do homem e reparei que não tinha CEP, porque o endereço era algo assim como “Beco do fulano”. Quer dizer, uma caixa de madeira no meio da favela, onde lhe chega -quando chega- a correspondência. Solicitei se teria outra conta, e apresentou uma “da minha comadre” que, essa sim, tinha endereço e CEP. Pedi à funcionária -que em momento algum fez nada por ajudar- para enviar a esse endereço. Apalpei na minha frente o homem massa, em reprodução perfeita, da funcionária da prefeitura.
Mas, houve também um encontro com o homem seleto, no caso, uma mulher. Em dia de chuva e enchente, decidi pegar o metrô. Na estação havia uma multidão, e ao entrar no vagão, me dirigi a um assento livre, azul, outro privilégio da idade. Uma moça estava prestes a sentar-se e, quando me viu, pediu desculpas e levantou-se. “Não, disse eu, pode sentar. Meu avô me ensinou, quando eu tinha 5 anos, que eu nunca sento com uma mulher em pé”. Do lado, reparei que havia uma senhora de idade, que depois entendi ser parente daquela que tentou sentar-se. “Vamos deixar sentar esta senhora?- perguntei”. E aquela mulher, idosa, simples, talvez até pouco alfabetizada respondeu: “Não precisa, meu senhor. Hoje eu não trabalhei. Estou bem. Deixa a moça sentar, que ela sim trabalhou, e está cansada”. Sorri emocionado, enquanto amealhei o momento como um tesouro: ganhei o dia, pensei. Tropecei com alguém que se exige mais do que os outros, que abre mão dos direitos em benefício do próximo! Ser homem massa (no caso, mulher) ou pertencer ao grupo dos seletos, nada tem a ver com a instrução, mas com o caráter. Esse senhora tinha para dar e vender!
O nosso funcionário desperta para vida, chama a si os problemas de um grupo de mulheres que sofrem pelas enchentes (num outro beco, como o do amigo que encontrei na Prefeitura) e parte para a ação. E confessa, agora nesse despertar, para a sua confidente que escuta abobada: “Quando eu era criança, e via aqueles homens elegantes na plataforma do trem, formulei o meu projeto: tudo o que eu quero ser é um cavalheiro, um gentleman! Mas deixei passar, esqueci, e fui vivendo a vida”. Ms. Harris derrama umas lágrimas, enquanto outros versos de Pessoa golpeiam a minha memória: “Triste de quem é feliz, vive porque a vida dura, nada na alma lhe diz, mas que a lição de raiz, ter por vida a sepultura”. Um morto vivo, de novo, um zumbi fardado em terno elegante.
Os elegantes flashback, que dão continuidade após chegar o dead line de Mr. Williams, apontam para o exemplo que deixa, algo que cutuca os seus companheiros, a modo de emulação, que é a versão virtuosa do defeito da inveja. Um estímulo que importamos do exemplo de outro para ser nós melhores. Mas não é duradouro, porque a rotina cinzenta se impõe, e as pessoas estão situadas no automático, vivem porque a vida dura, sendo cadáveres ambulantes que procriam……
Surge uma ponta de desânimo ao contemplar que o exemplo -o legado- nem sempre vinga, e que as pessoas logo esquecem. Mas a vida é assim mesmo. Não existe mudança de estruturas, se os envolvidos não estão dispostos a mudar, a qualquer custo. Não existe mudança asséptica do sistema, sem atingir as pessoas que o integram. Lembrei neste ponto de um amigo, já falecido, grande empresário e professor que nunca aceitava os convites para “aulas ou reuniões de motivação”. Por que? -perguntei-lhe em certa ocasião. “Por que a motivação dura o tempo que eu demoro para pegar o elevador no sexto andar onde aconteceu a reunião e descer para o térreo”.
A motivação, tal como hoje é apresentada -e vendida, porque tem gente que compra, e não poucos- não é sustentável. É muito barulho e emoção, que acaba em fogo de palha, efêmero. Mas é sim o comportamento exemplar, o esforço por mudar -por despertar para a vida, que é finita- o que, aos poucos, penetra capilarmente no ambiente, contamina salutarmente o próximo, e, com o tempo, é evocado como um legado. O detalhe que fez a diferença, o esforço a mais -exigir-se mais do que é mandado, o dever que ninguém te cobra- o que perdura. Outro amigo me disse certa vez: “ A gente começa a dar valor ao nosso pai, após os 50 anos, ou depois. E geralmente, nessa altura, o nosso pai não está mais por aqui”. É verdade. Não são poucas vezes as que lembro dos conselhos do meu pai que, na época, mal dei importância. Hoje são uma bússola eficaz, um norte de atuação.
Living, um filme essencial, necessário, embrulhado numa atuação primorosa, em magnífica estética, que transpira recados a cada fotograma. E semeia um legado que, com o tempo, dará seu fruto em cada um. Se houver serenidade e paciência para deixar decantar o tesouro do exemplo. Um clássico imperdível!
Comments 11
Onde posso assistir esse filme?
Está disponível para aluguel on-line no APP “Google Play”. Uma vez alugado, você conseguirá assistir pelo APP “Google TV”, inclusive espelhando na TV.
Esse filme resumidamente nos demonstra que “A VIDA PODE ATÉ SER CURTA MAS NÃO PRECISA SER PEQUENA”
Aqui é possível baixá-lo via Torrent:
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Excelente interpretação desse filme, Pablo
Como conseguir essa energia, consciência e constância diárias para a realização do que temos que fazer?
Obrigado pelo aprendizado que esse filme nos traz.
Muito bonito seu texto
Como sempre seus comentários nos alertam e nos dão vontade de assistir ao filme
Obrigada pela generosidade em compartilhar
Comentário magnífico sobre o filme.
Tentarei assistí-lo.
Sua missão Dr. Pablo é muito especial veio para nos ensinar, tratar, curar e principalmente servir com todo o seu conhecimento.
Seu comentário sobre a experiência no metrô me recordou de um livro que ganhei de presente da minha mãe aos 10 anos
Guia de boas maneiras de Marcelino de Carvalho. , que era indicado para os “nouveau riche”que não tinham o previlégio de aprender com os avós e pais.
Assisti. Realmente muito bom: cheguei a pensar que seria só algo do tipo “soube que iria morrer e tomou todas, pra aproveitar a vida”; mas, ao contrário, ele salvou a sua biografia ao cumprir o seu dever.