Eça de Queiroz: A Ilustre Casa de Ramires
Eça de Queiroz: A Ilustre Casa de Ramires (em Obras completas- Centaurus Editora 2015, págs. 2810- 3140).
A Tertúlia Literária mensal me faz voltar sobre esta obra de Eça de Queiroz, após mais de três décadas de tê-la descoberto. E confesso que é um privilégio, uma necessidade -mormente nestes tempos de emojis, grunhidos, acrônimos e outras variedades que beiram o analfabetismo- , como uma lufada de ar fresco, descobrir a riqueza da língua portuguesa. Reaprender a se exprimir, a encontra a palavra adequada, le mot juste- como dizia Flaubert.
Gonçalo Mendes Ramires, um fidalgo de estirpe mais velha que o próprio Portugal, pois sua casa ultrapassa os mil anos, é o companheiro desse passeio onde degustamos o prazer do bem falar, da boa escrita. Os fidalgos decadentes, também como o próprio Portugal a quem Eça rende tributo. “Castanheiro fundara um semanário, a Pátria — com o alevantado intento (afirmava sonoramente o Prospeto) de despertar, não só na mocidade académica, mas em todo o País, do cabo Sileiro ao cabo de Santa Maria, o amor tão arrefecido das belezas, das grandezas e das glórias de Portugal! Devorado por essa ideia, a sua Ideia, sentindo nela uma carreira, quase uma missão, Castanheiro incessantemente, com ardor teimoso de apóstolo, clamava pelos botequins da Sofia, pelos claustros da Universidade, pelos quartos dos amigos entre a fumaça dos cigarros, — a necessidade, caramba, de reatar a tradição! de desatulhar, caramba, Portugal da aluvião do estrangeirismo!”.
E assim solicita a colaboração de Gonçalo para escreve a história da Torre dos Ramires: “É um dever, um santo dever, sobretudo para os novos, colaborar nos Anais . Portugal, menino, morre por falta de sentimento nacional! Nós estamos imundamente morrendo do mal de não ser Portugueses!….Sabia o amigo Gonçalinho o segredo desta borracheira sinistra? E que, dos Portugueses, os piores desprezavam a Pátria — e os melhores ignoravam a Pátria. O remédio?… Revelar Portugal, vulgarizar Portugal. Sim, amiguinho! Organizar, com estrondo, o reclamo de Portugal, de modo que todos o conheçam — Quando o Gonçalinho se enfronhar dentro do nosso passado, das nossas crónicas, temos enfim nas letras um homem que sente bem o torrão, sente bem a raça! (…) Gonçalinho parecia gloriosamente votado a restaurar em Portugal o romance histórico”.
Gonçalo inicia a escrita histórica, ao tempo em que, por uma série de circunstâncias, é convidado a entrar na política. Frequentar com a imaginação, plasmando-a no papel, a memória dos seus ancestrais, é iluminador: “De mal com o Reino e com o Rei, mas de bem com a honra e comigo! -dizia para seus dentro de si. E sentia nele realmente toda a alma de um Ramires, como eles eram no século XII, de sublime lealdade, mais presos à sua palavra que um santo ao seu voto, e alegremente desbaratando, para o manter, bens, contentamento e vida! (…) Dentro do espírito e das expressões do seu século era pois um bom Ramires — um Ramires de nobres energias, não façanhudas, mas intelectuais, como competia numa idade de intelectual descanso. E os jornais, que tanto motejam a decadência dos fidalgos de Portugal, deveriam em justiça afirmar (e ele o lembraria ao Castanheiro!): — Eis aí um, e o maior, que, com as formas e os modos do seu tempo, continua e honra a sua raça!”.
As memórias de gestas heroicas convivem com o quotidiano de Gonçalo, com suas limitações, corporais e anímicas. “Desde as quatro horas, no calor e silêncio de domingo de junho, labutava, empurrando a pena como lento arado em chão pedregoso, riscando logo rancorosamente a linha que sentia deselegante e mole (…) — Homem, eu ando com o estômago arrasado… E desde ontem à noite uma dor nos rins, ou no fígado, ou no baço, não sei bem, numa dessas entranhas!… O Sr. Dr. Matos aconselhou que o tomasse com água tépida, em jejum. Parece que ferve. E limpa o sangue, desanuvia a cabeça… Os médicos, em Lisboa, não se entendiam. Uns atribuíam ao estômago — outros atribulam ao coração. Portanto, aqui ou ali, víscera essencial atacada – Pois eu muito necessitado ando de desanuviar a cabeça!… Toma tu também, Bento. E diz à Rosa que tome. Todos tomam agora, até o Papa!”.
O quotidiano implica, agora, o envolvimento na política, algo que Gonçalo gostaria de evitar, porque é terreno desconhecido, inseguro: “Não vale a pena, Sr. Doutor… Realmente não vale a pena, porque em Política hoje é branco, amanhã é negro, e depois, zás, tudo é nada. Bem! — concluiu o Fidalgo. — A Política nos separou, a Política nos reúne… É o que se chama a inconstância dos Tempos e dos Impérios (…) Portugal, nas suas massas profundas, permanecia monárquico, de raiz. Apenas ao de cima, na burguesia e nas escolas, flutuava uma escuma ligeira, e bastante suja, que se limpava facilmente com um sabre”.
Gracinha Ramires, irmã do fidalgo, casada com o Barrolo, um burguês simpático e ingênuo, são personagens magnificamente desenhadas. Gonçalo cobra da irmã a necessidade de um herdeiro, pois do contrário “lá se vão desta feita Barrolos e Ramires! A extinção dos Barrolos é uma limpeza. Mas, acabados os Ramires, acaba Portugal. Portanto, Sra. D. Graça Ramires, depressa, em nome da Nação, um morgado! Um morgado muito gordo, que eu pretendo que se chame Tructesindo!”.
E junto com elas, surgem outras que a maestria do escritor nos oferece com perfis nítidos: “O capelão, que sem rumor se esbatera numa sombra discreta, entre os franjados cetins duma cortina e um pesado contador da índia, moveu os ombros num consentimento risonho, como acostumado a todas as fealdades do Pecado (…) As duas manas Lousadas! Secas, escuras e gárrulas como cigarras, desde longos anos, em Oliveira, eram elas as esquadrinhadoras de todas as vidas, as espalhadoras de todas as maledicências, as tecedeiras de todas as intrigas. E na desditosa cidade não existia nódoa, pecha, bule rachado, coração dorido, algibeira arrasada, janela entreaberta, poeira a um canto, vulto a uma esquina, chapéu estreado na missa, bolo encomendado nas Matildes, que os seus quatro olhinhos furantes de azeviche sujo não descortinassem — e que a sua solta língua, entre os dentes ralos, não comentasse com malícia estridente! (…) A prima Jesuína, uma velha parenta da mamã, que governa agora a casa. Coitada! e com um escrúpulo, com um amor… Se não fosse a santa criatura, os porcos fossavam nos canteiros.. Meu filho, onde não há saia, Não há ordem!”.
A personalidade do fidalgo, vai também sendo delineada com o passar das páginas. Brincalhão, vaidoso, vivedor: “Gonçalo gritou, pendurado da varanda, já deliciado com os chistes da prima Maria: — Não! enfio eu um abajur pela cabeça para atenuar o meu brilho! (…) E a meia batia no relógio da Câmara, quando Gonçalo, que se retardara na Assembleia num voltarete enremissado, apareceu anunciando uma fome terrível, a fome histórica dos Ramires (…) Sempre almoçava e jantava na varanda luminosa e fresca, bem esteirada, revestida até meio-muro por finos azulejos do século XVIII, e oferecendo a um canto, para as preguiças do charuto, um profundo canapé de palhinha com almofadas de damasco (…) Agosto findava: — e por vezes, na livraria, Gonçalo, coçando desconsoladamente a cabeça, considerava as brancas tiras de almaço, o Capítulo III da Torre de D. Ramires encalhado… Mas quê! não podia, com aquele calor, com o afã da eleição, remergulhar nas eras Afonsinas!”.
Generoso e espontâneo, não regula os favores com os servidores e com as pessoas simples, e o agradecimento o encabula: “Ora uma coisa destas! Eu tudo esperaria, tudo, menos o Sr. Gonçalo Mendes Ramires a trazer à rédea, pela estrada de Corinde, um cavador de enxada! É a repetição do Bom Samaritano… Mas para melhor! (…) Pálido, Gonçalo sacudia aquela gratidão furiosa — E em cima, na livraria, Gonçalo pensava com espanto: — Ai está como neste mundo sentimental se ganham dedicações gratuitamente!… Porque enfim! Quem não impediria que uma criancinha com febre afrontasse de noite uma estrada negra, sob a chuva e vendaval? Quem a não deitaria, não lhe adoçaria um grogue, não lhe entalaria os cobertores para a conservar bem abafada? E por esse grogue e por essa cama — corre o pai, tremendo e chorando, a oferecer a sua vida! Ah! como era fácil ser Rei — e ser Rei popular! (…) Ora vejam como às vezes, por uma pequenina atenção, se ganha um amigo! Ah, realmente, todos bem pouco culpados diante de Deus que nos criou tão variáveis, tão frágeis, tão dependentes de forças por nós ainda menos governadas do que o vento ou do que o Sol!”.
Mas, lá no fundo, Gonçalo tem uma trava que freia o ímpeto histórico dos Ramires: o medo, “desgraçado temor, aquele desmaiado arrepio da carne, que sempre, ante qualquer risco, qualquer ameaça, o forçava irresistivelmente a encolher, a recuar, a abalar. Todo o seu ser se desesperava contra aquele desgraçado medo, encolhimento da carne, arrepio da pele, que sempre, ante um perigo, uma ameaça, um vulto surdindo duma sombra, o estonteava, o impelia furiosamente a abalar, a escapar! Porque à sua alma, Deus louvado, não faltava arrojo! Mas era o corpo, o traiçoeiro corpo, que num arrepio, num espanto, fugia, se safava, arrastando a alma enquanto dentro a alma bravejava (…) Ele nascera com a falha, a falha de pior desdouro, essa irremediável fraqueza da carne, que, irremediavelmente, diante de um perigo, uma ameaça, uma sombra, o forçava a recuar, a fugir…
mesmo dentro da sua Torre era governado pelo Bento, que superiormente lhe impunha gostos, dietas, passeios, e opiniões e gravatas! — Homem de tal natureza, por mais bem dotado na inteligência, é massa inerte a que o Mundo constantemente imprime formas várias e contrárias”.
A magnífica descrição, saturada de ironia, arranca do leitor sorrisos e compreensão. A figura de Gonçalo perfila-se cada vez melhor: “Desgraçadamente ele era um desses seres vergados que dependem. E a triste dependência de onde provinha? Da pobreza — dessa escassa renda de duas quintas, abastança para um simples, mas pobreza para ele, com a sua educação, os seus gostos, os seus deveres de fidalguia, o seu espírito de sociabilidade. E recordava o presunçoso verso do Videirinha, ainda nessa noite proclamado ao violão: Velha casa de Ramires Honra e flor de Portugal! Como a flor murchara! Que mesquinha honra!”.
E nesse vai e vem, oscilando em gangorra da fidalguia de estirpe até a limitação realista, Gonçalo considera a possibilidade de casar com uma viúva, bonita e com recursos: “Não pode ser!… Que disparate! A D. Ana não ajustava casamento sete semanas depois de lhe morrer o marido… Olhe que o Lucena morreu no meado de julho, homem! Ainda nem teve tempo de se acostumar à sepultura! Mas, é de se ver que os pêssegos arranjados por ela, com parra que ela apanhara na latada, sob toalha que ela escolhera no armário, formavam na sua mudez cheirosa um recadinho sentimental (…) Mancha teimosa, realmente, só o pai carniceiro (o pai da dona Ana, entende-se). Mas nesta humanidade nascida toda dum só homem, quem, entre os seus milhares de avós até Adão, não tem algum avô carniceiro? Ele, bom fidalgo, duma casa de Reis de onde dinastias irradiavam, certamente, escarafunchando o Passado, toparia com o Ramires carniceiro. E que o carniceiro avultasse logo na primeira geração, num talho ainda afreguesado, ou que apenas se esfumasse, através de espessos séculos, entre os trigésimos avós — lá estava, com a faca, e o cepo, e as postas de carne, e as nódoas de sangue no braço suado!…”
O escritor, já com todas as cartas sobre a mesa, vai encerrando a história de Gonçalo -que por sua vez acaba o escrito da Torre dos Ramires- em parágrafos não isentos de recados suculentos: “O homem só vale pela Vontade só no exercício da Vontade reside o gozo da Vida. Porque se a Vontade bem exercida encontra em torno submissão — então é a delícia do domínio sereno; se encontra em torno resistência então é a delícia maior da luta interessante. Só não sai gozo forte e viril da inércia que se deixa arrastar mudamente, num silêncio e macieza de cera… Então, por aquela ternura atenta do mais poético dos Ramires, Gonçalo sentiu que a sua ascendência toda o amava — e da escuridão das tumbas dispersas acudira para o velar e socorrer na sua fraqueza. E agora ali voltava, como um varão novo, soberbamente virilizado, liberto enfim da sombra que tão dolorosamente assombreara a sua vida, a sombra mole e torpe do seu medo”.
E no final, em diálogo entre personagens coadjuvantes, Eça de Queiroz nos oferece um panorama realista do ser humano, de todos nós: “A bondade, sobretudo como a do Sr. Gonçalo, também salva… Olhe, às vezes há um homem muito sério, muito puro, muito austero, um Catão que nunca cumpriu senão o dever e a lei… E todavia ninguém gosta dele, nem o procura. Porquê? Porque nunca deu, nunca perdoou, nunca acarinhou, nunca serviu. E ao lado outro leviano, descuidado, que tem defeitos, que tem culpas, que esqueceu mesmo o dever, que ofendeu mesmo a lei… Mas quê? E amorável, generoso, dedicado, serviçal, sempre com uma palavra doce, sempre com um rasgo carinhoso… E por isso todos o amam, e não sei mesmo, Deus me perdoe, se Deus também o não prefere…”
A continuação é não apenas um tributo ao Gonçalo e aos homens de boa vontade, mas uma homenagem, tímida, carinhosa ao próprio pais:
— “Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe o Sr. Padre Soeiro quem ele me lembra?
— Quem?
— Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que notou o Sr. Padre Soeiro… Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua ideia… A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?… A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar… A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades… A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo… Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa… Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos… Até agora aquele arranque para a África… Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
— Quem?
— Portugal.”
Ai está o canto a Portugal que Eça de Queiroz personifica na figura do fidalgo, convidando-nos, mais uma vez, a apreciar agradecidos a finura discreta no agir, e a riqueza do idioma no falar, que nos chegou do outro lado do Atlântico.
Comments 2
Que bom saber que mais alguém sente necessidade de “uma lufada de ar” para não morrer asfixiado pela ausência de gramática, de concordância e de “S ” que que nos cerca nos tempos de hoje..
Análise muito interessante sobre a necessidade do personagem de origem aristocrática de dar continuidade à missão de cultivar os nobres valores do passado. Fazendo a conexão com a própria história de Portugal, o autor valoriza a tradição e o reencontro com as glórias do passado. Uma visão interessante a ser trazida para as gerações atuais que se acostumaram a associar todo o passado com a imagem de tempos sombrios e condenáveis.