Domenico De Massi: Alfabeto da Sociedade Desorientada.
Domenico De Massi: Alfabeto da Sociedade Desorientada. Ed. Objetiva. Rio de Janeiro, 2017. 600 págs.
Eis um livro difícil de ler, incômodo. Ou talvez não é para ser lido, apenas consultado. Essa foi a conclusão à qual cheguei após iniciar a leitura, parar, retomar, parar novamente, e enfrentar, agora sim, com leitura dinâmica, em diagonal. Porque no fundo, não é propriamente um livro -onde se desenvolve uma tese, um pensamento ou ensaio- mas um acúmulo de conhecimentos (ninguém pode negar isso ao autor), empilhados a modo de dicionário, ou, talvez de enciclopédia. Daí o nome, alfabeto, que é apenas um recurso para falar de tudo, atrelado à cada letra.
Vale a pena ler a orelha. Mas querer falar de tudo é um pouco cansativo. Ninguém le um dicionário por mais informação que isso lhe traga. Erudição enorme, que na prática é difícil transformar em cultura. Um índice de verbetes no final -um dicionário deste dicionário- ajudaria na hora de consultar. Ler direto é tarefa inglória. O tempo do enciclopedismo já passou. Se isso é árduo para os que nos consideramos leitores razoáveis, pode se imaginar o desânimo que causa nos menos familiarizados com os livros, e para os jovens de hoje. Por outro lado, o formato não permite usá-lo como obra de consulta -que seria utilíssima. Enfim, uma erudição de difícil aproveitamento. O muito que eu não sei…..Mas embora a ideia seja guiar, não nos dá uma pauta de prioridades. Pode ser que a emenda saia pior do que o soneto. E afinal, quando há muitas árvores, acabamos não enxergando o bosque.
Dito isto -sem perder o respeito pelo autor, que já conhecia e admirava pelo conceito muito bem desenvolvido do ócio criativo- é justo apontar alguns trechos que, nessa leitura rápida -como um drone, desde a altura- me chamaram a atenção.
Na B- de Beleza, aponta: “A acolhida é a súmula das virtudes humanas. É a globalização da disponibilidade contraposta à globalização da indiferença, do individualismo de massa, da recusa agressiva do outro. (ideia que o Papa Francisco também repete, embora ele não cite). Conferir beleza a uma coisa significa resgatá-la da opacidade, da indiferença. Penso que a estética da vida pós-industrial não consiste apenas em reduzir a nossa agenda, mas principalmente em conferir um sentido, uma interconexão vital em tudo o que fazemos, pequeno ou grande que seja. Consiste na capacidade de recolocar continuamente em jogo os equilíbrios que nossa preguiça nos leva a construir e a tornar definitivos”
Em C, criatividade, escreve: “Produzir criatividade nas organizações consiste em formar sábias misturas de pessoas imaginativas e pessoas concretas, cada uma fiel à própria vocação natural: consiste em criar um clima de recíproca tolerância e estima; em tornar esse clima entusiasmante e incandescente graças a uma missão compartilhada e a uma liderança carismática (…) Introduzir controles severos no trabalho intelectual, diminui a motivação e reduz o rendimento, cria um círculo vicioso, quanto mais controle maior renúncia à eficiência. Da motivação depende a tenacidade, a coesão, a flexibilidade, a inclinação a conjugar trabalho e diversão, empenho e tempo livre, família e profissão, a capacidade de transformar os vínculos em oportunidades, os conflitos em estímulos, a combatividade em colaboração”. E anota um fato -dos muitos que ele cita no livro- que me pareceu curioso e que não sabia: “Quando em 1930, a ameaça japonesa debruçou-se sobre o mercado têxtil americano, este se defende criando o Nylon que significa: Now you loose, old nippon”.
O ócio criativo, o tema dele, aparece uma e outra vez. Joseph Conrad: “Como faço para explicar à minha mulher que quando olho pela janela estou trabalhando? De fato ele estava se inspirando, criando. Ócio criativo não é indolência, preguiça, falta de empenho, dolce far niente que nada tem de doce. É o estado que se alcança quando se faz algo que, ao mesmo tempo, nos dá a sensação de trabalhar, de estudar, e de nos divertirmos. Algo com que simultaneamente produzimos riqueza, aprendizagem e alegria. Ficamos tão desabituados a fazer as coisas com calma que, assim que dispomos de uma horinha a mais, imediatamente a entupimos com tantos compromissos que sempre acaba faltando tempo”.
No entanto, o capitulo O- Ócio, pareceu-me fraco, esperava mais. O flerte que o autor tem -ele mesmo o diz- com a palavra ócio serviu para atrair o leitor pelo título porque, no fundo, o leitor fisgado é um hiperativo, sente falta do ócio.
Na letra F- Frankenstein, Fausto, comenta sobre os riscos da técnica, e a sedução dos Mefistófeles modernos, em busca de um momento de felicidade (de controle, de segurança, diríamos hoje) e o preço a pagar.
H- Hobby, contém frases felizes: Não é do trabalho que nasce a civilização; ela nasce do tempo livre e da diversão. (Alexandre Koyré). Vivemos na época do trabalho excessivo, em que as pessoas são tão laboriosas que se tornam tolas (Oscar Wilde). Descansar do que? -dizia Rubinstein – Quando quero descansar, viajo e toco piano (…) Diversão e descanso, dão sentido às coisas de todos os dias, muitas vezes de grande beleza, às vezes insignificantes à primeira vista, sempre iguais e diferentes, rebaixadas pelo consumo cotidiano, mas recuperáveis pelo nosso interesse, graças à educação do gosto. Sob este aspecto, educar-se significa recuperar a importância da nossa perene imaturidade, como se fossemos eternas crianças.
O capítulo I- Interpretação aponta: “Expomo-nos a todo tipo de programas, mesmo que não nos interessem minimamente; deixamos que nos prendam e nos preencham; submetemo-nos docilmente à sua intrínseca tolice ou à sua melosa desonestidade intelectual; agimos com eles, como eles, para eles a para suas finalidades, em vez de administrá-los conscientemente e para nossos próprios fins.
Segue-se a M- Midia, onde diz: “A nossa ignorância nos leva a crer que ela depende mais da falta de informações do que da nossa capacidade elaborá-las: basta entupir a mente com noções e eis que ela, como que por milagre, se torna inteligente e culta. Daqui a propensão ao uso desmoderado, automático, acrítico, perene, ubíquo da mídia …É preciso adquirir, paralelamente, a capacidade de uma elaboração crítica indispensável para decodificar, selecionar e metabolizar as mensagens, em vez de ser colonizado por elas. ….Pessoas carregadas de informação, e culturalmente vazias (…) É preciso adotar dietas rigorosas em relação às mensagens que a mídia nos apresenta e que, quando ingeridas em doses excessivas, podem causar aos nossos neurônios danos comparáveis aos que o colesterol causa às nossas coronárias. Uso judicioso da internet e de todas as formas comunicativas ligadas à ela”. Belo recado!!
A enorme quantidade de informação que mistura nos diversos capítulos, fazem a leitura um salada de difícil digestão. Como quando pula de Tocqueville – “o trabalhador que consome parte da sua existência naquele trabalho, imobiliza-se naquele objeto de trabalho, adquire hábitos dos quais não lhe é mais permitido separar-se”- para….. Berlusconi. Salto que dificilmente consigo acompanhar. Ou quando fala de Nápoles, com desprezo: “Enquanto o resto do mundo inventava o plástico e os microprocessadores, a pilha atómica e os satélites artificiais, em Nápoles insistiam com essa bendita pizza e suas surradas variantes”.
Há capítulos que exigiriam uma leitura isolada, pois embora saturados de diletantismo, são um mergulho de aventura como o Q- Quixote. Ou o V- de Václav Havel, um breve ensaio biográfico sobre o intelectual e político Tcheco. Cita Havel: “Percebi que as pessoas que ocupavam os ambientes governativos eram desprovidas de bom gosto; eu penso que quem não tem bom gosto não pode governar bem”. Ou no X- Xenos, (estrangeiro em grego), com destaque para a citação de André Gide: “quanto menos inteligente é o branco, mais o negro lhe parece estúpido”.
Enfim, mais do que um livro, um acúmulo de conhecimentos -nem sempre úteis. Alguns em dissonância com o meu pensamento (por exemplo, no capítulo do Ócio, cita autores que me parecem coadjuvantes, e omite Pieper (O ócio e a vida intelectual, Uma teoria da festa). Sem dúvida, uma demonstração da cultura de Di Masi, ou talvez da erudição. Para ser cultura, teria de ser apresentado de modo palatável, que aproveitasse melhor ao leitor, e não criasse anticorpos contra conceitos que, em si, são de suma importância. Algo que o escritor sabe e defende.
Encerro esta pendência, um pouco penosa, pois afinal ganhei este livro num Natal há alguns anos. E li, ou folheei, em prestações, nem sempre cômodas. Estas linhas transcrevem a minha experiência fenomenológica de uma leitura árdua, que espero aproveite a outros. Para que não mergulhem na leitura, e sim pincem capítulos -letras do alfabeto- que lhes chamem a atenção, ou estejam nesse momento, em disposição de ler.
Comments 2
Um comentário honesto, e por isso mesmo valioso. Compro o livro amanhã. Obrigada
Simplesmente, espetacular!