Svetlana Aleksiévitch: O fim do homem soviético

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

Companhia das Letras. São Paulo. 2016. 600 págs

Após alguns anos de pausa, volto sobre os escritos da prêmio Nobel bielorrussa, sabendo o que vou encontrar: narrativas jornalísticas que chegam na intimidade, conversas na cozinha. Assim foi com aquele magnífico livro, onde tomei contato com a sua prosa surpreendente, A Guerra não tem rosto de Mulher. E também em Vozes de Tchernobil,  história oral, no melhor estilo.

Agora, chega o momento de se debruçar sobre o fim do homem soviético. Alguns amigos já tinham lido, elogiado, e por conta das recomendações acabamos escalando para a nossa tertúlia literária mensal. E vale advertir que se os livros de Svetlana são uma colcha de retalhos, qualquer tentativa de resumo está destinada ao fracasso. Melhor encarar como pinceladas avulsas de um quadro impressionista, manchas que na distância ajudam a entrever figuras e paisagem, sem atentar ao detalhe.

Logo no início, Svetlana adverte que o que lá vai contar são “observações de uma cúmplice”. Assim introduz o assunto -na verdade, as conversas que tecem a modo de mosaico- um tema que é complexo, e nada uniforme. “Eu escrevo, procuro nos grãozinhos e nas migalhas a história do socialismo “doméstico”… do socialismo “interior”. De como ele vivia na alma humana. Sempre sinto atração por esse pequeno espaço: o ser humano… um ser humano. Na verdade, é lá que tudo acontece (…) Não canso de me surpreender com o quão interessante é a vida humana comum. A infinita quantidade de verdades humanas… A história se interessa apenas pelos fatos, mas as emoções ficam à margem. Não é costume admiti-las na história. Eu, porém, olho para o mundo com os olhos de uma pessoa de humanas, não de historiadora. E me surpreendo com o ser humano”.

E também nos situa no contexto, na psicologia do povo russo. “No geral, somos um povo bélico. Ou guerreávamos ou nos preparávamos para a guerra. Nunca vivemos de outra maneira. Daí vem uma psicologia bélica (…) O russo não entende a liberdade, ele precisa do cossaco e do açoite. O tempo todo o ser humano deve escolher: a liberdade ou o bem-estar e a ordem na vida; a liberdade com sofrimento ou a felicidade sem liberdade. E a maioria das pessoas escolhe o segundo caminho (…) Metade dos jovens de dezenove a trinta anos considera Stálin “um grande político”. Num país em que Stálin aniquilou mais pessoas do que Hitler, um novo culto a Stálin?! Tudo que é soviético está de novo na moda. Encontrei na rua jovens usando camisetas com a foice e o martelo e o retrato de Lênin. Será que eles sabem o que é o comunismo?”. Está apresentado o mapa -um verdadeiro labirinto- para ir transitando pelas opiniões -variadas, opostas, diversas- dessas conversas que a autora tem com as pessoas, na intimidade dos lares, na cozinha.

E assim intitula o primeiro capítulo: Sobre o ruído das ruas e as conversas na cozinha. “A cozinha para nós não é apenas um lugar para preparar as refeições; é também sala de jantar, sala de estar, escritório, tribuna. Um lugar para sessões coletivas de psicoterapia (…) Vivíamos com miragens. Essa Rússia que estava nos livros e nas nossas cozinhas nunca existiu. Só na nossa cabeça. Mas agora ninguém tem tempo para os sentimentos; todos querem ganhar dinheiro. A descoberta do dinheiro é como a explosão de uma bomba atômica…”

Surgem as críticas ao novo mundo pós soviético: “A Rússia sempre foi um inimigo para o Ocidente, eles têm medo dela. É um espinho na garganta. Ninguém quer uma Rússia forte, com os comunistas ou sem eles (…) Foi uma operação da CIA. Nós já somos governados pelos americanos. O Gorbatchov foi muito bem pago para isso. E aí terminaram as nossas vigílias noturnas na cozinha e começaram os salários fixos, os ganhos extras. O dinheiro virou sinônimo de liberdade. Isso mexeu com todo mundo”.

Críticas que de algum modo apresentam saudades do estilo soviético estabelecido, e agora derrubado. “Eram montes de livros! Os intelectuais estavam vendendo suas bibliotecas. É claro que o público tinha empobrecido, mas não era por isso que estavam se desfazendo de seus livros, não só por dinheiro: os livros tinham decepcionado. Uma decepção completa. Já tinha virado inconveniente fazer a pergunta: ‘E o que você está lendo agora?’. Muitas coisas tinham mudado na vida, mas isso não estava nos livros. Os romances russos não ensinam a ter sucesso na vida. Como ficar rico…Oblómov fica deitado no sofá, e os heróis de Tchékhov ficam o tempo todo tomando chá e reclamando da vida (…) O russo precisa acreditar em alguma coisa. Acreditar em algo luminoso, elevado. O império e o comunismo estão alojados no nosso subcórtex. Preferimos as coisas heroicas. A Rússia só pode ou ser grande, ou não ser coisa nenhuma. Precisamos de um exército forte. Até hoje acho bom escrever: URSS. Aquele era o meu país, agora eu moro num país que não é meu. Vivo num país estranho (…) O juramento era ‘juro por Stálin’. Meus pais sabiam que, se eu dissesse ‘juro por Stálin’, eu não estava mentindo. Meu Deus! Eu não me lembro do Stálin, eu me lembro da nossa vida…Não corremos atrás da liberdade, corremos atrás de jeans… de supermercados… Fomos corrompidos por embalagens brilhantes”.

Confesso que a leitura me surpreendeu. Gente com saudades do mundo soviético, enquanto nós, ocidentais, pensávamos que estavam finalmente alcançando um almejada liberdade. Continuam as conversas: “Tinha mais comunista sem a carteirinha do Partido do que com a carteirinha, eles eram comunistas de alma. Como era a liberdade? A liberdade para nós era como óculos para um mico. Ninguém sabia o que fazer com ela (…) Toda família tinha dois quartinhos, um galpãozinho e uma horta. Era todo mundo igual. Olhe só o que nós ganhamos com o trabalho! Para ficar rico! Passamos a vida toda acreditando que em algum momento viveríamos bem. Que mentira! Que grande mentira! E a vida… é melhor nem lembrar… Suportamos, trabalhamos e sofremos. Mas agora não vivemos mais, só passamos o tempo, dia após dia”.

Narrativas em primeira pessoa, que mostram o desconcerto de quem nunca viveu de outro modo. “Quanto?’, perguntou meu marido e apontou para a medalha ‘Por bravura’. ‘Estamos vendendo por vinte dólares. Tudo bem, eu faço por mil rublos a ‘peça’.’ ‘E a Ordem de Lênin?’ ‘Cem dólares…’ ‘E a sua consciência?!’ Meu marido estava disposto a arranjar briga. ‘Você é zureta ou o quê? Saiu de que buraco? São objetos da época do totalitarismo. Foi o que ele disse… Que era só ‘sucata’, mas que os estrangeiros gostavam, que agora entre eles estava na moda a memorabília soviética. Eram produtos com muita procura. Eu comecei a gritar… Chamei o policial… Gritei: ‘Veja! Veja… Olhe só…’. O policial confirmou para nós: ‘São objetos da época do totalitarismo… Só podemos levar à justiça se forem drogas ou pornografia…’. E uma carteirinha do Partido por dez dólares não era pornografia? A Ordem da Glória… Ou então a bandeira vermelha com o retrato de Lênin, por um punhado de dólares? Tínhamos a sensação de estar no meio de um cenário. De que estavam aplicando um trote em nós. Nós tínhamos ido parar no lugar errado. Eu fiquei lá, chorando. Do nosso lado, os italianos estavam provando os capotes militares e os quepes com estrelas vermelhas”.

A memória da guerra patriótica, a vitória contra os alemães, é também a tónica destas narrativas revoltadas: “Eu, por exemplo, não preciso ser convencido disso, eu mesmo sou de lá, sou daqueles anos. Eu mesmo vi como as pessoas trabalhavam, com que fé. A tarefa não consiste em atenuar ou esconder nada. Não tem o que esconder, o que ocultar. À luz do que aconteceu em nosso país e que todos já sabem, tem como brincar de esconde-esconde? Mas a guerra contra o fascismo nós vencemos, não perdemos. Nós temos a Vitória. Eu me lembro dos anos 1930… Outros cresceram como eu. Dezenas de milhões. E nós construímos o socialismo com consciência. Estávamos dispostos a fazer qualquer sacrifício”.

E no meio destas narrativas, considerações que fazem lembrar os clássicos russos, o conhecimento profundo do ser humano: “ Fico lembrando as palavras do meu pai: ‘É possível sobreviver aos campos de trabalho, mas às pessoas não! Não tem animal pior que o homem. É o homem que mata o homem, não a bala. O homem que mata o homem…! Para qualquer dor o nosso remédio é um só: paciência (…) Eu li os seus livros… Você faz mal em confiar assim no ser humano… na verdade humana… A história é a vida das ideias. Não são as pessoas que escrevem, é o tempo que escreve. E a verdade humana é um prego em que cada um pendura o seu próprio chapéu”

Não existe unanimidade nos testemunhos, algo que surpreende também o leitor ocidental que tende a fazer uma leitura de bandidos e mocinhos, quando o assunto é muito mais complexo: “Gorbatchov me é caro, mas a pátria me é mais cara! Que fique na história ao menos o indício de que alguém protestou contra o fim de tão grandioso Estado. E a história julgará quem está certo e quem é culpado…Que começariam a ameaçar os comunistas com Nuremberg… E os juízes, quem seriam? Uns comunistas julgariam outros comunistas: os que saíram do Partido na quarta-feira julgariam os que saíram do Partido na quinta. Que mudariam o nome de Leningrado… o berço da Revolução…O Stálin criou um Estado que era impossível atingir por baixo, ele era impenetrável. Mas por cima era vulnerável, sem defesas. Ninguém pensou que fossem tentar destruí-lo por cima, que os altos dirigentes do país tomariam o caminho da traição. Renegados”.

Dentro desse turbilhão de histórias, destaca a alma russa, que é imperialista, precisa de um Tzar, como os britânicos precisam da Coroa. “O nosso país tem uma mentalidade tzarista, está no subconsciente. Nos genes. Todos precisam de um tzar. Ivan Grózny (na Europa ele é chamado de ‘o Terrível’), que verteu o sangue das cidades russas e perdeu a guerra da Livônia, é lembrado com temor e admiração. Como Pedro I , como Stálin. Já Alexandre II , o Libertador… o tzar que deu a liberdade à Rússia… foi assassinado…Os tchecos podem até ter o seu Václav Havel, mas nós precisamos de um tzar. Um tzar, um paizinho! Tanto faz se é secretário-geral ou presidente, de qualquer maneira é um tzar.”

As denuncias -antes e depois da Perestroika- vem de dentro, dos amigos, da família, dos conhecidos. “Na mesa do investigador, estava a denúncia, assinada — eu não acreditei! — pelo nosso vizinho. Reconheci a letra. A assinatura. Eu poderia dizer que ele tinha sido meu camarada desde a Guerra Civil. Neguei tudo. Me bateram. Me chutaram. Era tudo gente nossa. Eu tinha uma carteirinha do Partido, eles também tinham uma carteirinha do Partido. E a minha esposa também tinha uma carteirinha do Partido (…) Minha mãe trabalhava numa panificadora, lá tinha controle, e acharam nas luvas dela migalhas de pão, e isso já era sabotagem. Deram dez anos de prisão”

As saudades que alguns apontam do mundo soviético, contrastam com as revoltas daqueles que nunca aceitaram: “Que heróis somos nós? Nunca fomos tratados como heróis. Eu e minha esposa criamos nossos filhos num barracão, depois deram um apartamento comunal. Agora nós recebemos uns trocados… é de chorar essa aposentadoria… Na televisão mostram como os alemães vivem. Muito bem! Os vencidos vivem cem vezes melhor que os vencedores (…) Não gosto da palavra ‘herói’… na guerra não tem herói… Se uma pessoa pegou uma arma na mão, ela já não é boa. Não consegue. Agora quem escreve sobre a guerra são aqueles que não estiveram nela. Eu não leio… Não fique ofendida, mas eu não leio. Eu esqueci tudo… até o amor eu esqueci… Mas da guerra eu ainda me lembro”.

Eis a voz dos pós soviéticos: “O socialismo é uma alquimia. Uma ideia alquímica. Nós saímos voando para a frente, mas sabe-se lá aonde chegamos. ‘Quem você deve procurar para entrar no Partido Comunista?’ ‘Um psiquiatra.’ Mas eles… os nossos pais… a minha mãe… eles querem ouvir que a vida que eles tiveram foi grandiosa, não medíocre, e que eles acreditavam em algo em que valia a pena acreditar. Acreditavam que o comunismo cairia, e que o russo imediatamente correria para aprender o que é a liberdade, mas ele correu para aprender a viver. A viver! Queria provar tudo, lamber tudo, morder tudo. Aqui uma comida gostosa, ali uma roupa da moda… viagens… Ele queria ver as palmeiras e o deserto. Os camelos… E não arder e ficar queimado, correndo o tempo todo para lá e para cá com uma tocha e um machado. Não, simplesmente viver, como os outros viviam… Na França e em Mônaco. Isso éramos nós! Era a nossa vida! Éramos assim… Imagine um carrasco e uma vítima de Auschwitz sentados no mesmo escritório e recebendo seus salários no mesmo guichê da contabilidade. Com as mesmas condecorações depois da guerra. E agora com as mesmas aposentadorias”

Críticas, desconcerto, enfim, o complexo entramado do mundo russo: “Alguém fez uma observação precisa: em cinco anos, pode mudar tudo na Rússia, mas em duzentos anos, nada. Paisagens intermináveis, mas mentalidade de escravos… Não dá para reconstruir a Rússia nas cozinhas de Moscou. Trouxeram de volta o brasão imperial, mas o hino continuou sendo o stalinista. Moscou é russa… capitalista… Mas a Rússia continuou sendo soviética como antes. Lá não conseguiram ver os democratas pela frente, e se tivessem visto teriam acabado com eles. A maioria quer uma ração e um líder. Rios de vodca caseira barata… ( Risos. ) Eu sinto que nós duas somos da geração ‘da cozinha’… Começamos falando de amor, mas cinco minutos depois já estamos discutindo como arrumar a Rússia. Sendo que a Rússia não está nem aí para nós, ela vai vivendo a vida dela”

Seguem-se outras narrativas, em variações sobre o mesmo tema: “Se não tem documento, não é ser humano… — Um homem sem pátria é um cão abandonado… Qualquer um pode ofender. A polícia para dez vezes por dia: ‘Mostre os documentos’. Um papel você tem, o outro não. Se não der dinheiro, eles batem (…) São ensinados: ‘A pior coisa é vocês verem os manifestantes como pessoas Primeiro batem, depois pensam, ou talvez nem pensem. (…) A morte tinha cheiro de pontas de cigarros, de anchovas comidas pela metade e de vodca. Não é necessariamente uma velha desdentada com uma foice, talvez seja uma moça bonita. E eu hei de vê-la. O comandante pediu: ‘Só não se matem com tiro. É mais fácil dar baixa em gente do que em munição’. A vida do soldado vale menos do que uma arma registrada (…) Eu vou é deixar tudo aqui’, disse o chefe do hospital militar. ‘Não quero levar a guerra para casa.’ Nós não trouxemos a guerra nas coisas, mas na alma…”

E, sempre, no meio das histórias o lirismo da alma russa, o sabor clássico: “As pessoas felizes são sempre infantis. Elas precisam ser cuidadas, são frágeis e meio ridículas. Indefesas (…)A mulher russa nunca teve um homem normal. Ela tem que cuidar dele, cuidar. O homem é para ela um pouco herói, um pouco criança. Salva o homem. Até hoje. Ela tem o mesmo papel. Afinal, nós tínhamos milhares de militares sem trabalho, pessoas que só conheciam metralhadoras e tanques. Não serviam para outro tipo de vida. Nossas mulheres têm que ser mais fortes que os homens. Andam pelo mundo inteiro com suas bolsas quadriculadas (…) Os homens sempre falam da guerra, adoram armas; tanto os velhos, como os jovens… Já as mulheres relembram o amor… As mulheres mais velhas contam de como elas eram jovens e bonitas. As mulheres nunca falam da guerra… elas só ficam rezando por seus maridos (…)Eu sempre adorei filmes de guerra, as mulheres esperando seus maridos do front, não importando como eles voltariam: sem pernas, sem braços, mas vivo. Minha avó contava: no nosso vilarejo, trouxeram de volta um sem as duas pernas, então a esposa carregava o marido nos braços pelo quintal. E ele ficava bebendo, causando transtorno. Caía na sarjeta, ela ia lá levantar o homem, lavava em uma tina e colocava em uma cama limpa. Eu achava que aquilo é que era amor”.

Considerações que salpicam as histórias, conferindo um paladar clássico: “Nós somos salvos pela quantidade de amor recebido, é a nossa reserva de força. Pois é… Só o amor nos salva. O amor é aquela vitamina sem a qual o ser humano é incapaz de viver, o sangue coagula, o coração para (…) Ele teve um único pedido: ‘Escreva na pedra que vai ficar em cima do meu túmulo que eu fui um homem feliz. Fui amado. A tortura mais terrível é não ser amado”. E até pontos de humor e dúvida: “É claro que eu sou ateu, mas já na velhice um ateu inseguro”

A variedade de opiniões plasmadas nas narrativas, tem um denominador comum: o modo russo de ser, algo muito peculiar que é o pano de fundo de toda esta obra. “O russo se entusiasma demais. Antes ele se sentia atraído pelos ideais do comunismo, com furor, passou a encarnar isso na vida com um fanatismo religioso; depois cansou, se decepcionou. E decidiu romper com o velho mundo, jogou uma pá de cal naquilo. Isso é bem russo, começar tudo do zero. E de novo somos enfeitiçados por ideais que nos parecem novos. Adiante, rumo à vitória do capitalismo! Logo viveremos como no Ocidente! Sonhos cor-de-rosa (…) Todo mundo precisa das nossas riquezas naturais, principalmente a Europa. Abra uma enciclopédia: nossas reservas de petróleo ocupam o sétimo lugar, e de gás, o primeiro lugar da Europa. Somos um dos primeiros colocados em reservas de minério de ferro, urânio, zinco, cobre, níquel, cobalto… Temos diamante, temos ouro, temos prata, temos platina… Possuímos toda a tabela periódica de Mendelêiev. Um francês me disse uma vez: mas por que tudo isso pertence a vocês se a terra é uma só? A questão não é o Iéltsin nem o Putin, mas o fato de que nós somos escravos. Esse nosso espírito servil! Esse nosso sangue servil! Veja só o ‘novo-russo’… Ele desce de um Bentley, o dinheiro cai do bolso dele, mas ele é um escravo”.

Continuam as disseções do modo russo de ser: “E por que é que eu li tantos livros? Acreditava no Tchékhov… Foi ele que escreveu que é preciso extrair gota por gota do escravo que há em nós, e que no homem tudo deverá ser maravilhoso: tanto a alma, como as roupinhas e os pensamento. Mas acontece o contrário! O contrário! Às vezes a pessoa quer ser escravo, ela gosta disso. Do ser humano só se pode extrair gota a gota o ser humano (…) Nós estávamos acostumados com a ideia de que o russo não queria ser rico, tinha até medo. O que é que ele queria, afinal? Mas ele sempre quis uma coisa: que o outro não fique rico. Mais rico que ele (…) A pessoa não está preparada para a felicidade, está preparada para a guerra, para o frio e para o granizo. Eu nunca… nunca conheci ninguém feliz, além da minha filha de três meses… O russo não está pronto para a felicidade. Com petróleo e gás não dá para comprar democracia, não dá para importar, como banana ou chocolate suíço. Não dá para determinar com um decreto presidencial… Tem que ter pessoas livres, e elas não existiam. E ainda não existem. Na Europa, a democracia foi cultivada durante duzentos anos, como um gramado”.

A queda do comunismo, dá lugar ao “turismo soviético”, o que obviamente revolta os russos: “As agências de turismo de Moscou oferecem a esses clientes diversões especiais. Dois dias na cadeia, por exemplo. Por um valor de três a cinco mil dólares você também pode brincar ‘de mendigo’: os interessados ganham outra roupa, são maquiados e levados pelas ruas de Moscou, para pedir esmola. É claro que atrás da esquina os guarda-costas ficam vigiando, tanto os próprios como os da agência de turismo. Tem um pacote turístico para a Tchetchênia. Levam nos helicópteros militares e mostram Grózny destruída, as aldeias queimadas. Lá tem guerra e gente construindo, tudo ao mesmo tempo. Atiram enquanto constroem. E mostram. Nós ainda estamos chorando, mas já tem gente vendendo as nossas lágrimas. O nosso medo. Estão vendendo, como fazem com o petróleo”

Manifestações, comícios, revoltas, cada um protestando desde o seu ponto de vista. E, parece, que não existe um consenso: “A multidão é um monstro, uma pessoa na multidão fica completamente diferente daquela pessoa com quem você sentava na cozinha e conversava. Fomos à primeira manifestação juntas, sendo que a minha mãe tem 75 anos. Ela é atriz. Compramos umas flores, para garantir. Não iam atirar em pessoas segurando flores! (….) Prometeram para nós que a democracia é quando tudo vai bem. Tudo é justo. Honesto. Isso é tudo um engano… A pessoa é pó… é um grão de poeira… A única diferença é que agora o mercado é cheio de coisa. Pegue! Pegue! No socialismo não tinha isso. É claro que eu sou uma simples mulher soviética… Ninguém me escuta mais, porque eu não tenho dinheiro. Se eu tivesse dinheiro, aí a conversa seria outra. Eles teriam medo de mim… os chefes… Agora quem manda é o dinheiro…… ‘O Pútin é um clone do Stálin…’, ‘Isso vai longe…’, ‘É uma merda para o país inteiro”

Quase no final, um relato espasmódico de quem sente-se enganado com o novo mundo pós soviético: “Na época dos comunistas eu trabalhava de engenheiro, agora estou aqui, nesse trampo de motorista. Expulsaram um grupo de canalhas, e outros vieram. Pretos, cinzentos, cor de laranja: eles são todos iguais. Aqui o poder estraga qualquer pessoa. Sou realista. Confio só em mim e na minha família. Enquanto os idiotas da vez fazem a revolução da vez, eu dou duro. Dinheiro! Dinheiro! É como o nosso professor de física ensinava: ‘O dinheiro resolve tudo, até equações diferenciais’. É a dura verdade da vida. Mas e os ideais? Quer dizer que não existe nada disso? Talvez você possa me dizer alguma coisa. Afinal, você escreve livros…No ônibus, nosso vizinho sentou do meu lado. Bêbado. Começou a falar de política: ‘Eu queria dar uma na fuça de cada um desses democratas malditos. Vocês levaram foi pouco. Palavra de honra! Tinha que fuzilar esses aí. A minha mão não iria tremer. São os americanos que estão pagando tudo… A Hillary Clinton… Mas somos um povo resistente. Sobrevivemos à perestroika, também vamos sobreviver à revolução” Fecho o livro e me pergunto -sem esperança de encontrar resposta- o que sobrou de tudo isto. Lembrei-me de Soljenitsyn, que li na minha juventude – Um dia na vida de Ivan Denisovitch, Pavilhão dos Cancerosos, Arquipélago Gulag. Um dissidente que criticava o regime soviético, mas advertia dos perigos do consumismo ocidental. Profético. O mundo pós soviético contempla uma liberdade que era gerenciada pelo estado dando passo a um mundo onde cada um deve pilotar sua própria liberdade. E, como sabemos, isso entranha muitos riscos. A liberdade humana -na qual nem Deus quer intervir, pois é a concessão feita ao ser humano- é uma aventura onde se alternam heroísmos e misérias. Diariamente, a todo momento, como observamos  no quotidiano. Uma das últimas frases que anotei dos relatos de Svetlana, oferece um belo final, que nos salva do pessimismo: “Se a pessoa conheceu o amor, você pode sempre recorrer a ela”. O amor é o recurso para pilotar com sabedoria a liberdade, agora em auto gestão própria.

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