Interlúdio Poético. Katia Gomes: Avesso

Pablo González Blasco Livros 1 Comments

93 págs. Nova Literarte. São Paulo. 2022

Não sou especialmente aficionado a poesia. Gosto sim, quando o verso me golpeia e me faz pensar. Talvez por isso, guardo no meu acervo -e no meu coração- poemas de alguns poetas, que também utilizo nas minhas aulas quando desenvolvo a educação humanista. São como uma pista de decolagem para voos de altura. Mas nunca me aventurei neste espaço a fazer comentários -menos ainda tecer críticas- de obras poéticas. Porém, o autógrafo da autora quando me entregou o livro, é provocador: que a poesia sempre traga boas reflexões. Não tive como evitar, pois, este interlúdio poético.

Li o livro, folheando com calma, voltei, li de novo. Porque a poesia é assim: provocadora. Deparei-me com poemas curtos, afiados, como quadros de uma exposição. Andas com vagar, olhas, reparas neste, naquele; um te seduz, olhas demoradamente. Se te permitem até tiras uma fotografia, sem saber exatamente por quê. Fisgou-te; sentes que precisas olhar de novo, depois, com calma.

Apesar da minha pouca familiaridade para julgar a poesia, tropeço com o prefácio, onde leio algo análogo ao que vinha sentindo na frente desses quadros. Copio: “Dispondo-as em poemas curtos, com a objetividade de seu pensamento, de belas ideias inspiradoras que ela transformou em versos leves, deixando fluir toda a bagagem que estava armazenada nas gavetas de seu coração sensível de poeta, que enxerga o mundo com nuances de sonhos entrelaçados com a realidade, com tessituras de horizontes bordando o tecido do tempo”. Parece, pois, que não estou tão fora de sintonia. Como resumir -comentar?- poemas? Tarefa inglória. Anoto alguns que me chamam especialmente a atenção. As fotos dos quadros que me piscaram. E lá percebo a força de vontade, a afirmação de que pode se viver feliz e alegre, basta com se propor:

A tristeza é um precipício
A alegria é um exercício
A felicidade é opção
Decisão
A determinação
De plantar e colher o pão
Em qualquer chão.

O entardecer de azul profundo
Entoado ao canto de sabiás e bem-te-vis…
Traz-me à vida,
Reconstrói em mim alguém
Que fui,
Refaz em mim o que Ainda quero ser.
E para o tempo
E volta o tempo
E avança o tempo.
O profundo azul do entardecer,
Do viver,
Do querer
É poder

De que a vida é muito rica para perder-se em mágoas estéreis, em desentendimentos que a nada conduzem.

Faço aqui as contas
De prós e contras
E concluo com certa serenidade
Que a probabilidade
E que tenho mais passado
Que futuro;
E que minha moeda mais valiosa
Sempre foi só uma:
O tempo.
Nunca prestei contas a mim mesma
De como o gastei;
E hoje sei
Que é bobagem desperdiçá-lo
Com mágoas ou desentendimentos;
Melhor deixar tudo pra lá!
Trocar lágrimas por sorrisos,
Rir de mim mesma,
Nunca mais perder uma lua cheia,
Sair para ver o mar,
Deixar o amor brotar,
Distribuir abraços,
Reduzir espaços,
Seguir assim
Até o fim!

Quando penso em uma canção,
Penso algo grande,
uma composição,
Uma melodia, preparada, elaborada.
Hoje digo canção simplesmente,
Como um canto
Que está em todo canto
E que aqui canto.
Todo dia é um canto,
Pois se bem reparado,
Tudo tem seu encanto,
Tanto,
Que em qualquer canto
Se pode enxugar o pranto
Que se converte em canto,
Em todo e qualquer canto.

Ah! Essa vida
Em fatias
Servida tão quente
Que o que se perde
É essencialmente
O presente!

Um aparte
Ser parte
Ou separar-te?
É preciso ser parte
E ser todo
Para não se partir todo

O amor e as discórdias, que na pena da autora tem fácil conserto. Tudo depende da boa vontade, do amor que deve fluir, manso, generoso, buscando o bem do outro:

Ontem
Descobri o poder das palavras
Ao ler a tua carta, Que dizia:
“Não te amo! Chore!”
Chorei,
As palavras se comoveram
E moveram-se:
“Não chore! Amo-te!”

Onde andará o encanto
Que um dia vi nos olhos teus…
Descobri com espanto:
Esteve sempre nos meus!

Não há descanso
Que descanse
O meu cansaço.
Quem sabe o teu abraço?

O que dizes
Não me seduz
Não sou carne
Sou luz!

E a transcendência que desabrocha no silêncio, e nos aproxima de Deus:

Aos olhos de Deus somos todos luz.
Assim Ele nos vê,
Pequenas criaturas brilhantes;
Algumas vezes brilhamos mais;
Outras menos…
Não importa a cor dos meus olhos,
pele ou cabelo;
Deus coloriu o mundo para que
houvesse diversidade,
Luz e alegria…

Para que se possa cantar e dançar
Em vários ritmos…
Para que se tenha flores
De várias cores…
Céu azul e verde mar;
Aos olhos d’Ele, não temos casca,
Nada podemos esconder.
Ele não vê cara!
Só coração!

Esse estrondoso silêncio,
Que preenche os nossos momentos
E povoa os nossos olhares,
Às vezes me ensurdece!

Encontro ensaios de forma, onde, imagino, a poeta se diverte como nesta coleção de sssss

Sempre soube selar sorrisos,
Saudando sorrateiramente
Sóis.
Somente seres supremos
Suprem solares sentidos.
São sabores, sensações,
Sabidos superiores.
Sempre sós.
Simplesmente
Sigo somando
Saudades!

O que é o Avesso que Katia nos propõe? O avesso dela, como também se adverte no Prefácio? No final do livro, estampa os poemas que dão título e iluminam o seu pulsar poético.

Vivo do avesso,
Sou o avesso de mim
E o meu avesso é
O meu lado mais direito,
O meu lado perfeito;
Sempre sem jeito
Que tem entre tantos,
Um defeito:
Não tolerar o desrespeito.
Por respeitar o peito
Que carrega um coração perfeito;
E por ser avesso,
Pereço
Do lado direito.

O avesso de mim sempre esteve aqui.
O meu avesso também sou eu.
Surge quando me distraio,
Acordo tarde,
E sábado
Ou fico doente.
O meu avesso é o meu lado oculto,
Como a lua de dia
Ou o sol à noite.
Está sempre lá,
Em algum lugar.
O avesso
Não é o contrário,
Ele é o lado oculto
Que nunca se mostra.

Parabéns Katia, e obrigado. Para um desentendido em poesia, o seu autografo cumpriu a missão encomendada: fez-me pensar, despertou reflexões. E renovei o meu acervo poético, para alavancar estes voos humanistas nos quais estamos -todos!- envolvidos.

Comments 1

  1. Que poesia ageadável e fluida! E repleta de significados!
    Quantas marsvilhas poéticas!

    O encanto que se pensa ser de alguém e, depois, se descobre vir de si mesmo.

    As palavras que se comovem e se movem para mitigar a dor.

    O silêncio que se expande, preenche os vazios e se torna capaz de perturbar a nossa paz.

    O avesso, o lado que constitui a nossa sombra, aquele pedaço de nós que permanece no escuro, meio encoberto. O grande desafio da vida talvez seja compreendê-lo e ressignificá-lo.

    Sensacional! Obrigada por compartilhar!

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