Claudio Magris: Danúbio

Pablo González BlascoLivros Leave a Comment

Companhia das Letras. São Paulo. 2008. 448 págs.

Tinha separado este livro faz tempo, anos atrás. E, na época, um amigo grande leitor me advertiu: não é um livro simples, um romance, uma guia de viagem. É denso, tortuoso. Mas tem seu encanto. Tomei nota, deixei-o na estante, em compasso de espera. Uma viagem prevista, com passagem pela Europa Central, foi o gatilho para enfrentar a leitura deste que se considera a obra magna de Claudio Magris.

Vale esclarecer que Magris é um escritor e professor, nascido em Trieste -o que significa fronteira com o resto da Europa- especializado em germanismo. Danúbio é sim, o relato de uma viagem com amigos ao longo do rio que cruza Europa, mas é sobre tudo uma excelente desculpa para transpirar cultura, com muitas variações do seu próprio mundo interior. Um livro, por tanto, de não fácil leitura, onde é preciso pinçar conhecimentos, sem pretender abranger o trajeto salpicado de informações que ultrapassam o leitor comum.

Eis a overture, para fazer-se uma ideia: “O esboço é o rascunho de um estatuto para a vida, se for verdade que a existência é uma viagem, como se costuma dizer, e que atravessamos a Terra como hóspedes. De qualquer forma, mover-se é melhor do que nada: você olha pela janela do trem que atravessa a paisagem em alta velocidade, oferece o rosto ao frescor escasso que desce das árvores no calçadão enquanto se mistura às pessoas, e algo corre e atravessa seu corpo, o ar penetra em suas roupas, o eu se expande e se contrai como uma água-viva, um pouco de tinta sai do tinteiro e se dilui em um mar de tinta. Para desviar o olhar do próprio poço profundo, nada melhor do que direcioná-lo para a análise da identidade do outro, para se interessar pela realidade e pela natureza das coisas (…) Santo Agostinho estava em parte errado quando nos exortava a não sair de nós mesmos: quem permanece sempre em si mesmo, fantasia e se perde, acaba queimando incenso para algum ídolo esfumaçado que surge dos escombros de seus medos, vazio e insidioso como os pesadelos que a oração noturna convida a desaparecer”.

Anota Magris: “Talvez escrever signifique preencher os espaços em branco da existência, aquele nada que se abre repentinamente nas horas e nos dias, entre os objetos do quarto, e os absorve, deixando uma desolação e uma insignificância infinitas”. Essa é a trajetória interior, que acompanha o Danúbio desde a sua nascente -tema controverso, pois não se sabe ao certo qual seria a nascente, ou nascentes- até o delta do Mar Negro, a 2.888 kms. Com sua bacia de 817.000 Kms2 e os 200 bilhões de metros3 de água que despeja no Mar Negro todos os anos.

A viagem, o percurso interior, vai tropeçando com personagens variados da história, a meu modo de ver, um dos aspectos culturalmente mais ilustrativos. Partindo da Alemanha, onde nasce o Danúbio: “Descartes, com seu famoso pedaço de cera fria, dura e branca que, quando aproximado do fogo, muda de forma, tamanho, firmeza e cor, permanecendo um pedaço de cera, começou a pensar com base em ideias claras e distintas bem perto do rio, no Danúbio, em Neuburgo, em 10 de novembro de 1619, em seu quarto, que, graças à generosidade do Duque da Baviera, era aquecido para o inverno”.

E o confronto, em cruze horizontal, do Danúbio e do Reno, desenhando os dois aspectos da alma germânica: “Desde o Canto dos Nibelungos, o Reno e o Danúbio se confrontaram e se desafiaram. O Reno é Siegfried, a virtude e a pureza germânicas, a fidelidade nibelunga, o heroísmo cavalheiresco e o amor destemido pelo destino da alma germânica. O Danúbio é a Panônia, o reino de Átila, a maré oriental e asiática que, no final do Canto dos Nibelungos, subverte o valor germânico; quando os burgúndios o atravessam, rumo à corte huna desleal, seu destino — um destino germânico — está selado. O Danúbio é a Mitteleuropa germânica-magiar-eslava-romana-hebraica, polemicamente contrastada com o Reich germânico. O Danúbio se distancia cada vez mais do Reno ou está destinado a ser considerado um emissário das águas germânicas no Oriente?”.

Um rio que nascendo na Alemanha, sempre se nos apresentou -desde as valsas de Strauss, até o Parlamento de Budapest- como um caudal muito austro-húngaro. Escreve o autor:  “O Danúbio é um rio austríaco, e austríaco é a desconfiança da história, que resolve as contradições eliminando-as, na síntese que supera e anula os termos em jogo, no futuro que se aproxima da morte. Talvez, hoje, a velha Áustria nos seja frequentemente apresentada como uma pátria temporizadora, porque era a pátria de homens que duvidavam que o mundo pudesse ter um futuro e não queriam resolver as contradições do antigo império, mas sim adiar sua solução, a ponto de perceberem que qualquer solução significaria a destruição de alguns elementos essenciais da heterogeneidade do império e, portanto, o fim do próprio império”.

E a seguir, uma interessante consideração sobre como se constrói a história: “Parece-nos impossível que, para nossos filhos, o que permanece como um presente árduo para nós já seja um passado irrevogável e desconhecido. Nesse sentido, somos todos vítimas e culpados de incompreensão; a história adquire sua realidade um pouco mais tarde, quando já passou, e as conexões gerais, instituídas e registradas anos depois nos anais, dão a um evento seu escopo e seu papel. Recordando a derrota búlgara, um evento decisivo para o desfecho da Primeira Guerra Mundial e, portanto, para o fim de uma civilização, o Conde Károlyi escreve que, embora a tenha vivido, não se deu conta de sua importância, porque, “naquele tempo”, “aquele momento” ainda não havia se tornado “aquele momento” (…) No presente puro, a única dimensão em que se vive, a história não existe; assim como Zenão negou o movimento de uma flecha disparada de um arco, porque a cada instante ela estava imóvel em um ponto do espaço, e a sucessão de instantes imóveis não poderia ser movimento, também se poderia dizer que a sucessão desses instantes sem história não cria a história, mas sim as correlações e acréscimos fornecidos pela historiografia. A vida, disse Kierkegaard, só pode ser compreendida olhando para trás, embora deva ser vivida olhando para frente: isto é, para algo que não existe”.

A viagem inicia-se na Alemanha, nas nascentes variadas, até chegar no lago Constanza na fronteira com a Suíça, onde Danúbio e Reno, tomam caminhos perpendiculares.  Nascentes confusas e discutidas, sem saber ao certo onde á a verdadeira origem. O autor, enamorado do seu projeto Danúbio, escreve: “O Danúbio, por outro lado, embora seja apenas o mais alto, existe, não desaparece, não promete o que não guarda, não abandona, flui fiel e verificável; desconhece os perigos da teologia, as perversões ideológicas ou as desilusões do amor. Está lá, tangível e verdadeiro, e o devoto que a ele dedica sua existência sente-o fluir em união harmoniosa e indissolúvel com o fluxo do rio”

Na Alemanha vão aparecendo personagens, história, cultura em volta das cidades: “Quando o Imperador Carlos IV sitiou Ulm em 1376, impedindo a população de acessar a igreja fora dos muros da cidade, os cidadãos decidiram construir outra igreja dentro dos muros da cidade e lançaram a pedra fundamental dessa catedral em 1377, que se tornaria a mais alta do mundo em 1890. Na Praça de Ulm ergue-se a catedral, com a torre mais alta do mundo e a heterogeneidade de sua construção centenária, iniciada em 1377 e concluída — sem contar as sucessivas restaurações — em 1890 (…) Uma grande flor da interioridade alemã nasceu em Ulm: Hans e Sophie Scholl, os dois irmãos presos, condenados à morte e executados em 1943 por sua luta ativa contra o regime de Hitler (…) O filho mais ilustre de Ulm, Einstein, também demonstrou esse gentil genius loci (…)  Em 18 de outubro de 1944, o funeral de Estado do Marechal de Campo Rommel foi realizado na presença de von Rundstedt. A multidão ignorante lhe prestou suas últimas homenagens, acreditando que ele havia morrido em consequência de um ferimento causado pela defesa do Reich. No entanto, implicado na conspiração de 20 de julho e diante da alternativa entre julgamento e suicídio, ele se envenenou (…) Em 19 de outubro de 1805, ocorreu a Capitulação de Ulm, a rendição do general austríaco Mack — “o infeliz Mack” de que Tolstói fala em Guerra e Paz — a Napoleão, que derrota os austríacos em Ulm e entra em Viena”.

Em Günzburg, nesta pequena cidade que era chamada de Pequena Viena durante a era dos Habsburgos, a população prestou homenagem em 28 de abril de 1770 a Maria Antonieta, que estava a caminho, com seu cortejo nupcial de 370 cavalos e 57 carruagens, para seu casamento com Luís XVI e, mais tarde, para sua guilhotina. Josef Mengele, o médico da prisão de Auschwitz, nasceu aqui, provavelmente o assassino mais atroz dos Lagers; ele permaneceu escondido aqui até 1949, em um convento, e para lá retornou furtivamente em 1951 para o funeral de seu pai. Timor Domini, initium sapientiae:  se não houver lei, nem medo, nem barreira para impedir o que poderia ser feito impunemente em Auschwitz, não apenas o Dr. Mengele, mas talvez todos e cada um de nós possamos nos tornar Mengele (…) Porque o fascismo, em sua dimensão menos ignóbil, mas não menos destrutiva, é também a atitude de alguém que sabe ser um bom amigo para seu companheiro de mesa, mas não percebe que outras pessoas também podem ser menos amigas de seus companheiros de mesa. Eichmann foi sincero quando ficou horrorizado em Jerusalém ao saber que o pai do Capitão Less, o oficial israelense que o interrogou por meses e por quem nutria profundo respeito, havia morrido em Auschwitz. Ele ficou horrorizado porque sua falta de imaginação o impediu de descobrir, no número de vítimas, rostos, feições, olhares, homens específicos.

Dom Juan da Áustria, o vencedor de Lepanto, filho ilegítimo de Carlos V e de uma bela burguesa de Regensburg, Barbara Blomberg, nasceu nesta cidade, numa casa na Tändlergasse. Barbara Blomberg tinha dezoito anos; o imperador, viúvo há sete anos, tinha quarenta e seis. Era um homem marcado por um cansaço precoce e melancólico, por uma sensação de inutilidade que o levou ao declínio, como o antigo império, embora esse declínio da herança medieval implicasse a afirmação de uma potência mundial moderna sob sua coroa. Em Regensburg, ainda estava viva a tradição do “Asno de Palma”, a procissão que carregava uma figura de Jesus em um jumento de madeira, em memória de sua entrada triunfal em Jerusalém antes da Semana Santa. A força do burro reflete as qualidades dos heróis clássicos: paciência, calma, humildade e perseverança indomável que nunca recua, elevando-se acima dos impulsos nervosos do nobre corcel da mesma forma que Ulisses se eleva acima de Páris”.

As descrições são continuamente intercaladas com as reflexões que lhe forçam a escrever: “Qualquer jornada, como nossa caminhada até Dillingen, é uma resistência à privação, porque não se viaja para chegar, mas para viajar, e em meio aos atrasos, o puro presente brilha. Quem escreve uma página e, meia hora depois, esperando o bonde, descobre que não entende nada, nem mesmo o que escreveu, aprende a reconhecer sua própria pequenez e compreende, pensando na vaidade da própria página, que cada um toma suas próprias elucubrações como o centro do universo”.

E antes de adentrar-se na Áustria , anota: “Boêmio, por outro lado, é — e continuará sendo por pelo menos um século — uma palavra ambígua, que pode se referir aos tchecos, mas também aos alemães da Boêmia, e indica acima de tudo uma identidade difícil de definir, como a de todos os que vivem na fronteira, divididos e dilacerados entre o diálogo e o acerto de contas. Uma identidade, acima de tudo, exigente, nunca satisfeita com a atitude dos outros em relação a ela, seja ela qual for”.

Adentra-se na Áustria, em Linz, capital da Alta Áustria, que era a cidade favorita de Hitler, que queria transformar na metrópole mais monumental do Danúbio. Rudolf Höss, Comandante de Auschwitz, é um relator objetivo, imparcial e fiel de atrocidades incomensuráveis. Em sua autobiografia, Höss escreveu após sua sentença de morte, sem que lhe fosse solicitado. O impulso que o levou a escrever é incerto; não pode ser explicado pelo desejo de enobrecer sua própria imagem, porque o autorretrato resultante é, sem dúvida, o de um criminoso, e o livro parece responder a uma demanda imperativa por verdade, uma necessidade de reforçar sua própria vida, depois de tê-la vivido, de formalizá-la com precisão, de registrá-la impessoalmente em um documento. É por isso que o livro é um monumento”

As reflexões salpicam todo o trajeto: “A arrogância padronizada em relação às massas é um comportamento tipicamente de massa. Qualquer um que fale de estupidez generalizada deve saber que não está imune a ela, porque até Homero desce do Olimpo de tempos em tempos (…) Os grandes humoristas e os grandes comediantes, de Cervantes a Sterne e Buster Keaton, nos fazem rir da miséria humana porque também a descobrem, e antes de tudo em si mesmos, e esse riso implacável implica uma compreensão amorosa do nosso destino comum. As grandes religiões também levam em conta o material de que somos feitos; o que as diferencia das falsas e supersticiosas, dizia Chesterton, é seu materialismo genuíno”.

Em um desses quartos, em 3 de junho de 1924, Kafka morreu. A casa de dois andares, que hoje abriga modestos alojamentos, era o sanatório do Dr. Hoffman nesta pequena cidade perto de Klosterneuburg.

O capitulo Café Central é dedicado a Viena, como não poderia deixar de ser. “A Áustria, como dizem na minha terra natal, era e é um país ordeiro. Lá ficava o escritório de Eichmann, de onde ele dirigia o processo burocrático para a implementação do programa racial do Terceiro Reich. Morando nesta casa, não era difícil me tornar um especialista em melancolia, a nota dominante de Viena e da Mitteleuropa; uma tristeza da escola ou do quartel, a tristeza da simetria, da transitoriedade e da desilusão. Em Viena, tem-se a impressão de que se vive e sempre se viveu no passado, cujas rugas escondem e protegem até a alegria. E Berggasse 19: quando ele estava lá, poucas pessoas iam, agora todos vão, diz o taxista que me leva à casa e ao escritório de Freud…. E outra casa,  onde Beethoven morreu”.

De Viena segue até Bratislava, hoje capital da Eslováquia: “o coração daquela Mitteleuropa formada pela estratificação de séculos que permanecem sempre presentes, de lacerações e conflitos não resolvidos, de feridas não cicatrizadas e contradições irreconciliadas. A memória, à sua maneira uma arte médica, preserva tudo isso sob um vidro, os lábios das feridas e as paixões que elas infligiram. Em Bratislava, uma cidade outrora famosa por seus valiosos relojoeiros e colecionadores, agora reunidos no museu da Rua Zidovská (Judaica), sente-se a presença imperiosa de eras entrelaçadas com conflitos (…) A Eslováquia é inteiramente povoada por castelos, torres e mansões nobres; as mansões inacessíveis no topo das montanhas e colinas, com suas construções heterogêneas e torres ao estilo da Disneylândia, embora autênticas, alternam-se com residências imponentes e edifícios rústicos, quase sempre de cor ocre, que gradualmente se tornam as dimensões mais familiares de grandes casas de campo”.

As costuras do Império austro-húngaro são também tema recorrente na obra de Magris: “A maioria dos senhores que habitavam essas habitações eram húngaros. A esmagadora preponderância econômica e social húngara, que confinava os eslovacos a um modo de vida rural, tornou sua formação cultural e atividades comerciais, ou seja, o crescimento de uma classe burguesa, extremamente difícil, e forçou a emigração generalizada, especialmente para a América. Foi sobretudo a Igreja — Católica e Evangélica — que protegeu a nação, fundou escolas e defendeu a obscura e desprezada língua eslovaca. Mas os eslovacos não estavam sujeitos à tolerante e correta administração austríaca, frequentemente mitificada pelos povos eslavos, mas sim à fortemente nacionalista húngara”.

E cita um escritor, Mináč, que escreve: “ ‘Não temos história, se a história for feita apenas de reis, imperadores, duques, príncipes, vitórias, conquistas, violência e pilhagem’(…) A partir daí, entendi que força, inteligência, estupidez, beleza, covardia e fraqueza são situações e papéis pelos quais, mais cedo ou mais tarde, todos nós passamos. Quem deles abusa, escondendo-se atrás do destino da vida ou do próprio caráter, uma hora ou um ano depois se verá atacado em nome das mesmas razões inefáveis. A direita é patriota, mas atira com mais frequência e voluntariado contra seus próprios compatriotas do que contra os invasores da pátria”.

Avança o Danúbio, majestosamente, até Budapest, na região outrora denominada Panônia, pelos Romanos “No século passado, o romancista Zsigmond Kemény argumentou que o papel da Hungria era defender a plurinacionalidade do Império Habsburgo, dividindo o germanismo e o eslavismo e impedindo a supremacia de um sobre o outro. A televisão húngara transmite “Os Senhores de Glembaj”, o famoso e virulento drama de Miroslav Krleža.  Poucos escritores húngaros retrataram o mundo da Panônia, o mosaico de povos e culturas entre Zagreb e Budapeste, com a força e a violência de Krleža, o grande patriarca da literatura croata”

Outra cidade icônica, Esztergom. Aqui, Geza, príncipe dos húngaros, que havia chegado um século antes das estepes russas sob a orientação de Arpád, estabeleceu sua residência e corte em 973, e foi aqui que seu filho, Estêvão, o Santo, o primeiro rei da Hungria, nasceu. Com o primeiro rei cristão e cristianizador da Hungria, conquistador dos pagãos, o domínio dos xamãs e dos deuses errantes das estepes chegou ao fim; agora a cidade é a sede oficial do Primado da Hungria. A enorme catedral neoclássica com vista para o Danúbio tem a monumentalidade fria e sem vida de um cenotáfio e irradia um poder glacial ou uma arrogância temporal”

E afirma com entusiasmo: “Budapeste é a cidade mais bonita do Danúbio. Hölderlin, o maior poeta do Danúbio, cantou seu curso não apenas como a jornada mítica dos ancestrais germânicos, ao longo de suas águas, em direção aos dias de verão, às margens do Mar Negro e aos filhos do sol, mas também como a jornada de Hércules da Grécia aos Hiperbóreos. Para Hölderlin, que implora à poesia que possa remediar e a divisão moderna e se destrói nessa ardente conciliação, o Danúbio é a viagem-encontro do Oriente e do Ocidente, uma síntese do Cáucaso e da Alemanha, uma primavera helênica que deve florescer novamente em solo alemão e trazer de volta os deuses”.

O trajeto do Danúbio adentra-se na Sérvia, e faz fronteira com a Romênia. Passará por Belgrado e, depois, se contorce para chegando perto de Bucareste, servir de fronteira entre a Romenia e a Bulgária. Esse é o tema dos últimos capítulos do livro de Magris. E, sempre, transpirando cultura e história. “Em Bela Crkva, conversa com uma anciã que adora cemitérios, pois o túmulo representa a posse da terra, marca os limites de uma propriedade e, de fato, vai frequentemente para discutir com a prefeitura e os moradores sobre túmulos (….) O Príncipe Eugênio visitou Timisoara libertando-a dos turcos. O paxá que a defendia, quando convidado a se render, respondeu que sabia que não poderia vencer, mas que sentia ser seu dever contribuir para a fama do Príncipe Eugênio, tornando a vitória mais árdua e gloriosa. As exposições turísticas da cidade preferem destacar o fato de ter tido o primeiro bonde elétrico e de ter dado vida a Tarzan, também conhecido como Johnny Weissmüller (….) A Transilvânia tem sido um berço da cultura húngara, desde a autobiografia de Miklós Bethlen, do século XVIII, ou as Confissões e Recordações, também do século XVIII, do Príncipe Ferenc Rakóczi II, o grande líder da revolta de Kuruzzen contra os Habsburgos. No entanto, é também o berço da consciência nacional romena, da escola literária que, entre os séculos XVIII e XIX, afirmou a continuidade do elemento latino na Dácia e a unidade linguística e nacional dos romenos (…) É difícil, infinitamente difícil, ser alemão no Oriente. Bistriţa deve sua fama ao Conde Drácula — não ao verdadeiro, Vlad, o Empalador, cuja casa é mostrada em Sighişoara, mas ao falso, o vampiro do romance de Stoker-  no qual, aliás, a cidade é mencionada em alemão, Bistritz”.

A continuação, a Bulgária, em mano a mano com a Romenia, com quem divide fronteiras danubianas. “É possível que sua robusta alegria seja um legado do jugo otomano, como escreveu Vazov, um cantor da revolução contra esse jugo; a opressão, escreve ele em seu romance épico sobre a Bulgária, tem o privilégio de alegrar as pessoas: onde a arena da política está fechada, a sociedade busca consolo nos prazeres imediatos da vida, no vinho bebido sob as árvores, no amor, na geração. ‘Os povos subjugados têm sua filosofia, que os reconcilia com a vida’ – diz o grande Vazov, em palavras que provavelmente envergonhariam os poderosos de seu país, que o veneram como um numen tutelar. Será possível, então, que o fascínio atual da Bulgária também resida nesse ar de reconciliação com a vida, graças a outro jugo? (….) Os judeus viviam bem na Bulgária; Em seu livro sobre Eichmann, Hannah Arendt lembra que a população búlgara, quando seus aliados nazistas forçaram o governo de Sófia a impor o distintivo aos judeus, expressou simpatia por aqueles que o usavam e, de modo geral, procurou impedir ou mitigar medidas antissemitas (…) Em sua autobiografia, que provavelmente determinou em grande parte a atribuição do Prêmio Nobel, Canetti parte em busca de si mesmo, o autor de Auto-de-fé; o Prêmio Nobel premiou dois escritores: o de antes, que está escondido, e o de agora, que está reaparecendo”.

Do outro lado da fronteira danubiana, encontra-se Bucareste: “A Paris dos Bálcãs. É evidente que Bucareste não é apenas uma cidade de multidões e bazares, mas também de espaços amplos, espaçosos e imponentes, parques e avenidas verdes que levam a lagos isolados, vilas do século XIX e residências fin de siècle de Lupescu, a famosa amante do rei, palácios neoclássicos e edifícios stalinistas. É uma verdadeira capital; tem seu sopro, sua vastidão, seu majestoso e despreocupado desperdício de espaço. Apesar de alguns arranha-céus de estilo soviético da década de 1950, como o Palácio da Scînteia, se estende, como Paris, horizontalmente; não se eleva, como tantas cidades ocidentais modernas, mas se expande em direção à planície. A civilização romena é uma civilização da madeira, da sua bondade e força, da maciez religiosa e sólida dos utensílios domésticos, dos bancos e das mesas que preservam no lar a memória das grandes florestas onde, em tempos remotos, a população nativa buscava refúgio seguro contra o invasor da época (…) O povo de Bucareste chama de “Hiroshima” o bairro urbano que Ceauşescu destruiu, afundou, nivelou, devastou e deslocou para construir — talvez em competição com o Presidente Pompidou, como convém à Paris dos Bálcãs — seu centro, o monumento à sua glória. Ceauşescu parece querer realizar-se, pelo menos no que diz respeito a este projeto faraônico de desenvolvimento urbano, numa forma peculiar de demolição: a realocação. Não elimina edifícios; frequentemente os preserva, mas destrói a paisagem porque os realoca para outro local vizinho, deslocando-os dezenas ou centenas de metros, para criar um novo espaço, o seu”.

A literatura e arte Romena também aparecem: “A literatura é atraída pela baixeza e pelo desperdício, que não são apresentados como miséria a ser redimida, mas sim como um recanto onde um encanto desbotado se refugiou. Viagens às profundezas, desde as de Júlio Verne até as mais modestas de Sussi e Biribissi, até o fundo dos armários, são mais fabulosas que as outras, porque mergulham no nó mais oculto e inacessível, o centro mítico do fogo, reminiscente das eras em que a Terra era uma bola incandescente, ou os restos descartados da existência, que nunca mais veremos (…) Os romenos consideram-se tanto filhos dos dácios invadidos quanto dos latinos invasores; a síntese dácio-romena e a continuidade dessa síntese ao longo dos séculos é, na Romênia, o fundamento da ideia e do sentimento nacional”.

Chega ao final da viagem, deste sonho interior, afirmando que: “o Danúbio está em toda parte, e até o seu fim, está em cada um dos 4.300 quilômetros quadrados de seu delta. Os braços oficiais, partindo de Tulcea, são três: o braço de Chilia, ao norte, que por sua vez deságua no mar por quarenta e cinco enseadas, em território soviético, e descarrega dois terços das águas e detritos do Danúbio; o braço central de Sulina, que deságua diretamente no Mar Negro graças à canalização realizada entre 1880 e 1902, o que facilita a navegação e torna seu curso simbolicamente reto e decisivo; o braço de Sfîntu Gheorge, ao sul, serpenteante e sinuoso, ao qual o Danúbio deve sua extensão canônica atribuída pelos livros didáticos; e, mais precisamente, há um quarto braço, o Canal Dunavat, que se ramifica do anterior e desce, recuando para sudoeste, até o grande Lago Razin, no qual também deságua o Canal Dranov, que flui do mesmo braço. Fica claro, então, que o Danúbio desemboca em Sulina”. Onde nos leva a leitura desta obra que, como o Danúbio,  tem nascentes variadas, ambíguas, que misturam realidade com sonhos, viagem geográfico com percurso interior? Cada viajante -cada leitor- terá sua própria percepção. Já dizia Fernando Pessoa que as viagens são os viajantes. Também assim é a leitura. E o texto de Claudio Magris, transpirando cultura -aquilo que sobra quando esquecemos de quase tudo- e que faz questão de sublinhar no final, como os antigos denominavam o Danúbio: Matoas, quer dizer, o rio da felicidade. Boa viagem, boa leitura.

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