Gilles Marchand: El soldado desafinado

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Seix Barral, Planeta, 2024. Barcelona, 141 págs.

TÍTULO ORIGINAL : Le Soldat désaccordé.

Chega-me, através das críticas literárias que acompanho,  a referência deste livro -diferente e provocador. Consigo a versão digital em espanhol, não sem antes comprovar que não há -pelo menos até o momento- tradução para o português. Esse é  o meu primeiro recado, reforçado pelos comentários a seguir, também em português, com livre tradução de algumas passagens tocantes da obra. No fundo, o recado é para os editores animarem-se a tomar a iniciativa e traduzir o livro.

O autor, (Bordeaux, 1976), ganha o Prix des Libraires, com o soldado que está fora de sintonia. Uma história realista e de grande emotividade -pareceu-me a prosa poética de alguns clássicos (R. Tagore, Juan Ramón Jiménez- ambos Nobel de Literatura). Um combatente da primeira guerra mundial, ferido e aleijado na batalha do Marne (logo no início, 1914), dedica-se em tempos de paz a buscar soldados desaparecidos no conflito. Com ênfase naqueles que foram injustamente acusados de deserção, o que compromete a pensão das viúvas e das famílias. E das viúvas que lhe procuram chega até as aristocratas que se empenham em que seus filhos estão vivos.

Eis é a overture desta obra que não me atrevo a chamar romance, porque é muito mais do que isso. “Tínhamos coisas melhores para fazer do que bater em nossos vizinhos. No entanto, sabíamos que isso aconteceria: estávamos bem preparados para essa ideia. Ao nos dizer que eles eram nossos inimigos, acabamos acreditando. Então, quando eles passaram por Luxemburgo e Bélgica, poucas pessoas encontraram circunstâncias atenuantes. Muitos de nós nos voluntariamos para ir e explicar a eles que invadir países neutros simplesmente não era algo para se fazer (….) Cantamos, gritamos, mas estávamos sozinhos. Essas são as despedidas. É assim que as coisas são. Não importa o quanto você enfeite uma multidão, isso não pode competir com a solidão. Se ao menos tivéssemos sabido. Dos meus companheiros de viagem na carruagem, quantos retornaram em 1918? (…) Pouco mais de vinte anos depois, outra guerra eclodiu. A ‘última das últimas’ não foi a última. Na verdade, eu nunca saí da guerra. Para mim, ela começou em 1914 e continua até hoje. Feridos, mortos, monumentos, comemorações e desfiles. E tudo para retornar ao ponto de partida”. E acrescenta com dura poesia: “Depois de experimentá-la, a guerra permanece dentro do seu corpo, grudada na sua pele. Você pode vomitar, pode se coçar até sangrar, o que quiser, ela nunca vai embora. Está em você. Então, voltei várias vezes. Eu ainda cheirava a cinzas e pólvora”.

Como se inicia o protagonista -o narrador anônimo- nesta tarefa de buscar desaparecidos? A resposta vem em forma de mulher: “Blanche Maupas. Ela estava investigando o caso dos capatazes de Souain e precisava de alguém como eu. Moveu céus e terras para provar que seu marido havia sido executado injustamente. Passou quase vinte anos nisso. E se tivesse levado trinta, ela teria feito o mesmo. Um belo exemplo. Blanche Maupas me ensinou tudo: método, abnegação, atenção aos detalhes, redes de informação, a importância da opinião pública, procedimentos judiciais. Sempre que Blanche precisava de algo, eu a ajudava”.

Começam as demandas até chegar numa aristocrata que solicita a busca do seu filho que nunca voltou. “Questionei-a, perguntando como ela podia ser tão direta. Teria recebido uma carta? Teria ouvido alguma coisa? Teria algum colega de regimento lhe informado algo que a deixou otimista? ‘Ele partiu jovem demais para morrer’.  Verdade. O argumento era sólido, e o mesmo se aplicava a centenas de milhares de soldados. Mas não era a menor pista”.

A guerra e o amor, em compasso parelho que, aos poucos, surge como a pista desejada.  “Havia amantes nas trincheiras, para dar e vender. Estávamos todos apaixonados. E aqueles que não tinham namorada ganhavam uma madrinha de guerra. Não é uma ideia maravilhosa? A guerra é, acima de tudo, a ausência de mulheres. Quando você morre, liga para sua mãe. Quando se sente sozinho, escreve para sua esposa”.

Ausência de mulheres que são consoladas pelas visões da Filha da Lua, que o protagonista, os desaparecidos, todos, já tinham visto ou escutado: “Ouvira falar daquela Filha da Lua que aparecia constantemente nas histórias dos soldados. Para ele, aquela garota era um mito, uma história que os homens contavam a si mesmos porque estavam minados por sua solidão emocional” História, lenda ou realidade, que vai tomando corpo: “Não havia mais flores, então ela fez buquês de obuses. Não havia mais árvores, nem animais, nem vida. Então, imagine as flores. Ela avançou na escuridão, abaixou-se, pegou uma cápsula de bala e a colocou na bolsa que batia em suas coxas a cada passo. Não sei como ela conseguiu escapar dos tiros. Alguém disse que não conseguiam vê-la porque a lua só brilhava do nosso lado. Por isso a chamavam de “a Filha da Lua”. Alguns diziam que ela só vivia à noite. Durante o dia, ela desaparecia. Ela sumia. Ninguém sabia como ela chegou lá. Eles olhavam por cima do parapeito, e lá estava ela”.

A narração vai e volta, do presente ao passado, e vice-versa. As lembranças vivas do narrador-protagonista são também a tónica que marca o presente: “Quando voltei da guerra, faltava-me uma mão. Eu tinha a Anna e não pedi mais nada. Redescobrimo-nos. Eu já não era o mesmo. Ela já não era a mesma. O amor era maior (…) E nós sorrimos e choramos. E o sorriso venceu. Ela olhou para o meu braço e disse que me preferia assim, que agora podia me dizer; ela nunca gostou do meu braço esquerdo, nem um pouco. Foi um alívio para ela saber que eu o tinha dado aos alemães. E então acrescentou que era a primeira vez que tocava no marido, que da última vez que nos vimos, tínhamos sido apenas amantes”.

E uma apreciação contundente sobre os inimigos: “Alguns insultavam-nos. Outros falavam com eles. Eu evitava-os. Eram demasiado parecidos conosco. E dava para ver que estavam perdidos, que tinham medo, que estavam cansados, que tinham piolhos como nós. Não queria arriscar olhar para eles com simpatia. Se soubéssemos que um boche era apenas um francês que falava alemão, não teríamos podido continuar a disparar contra eles”.

Nessa gangorra do tempo, o soldado desaparecido -o filho da aristocrata- vai tomando corpo. E a sua figura, singular e marcante, se desenha entre narrativas dos que o conheceram, e versos do soldado, em fascinante prosa poética:  “Voltando a Joplain, certa manhã ele veio ao meu abrigo e me pediu para segui-lo. E lá, não sei como ele conseguiu: ele havia plantado as cápsulas de bala de tal forma que parecia estar diante de um órgão de catedral. E havia explosões por toda parte. Elas nos atingiram sem parar por quatro dias, e ele poliu as cápsulas para que brilhassem como se estivessem em um lugar sagrado. Joplain me devolveu a capacidade de sonhar (…) Árvores inteiras perfuravam o céu, suas raízes visíveis, obscenas. Vi animais pulando em pedaços, homens recolhendo pedaços de si mesmos, limpando a lama deles e tentando colá-los novamente. Naquele dia, toquei a coisa mais sagrada com a minha mão. E sabe por quê? Porque Joplain tinha feito o órgão mais inútil que já existiu. Um órgão que não funcionava, obviamente. Um órgão que brilhava com mil clarões e estava coberto de sujeira, lama e sangue a cada segundo. E ele riu cada vez mais alto. E eu chorei e ri ao mesmo tempo”.

Onde entra o amor e a poesia como lente luminosa para ver essa guerra sangrenta? Também em forma de mulher, Lucie, a filha da Lua. Assim descreve o encontro de ambos: “O sobrinho da família, Émile Joplain, que veio passar o mês de julho respirando o ar puro do campo. Ela tinha quatorze anos. Ao vê-lo chegar, Lucie baixou os olhos. Era o que lhe haviam ensinado a fazer. Naquele primeiro verão, Lucie e Émile não se falaram. Mal ousavam se olhar, mal se olhavam, apenas pela fração de segundo necessária para desviá-los. No segredo de seus respectivos quartos, pensavam um no outro. Émile escreveu poemas que depois rasgou. Lucie escreveu cartas que depois rasgou. Émile escreveu poemas que guardou zelosamente em uma caixa de lata. Lucie escreveu cartas que guardou zelosamente em uma caixa de madeira. Sua vida se resumia ao mês de julho. O resto do ano não existia, faltava-lhe interesse, era apenas tortura, solidão e miséria”.

Um amor tão real como impossível: “Era inconcebível que o jovem Émile Joplain, filho de Raymond Joplain, um rico industrial que morreu de excesso de trabalho, passasse o tempo todo escrevendo poesia para uma empregada (…) Para Lucie e Émile, as coisas se complicam a partir do verão de 1914. Desde Romeu e Julieta, pelo menos, sabe-se que política e amor nunca foram uma boa combinação”.

Dos amantes silenciosos e tímidos, a narrativa volta ao protagonista: “A história daquele amante perdido me permitiu voltar para aquela guerra com a esperança de encontrar algo belo em meio a tanta merda (…) Perdi uma mão, mas conservei o braço. Foi um médico militar quem primeiro me pregou uma peça: ‘Dar uma mão é difícil para você, mas estamos com falta de armas, e você tem dois braços, então vamos encontrar algo para você fazer’ (…) Havia muita gente, homens deitados por toda parte, amontoados. Não eram mais esquadrões, divisões ou companhias. Eram pilhas de homens. Amorfas, desordenadas, moles. Éramos uma família que perdia um membro a cada hora (…) Procurávamos uma mesa. Virou uma obsessão. Nunca mais comeríamos de joelhos, mas sim recostados numa mesa de verdade. Mesmo que não houvesse pratos, pelo menos havia uma mesa. Na maioria das vezes, uma tábua ou uma porta quebrada serviriam tão bem quanto. E assim foi: um grupo inteiro em volta de uma mesa, o que nos dava a impressão de estar de volta à civilização”.

As histórias -nessa dupla direção temporal- misturam as lembranças do narrador com o presente, sua dedicação à tarefa que assume perspectivas de missão redentora: lembrando, relatando histórias, escrevendo. “Devia ter quase sessenta anos e não tomava banho há cinquenta. Seu escritório cheirava a sujeira e tabaco frio (…) Contávamos nossas histórias de amor. Aqueles que não as tinham as inventavam. Aqueles que não as tinham mais as lembravam. Aqueles que tiveram azar as embelezavam. É para isso que servem as histórias, para tornar a vida melhor”.

Essas histórias , que são lembranças transformadas em confissões, que o narrador relata para ele mesmo, buscando consolo e uma vida melhor:  “No fundo, eu estava até convencido de que a razão pela qual me joguei neste trabalho de pesquisa era porque acreditava que o devia aos meus companheiros. E se trabalhei incansavelmente no caso de Émile e Lucie, foi porque me sentia em dívida com Anna. Enquanto Lucie atravessava o país em busca do namorado, eu me agarrava à minha frente de batalha com todas as minhas forças, tentando escapar da minha Anna (…) Desde então, convivi com a culpa de não ter cumprido a promessa que fiz a uma amante. De não ter aproveitado a menor oportunidade para ir ver Anna. Eu me odiava pelo meu maldito orgulho e pela minha falta de consideração por ela. Nosso encontro me assombrava, aquele momento em que me senti tão tolo, tão ridículo. Sua voz me dizia que ela me preferia assim. Ela apagou tudo em um minuto, com um sorriso”.

E, no final, o amor que é o caminho para a redenção, como ele mesmo confessa a ele próprio: “Entendia que, mesmo além da morte, o amor continuava vivo. Você não sabe o que fazer com ele, mas vale a pena lutar para continuar a alimentá-lo (…) É por isso que, alguns anos depois, me envolvi tanto na história de Émile e Lucie. Porque era um amor incrível, magnífico, saudável e intransigente, e porque cada história que eu encontrava ajudava a reacender a minha. A cada passo que eu dava, nesse caso, o sorriso de Anna me acompanhava. E, como sempre, acabei pensando em como teria sido minha vida se não me tivessem roubado quatro anos, uma mão e o meu amor”.

No final do livro, uma simples advertência que seria desnecessária, porque o impacto decorre da leitura, pausada, degustada das páginas desta obra: “Os leitores que quiserem se aprofundar também podem visitar os inúmeros memoriais. Aqueles lugares onde a terra atormentada permanece sem cura têm sido uma grande fonte de inspiração”. E a dedicatória necessária: “Aos meus avós e meus pais, por me terem transmitido o amor por pequenas histórias e pela grande história”. No comentário da crítica que me provocou para esta leitura, encontro um parágrafo que serve para fechar estas reflexões: “Marchand, sem esconder os horrores de uma guerra que dizimou impiedosamente uma geração de jovens, inclina-se a afirmar que, em última análise, o amor não pode ser morto. Com base nessa ideia, o autor escreve uma história bela, às vezes épica, bem contada, com imagens poéticas, porém trágicas, enquanto o protagonista/narrador confronta seus próprios medos, repreensões, angústias e perdas”. Comprovo, com satisfação e tranquilidade, que os sentimentos que me despertou esta leitura provocadora, estão em sintonia com a opinião da crítica. Não que isso me importe muito, mas às vezes é um apoio para não pensar que foi um desvario literário e existencial.

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