Tzvetan Todorov. Insumisos

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Tzvetan Todorov. Insumisos. Galaxia Gutemberg. Barcelona (2016). 220 pgs.

Tzvetan Todorov. InsumisosEis um interessantíssimo ensaio, ou melhor, uma reflexão articulada em cima de personagens da história, que têm um denominador comum: figuras que entenderam sua vida como um compromisso com a verdade, e por tanto resistiram sem curvar-se aos ventos politicamente corretos.  Leio a tradução espanhola do original em francês, mas anoto estas considerações em português, em tradução livre por minha conta. Todorov foi um intelectual búlgaro que se mudou para a França quando ele mesmo descobriu que o comunismo que tomava conta do seu pais, não era o paraíso prometido. E continuou trabalhando, estudando, escrevendo. Ele era, ao seu modo, também um contestador, um insubmisso.

Atitude esta que não é negativa nem destruidora, mas uma afirmação, como anota textualmente: “A insubmissão é positiva. É ao mesmo tempo, resistência e afirmação. As pessoas cujo itinerário se descreve aqui mostram como a sua virtude moral se transforma em instrumento político. Apoiam-se nas qualidades individuais para intervir no âmbito público. Não é uma política dominada pela moral, nem uma moral submetida a objetivos políticos; são, sim, atos morais individuais que se convertem em elementos da vida política”.  Eis uma questão essencial da qual parecem fugir os homens públicos, ao insistirem no divórcio entre a vida pessoal e a sua atuação em funções. A explicação é clara: “O ser humano não termina nos limites do seu corpo, mas inclui a relação com os demais (…) A ação moral somente funciona em primeira pessoa do singular. Moralmente, somente posso me exigir a mim mesmo. Quem faz moral para os outros sem submeter-se a ela, é duplamente imoral, consigo mesmo e com os outros”. Um postulado que, caso fosse utilizado como paradigma de seleção dos homens públicos, poucos candidatos sobrariam.

A reflexão histórica inicia-se com Etty Hillesum, pensadora judia na Holanda, de quem já tinha conhecimento pela leitura fascinante do seu diário. Enfrenta o sofrimento através de um trabalho interior de natureza moral, e dirige suas exigências para ela mesma. Descobrimos nas suas páginas uma crítica ao ódio, e não as pessoas. Porque as agressões sofridas não justificam a animosidade para com os agressores. O mal que causamos não pode se escusar usando como pretexto ser resposta ao mal sofrido. “Penso que não poderemos corrigir qualquer coisa do mundo exterior sem antes tê-la corrigido dentro de nós”. Etty discorre entre essa oposição da vida interior e exterior, valorizando a primeira. Não se guiar pelos estímulos do mundo exterior, mas pela urgência interior. “É a única solução: volver-se a nós mesmos e eliminar tudo o que gostaríamos de eliminar nos outros (…) Quando temos vida interior, pouco importa de qual lado das grades do campo de concentração nos encontramos (..) O que mais desespera é que podes fazer pelos outros muito menos do que eles esperam de ti”.

Germaine Tillon, figura da resistência francesa, é a segunda personagem contemplada. Anota: “Defender uma tese moral sentado num sofá, tomando chá é uma coisa; outra é entender que pessoas -vivas e felizes, rodeadas da sua família- vão morrer de verdade, após ter sido torturadas, e tudo porque escutaram as edificantes razões que você lhes disse convencendo-os”.

Todorov aponta uma característica desta insubmissa: o humor, porque junto com a alegria, constituem um clima intelectual mais estimulante do que a lamúria. E a possibilidade de contornar, sempre, o ódio sem ficar presa nas suas garras: O ódio nunca é inevitável, diz Tillon, como conclusão durante sua prisão, quando vê que as vigilantes alemãs não as odiavam como se poderia supor.  “Quando invadiram meu pais em 1940, confesso ter olhado para eles através dos vidros embaçados com a má fé e o rancor. Mas nestes vintes anos transcorridos, não deixei nunca de limpar os meus óculos (…). As causas em nome das quais se luta contam muito menos do que os sofrimentos que suportam as pessoas”.

A guerra é um meio tão poderoso e devastador que anula os nobres objetivos que a poderiam ter motivado. “A destruição de pessoas e de bens, não é menos dolorosa quando supomos que as bombas caem do céu para defender o bem”. E uma consideração que nos obriga a refletir: “Dizer que Himmler era um monstro seria tranquilizador. Mas pensar que era um aproveitador medíocre e oportunista é muito mais inquietante”. Inquietante porque nos remete ao tema da banalidade do mal, abordado por Hannah Arendt, de que os maiores males do mundo são realizados por pessoas normais, não por demônios; por gente comum que abriu mão da reflexão. Quer dizer, que nos pode acontecer a cada um de nós: basta deixar de pensar nas consequências dos nossos atos.

Segue-se Boris Pasternak o Nobel russo, que já em 1936, experimenta uma ruptura com a revolução. “O poeta deve escutar seu tempo, mas nada demostra que os que detêm o poder sejam porta-vozes legítimos desse tempo. Escutar o tempo a vida humana não significa submeter-se a ele”. Pasternak continua escrevendo, é milagrosamente respeitado por Stalin -ninguém sabe os motivos- e escreve a sua obra mestra -Doutor Jivago- sabendo que terá de publicá-la no exterior. Anota: “Uma arte sem riscos e sem sacrifício interior é impensável; a liberdade e a audácia da imaginação se conquistam ao pé da obra (…) O que me faz infeliz não são as dificuldades externas da vida, mas que sou um literato, tenho coisas a dizer, ideias próprias, e no nosso pais a literatura não existe, e no pé que estão as coisas não existirá nunca”. Somente muitos anos depois da sua morte, a saga de Jivago será publicada na Rússia.

Outro prêmio Nobel russo, Alexander Solzhenitsyn, da continuidade à reflexão histórica. Mas não goza da proteção que tinha Pasternak. É o escritor do Gulag, expulso da sua pátria. Nega-se a viver na mentira: “A mentira pode oferecer resistência a muitas coisas no mundo, mas não a arte (…) Quando a arte e a literatura alcançam a verdade os espectadores lhes concedem uma confiança absoluta que, por sua vez, se converte num indício da verdade”. E, mais uma vez, Todorov serve-se desta personagem para colocar o dedo na chaga: “Descobri que a linha divisória entre o bem o mal não separa Estados, nem classes, nem partidos, mas atravessa o coração de todo homem e de toda a humanidade”

Nelson Mandela é um prato forte nas reflexões ilustradas de Todorov. Talvez porque o temos muito perto, conhecemos os detalhes, assistimos filmes magníficos sobre o assunto. Por isso as palavras recolhidas de Mandela têm significado especial.  “Devemos renunciar a todo maniqueísmo político e admitir que o adversário não pode ser completamente mau, e nós sermos os únicos bons(…)É útil recordar que todos os homens, mesmo os que parecem mais insensíveis, tem um fundo de honestidade, e podem cambiar se chegarmos até eles. No mais profundo do coração de um homem sempre reside a misericórdia e a generosidade. ” O ódio nos destrói a nós mesmos, como anota de modo sugestivo: “O ressentimento é como beber um veneno e esperar que mate ao teu inimigo. ”

Mandela inspira-se na estratégia de Lincoln: a melhor maneira de eliminar o inimigo é convertê-lo em amigo. “Quando era criança aprendi a vencer a meus adversários sem desonra-los. Vencer numa discussão não implica desvalorizar o outro”. O respeito ao outro está na base da atitude de Mandela, algo que observa diariamente na cadeia em Robben Island, no rosto dos guardas que lhe custodiam. A cadeia se converte num laboratório no qual pode pôr em pratica a sua nova visão da humanidade. A transformação moral que sofreu converte-se na base da sua política, na sua melhor arma.

E, com ela, a exigência pessoal, que é o fundamento da verdadeira liderança: “É preciso manter a dignidade em todo momento, mesmo quando não há testemunhas, e comportar-se segundo as normas que se defendem em público. Preservar a coerência entre teoria e a prática, entre os princípios e sua aplicação, não por temor ao olhar dos outros (para não perder o prestígio) mas para abolir a distância entre o dizer e o fazer, salvaguardando assim a autoestima”.

A reflexão histórica de Todorov, encerra-se com duas personagens contemporâneas que analisa rapidamente. David Schulman, um judeu que defende a causa palestina, professor de estudos humanísticos na Universidade Hebreia. “Estigmatizar as taras dos outros não acrescenta nada à tua virtude. O ato moral somente se pode produzir em primeira pessoa, como resposta a uma exigência que o indivíduo dirige a si mesmo”. E finalmente, uma figura retratada em recente filme, Edward Snowden, que denuncia as infrações cometidas contra a Constituição, bisbilhotando a vida e intimidade dos indivíduos. “Não fazem isso para proteger o pais: é uma prática abusivamente generalizada; vigia-se a todos, como fruto da evolução da tecnologia”.

O próprio Todorov aponta no final o que poderia ser o resumo desta excursão histórica, altamente ilustrativa. Quem são os insubmissos? “Pessoas que submetidas a provas violentas negam-se a submeter-se tanto aos adversários como a sucumbir aos seus próprios demônios interiores. Todos se negam a submeter-se às forças internas que lhes empurrariam a devolver os golpes, porque temem assemelhar-se aos seus agressores. É chegar a um nível humano que está por cima das vivências pessoais, com a correspondente carga e ressentimentos e afetos. Um caminho que nos faz admirá-los embora nos custe imitá-los”. Sim, custa imitá-los. Mas é bom ter essas figuras como exemplo que, aos poucos, poderá moldar também a nossa atuação pessoal, nas revoltas e insubmissões que teremos de protagonizar, pacificamente, na vida quotidiana.

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