Um Homem entre gigantes: Lições de Profissionalismo.
(Concussion). Diretor: Peter Landesman. Will Smith, Alec Baldwin, Albert Brooks, Gugu Mbatha-Raw. USA 2015. 123 min
Assisti este filme há algum tempo, e gostei. Mas na ocasião, não escrevi nada. Talvez por isso não lembro porque gostei tanto. Quando a gente fica nas sensações -agradáveis ou não- e não reflete sobre elas, o tempo se encarrega de eliminá-las. Escrever é uma reflexão forçada, ou se queremos, facilitada. É como um fazer um fatorial do impacto que, das emoções em bruto, é fatiado, evidenciando os valores que costumam ser a herança deixada por um bom filme.
Assim, sentindo essa pendência comigo mesmo, escalamos o filme para o Cinema para Todos, uma atividade mensal no nosso espaço educacional de humanismo médico. E vale esclarecer: o fato de ter um médico no filme é pura coincidência. Como já é sabido -e comentado inúmeras vezes neste ambiente- educar no humanismo os profissionais de saúde, raramente implica cenários médicos. Construir-se como ser humano -afinal, isso é humanismo- tem um espectro pedagógico muito mais amplo: o da vida e suas gentes. Quer dizer, o nosso Cinema para Todos, trabalha com os valores dos filmes, e com isso refletimos e nos educamos. Serve, como o próprio nome indica, para todos. Até para os médicos.
Dizer que de nada lembrava quando assisti por primeira vez não seria correto. Um médico, com vários doutorados e prêmios, que trabalha como legista. Um cientista forense que fala com os mortos. “Você tem que me ajudar a entender o que te aconteceu” -diz o médico antes de iniciar as autopsias. O médico em questão é Will Smith, que imita um sotaque nigeriano, de onde supostamente procede. Lembro de ter comentado isso com uma amiga, professora de medicina em Chicago, faz um par de anos quando lá estive por conta de um congresso, estando o filme recente na minha memória. “Tem mérito, sim, porque ele é de Philadelphia” -disse-me a colega. E acrescentou: “esse filme enfrentou muita resistência aqui, porque as mães queriam tirar os filhos do futebol americano; foi um desafio”. Fiquei com o comentário na cabeça, e com a decisão de que teria de vê-lo de novo. Essa é a origem do evento conjunto que nos decidiu a trazer Will Smith com sotaque africano até o palco do Cinema para Todos.
Um legista que fala com os mortos. Enquanto escrevo, alinhavo as muitas ideias que acudiram à mente quando assistia ao filme há um par de semanas. A primeira, um bom amigo, médico legista e humanista, de quem muito tenho aprendido. Tivemos a oportunidade de nos encontrar recentemente em outro dos nossos espaços educacionais mensais: a Pizza na Torre, que nada mais é do que uma tertúlia cultural…..com pizza e vinho, na varanda que denominamos torre, por aquilo da Torre de Pisa, em sugestivo jogo de palavras. O nosso amigo não fala com os mortos, mas os vê com carinho, atenção e profissionalismo. Contou-nos que cada vez tem mais gente certificando o óbito sem ver o corpo do defunto. “Há muito médico que tem medo do morto. Não é nojo, é medo mesmo”. E ilustrou seu relato com casos tristes de mortos que não o estavam, e o médico nem deu por isso. Escutando-o, e vendo Will Smith atuar, ganha-se um respeito enorme por essa profissão que, sem motivo, tem certa fama de macabra.
Lembranças das aulas de pós-graduação que dei durante alguns anos na faculdade de medicina também se somam as reflexões que aqui esboço. Recursos pedagógicos para a formação humanista do médico – assim se chamava a disciplina Entre os muitos e variados alunos que tive -todos médicos, teoricamente se preparando para ser professores num curso de mestrado ou doutorado- reparo que as recordações mais vivas -e mais impactantes- vieram de colegas patologistas ou legistas.
Um deles, comentou no final do curso, que tinha sido tocado pelas nossas conversas humanistas. Chegou a faltar na segunda aula, porque ficou tão assustado com a primeira -assim nos confessou quando reapareceu na terceira- que quis desistir, ao ver o tamanho do problema. Mas seguiu em frente e se transformou. E transformou a sua disciplina. O seu relato do projeto final que, conforme previsto para cada aluno, apresentava-se no último dia, está vivo na minha memória: “Conclui que preciso melhorar, aumentar minha cultura, os meus alunos merecem isso. Horizontes maiores e profundos. Decidi que vou mudar o título da nossa reunião semanal de autopsia: chamar-se-á, A última visita”. E ato seguido, esse aluno que certamente é hoje um professor que deixa marca, projetou algumas cenas de um filme recente que eu ainda não tinha visto: “A Partida”, Okuribito no idioma original, japonês. Uma produção audaz, onde o protagonista se ganha a vida arrumando e maquiando os cadáveres. E conquista os clientes que lhe são gratos – “nunca minha esposa esteve tão bonita ultimamente”, diz o viúvo ao contemplar o cadáver da mulher-, e o respeito da sociedade e da própria família: “Meu marido é um profissional competente”. Impressionante observar como de um tema tão difícil e cinza é possível confeccionar uma produção que transpira delicadeza.
Um profissional competente. Não é pequeno o elogio, mormente nos dias de hoje onde uma suposta competência não parece exigir a integridade ética e moral. Como se fossem caminhos paralelos que não se encontram. Aquilo de “é um bom médico, pena que seja uma pessoa intratável”. Na verdade, de médico esse sujeito não tem absolutamente nada; se o objetivo do médico é cuidar de pessoas, onde se encaixa alguém de trato difícil? Além de que a qualidade também se torna suspeita, como o legista nigeriano coloca em evidencia. Um homem que busca a verdade com afinco, um pesquisador nato com sede de ciência que em momento algum perde a perspectiva humanista da sua profissão. E faz isso, mesmo que o paciente esteja já morto. E utiliza a sua ciência e descobertas para cuidar dos que ainda estão vivos, para fazer a diferença. Uma atitude que implica colocar os talentos ao serviço da sociedade, servir de fato e não apenas vangloriar-se com diplomas e currículos polpudos. A ajuda externa, da encantadora mulher -enfermeira do Quênia- que se converte em sua esposa, é um estímulo doméstico que lhe confirma na sua missão.
Enquanto escrevo, acode à memória aquele ensaio encantador de Ernesto Sábato, “La Resistencia” que descreve perfeitamente a atitude insistente do forense teimoso, amante da verdade. Escreve o argentino: “A história é um conjunto de aberrações, guerras e perseguições, torturas e injustiças, mas é também o cenário onde milhões de homens e mulheres se sacrificam para cuidar dos outros. Eles incarnam a resistência. Um sacrifício que deve ser fecundo, e isso é por conta de cada um de nós. Porque o mundo nada pode contra um homem que canta no meio da miséria”.
Produz vertigem este abismo de diferença com o que diariamente observamos na assim denominada “academia” que, querendo ou não, continua sendo o lugar onde se fabricam os médicos, a usina dos profissionais. Novas lembranças das aulas de pós-graduação. Desta vez uma jovem colega, reumatologista, que teve de convencer o orientador dela -por sinal, livre docente da Universidade- da conveniência de cursar minha disciplina. “O que você vai fazer com isso do humanismo? Perda de tempo. O teu são as mitocôndrias”. Assim mesmo: tão chocante como verdadeiro.
A seriedade científica -quando é verdadeira- se traduz em serviço, em buscar melhorar o mundo, na porção dele que nos é confiada pela nossa atividade profissional. Não está brigada com os valores nem com a integridade que, por sua vez, são impulso para buscar caminhos que, respeitando a dignidade do ser humano, ajudam a melhorar seu cuidado. O que realmente é incompatível com o avanço científico e o afinco do pesquisador é a mediocridade, e todos os conluios que ela leva consigo. O filme mostra perfeitamente isto: o escândalo que a verdade produz, o medo de quem vê colocar seu negócio lucrativo em risco, as tentativas de amansar a fera com ofertas tentadoras para comprar o seu compromisso com a verdade. Persistir nesse esforço requer integridade e ser devoto da verdade; requer competência e ao mesmo tempo pulcritude ética. Os americanos conseguem juntar esses dois termos imprescindíveis num médico numa só palavra: profissionalismo.
Hoje o profissionalismo está na moda, a academia gostou do termo, diz que vai avaliar -o que de fato não é fácil- porque vivemos tempo de obsessão pelas avaliações. Parte-se para a avaliação sem perguntar-se exatamente o que se quer avaliar e porque; se avaliamos o que realmente vale a pena, ou apenas fazemos de conta. Isso sim, com escalas validadas e ares emproados de cunho científico que a ninguém convencem. É difícil saber avaliar quando nem sabemos -ou não queremos saber- como se ensina o tal do profissionalismo. Eis uma questão espinhosa.
Minha opinião é clara e simples: ensina-se com o exemplo, vendo como os mais velhos o praticam. Primeiro problema, que descartaria ao desterro aquele livre docente das mitocôndrias. Ter que lutar contra o establishment arrogante de um professor catedrático é tarefa inglória para um jovem que deve praticar o contrário do que vê o chefe fazer. O mau exemplo educa, sim, mas é sofrido. Como avaliar? Poderia se pensar em perguntar ao cliente, no caso ao paciente. Eis um velho sonho: uma faculdade de medicina onde quem desse a nota fossem os pacientes. Penso que seria um recurso apurado e eficaz de avaliar. Como escutei certa vez na sala de espera de um ambulatório universitário (local que gosto de frequentar, sentar lá, conversar com os pacientes e aprender): “Esse médico sabe muito…..mas aquele lá é o bom”.
O paciente é um ótimo avaliador, sabe quem é bom. E o aluno também descobre quem é o professor que vale a pena imitar. Mais uma lembrança daquelas aulas de pós-graduação onde aprendi, penso, mais do que os meus alunos. Uma jovem colega, médica legista, simpática e sorridente. Contava-nos: “As pessoas não acreditam que eu seja legista. Dizem que não tenho cara para isso. Eu pergunto qual seria a cara. A do Zé do Caixão?”. A colega saia para falar com as famílias durantes os plantões no IML, algo tão raro como surpreendente. E quando, ainda residente, foi enviada pelo seu chefe para dar um curso de medicina legal numa faculdade do interior -40 horas, uma semana inteira- a metade da turma queria fazer estágio com ela….no IML. Quer dizer, uma professora nata. O que ela poderia ensinar, o conteúdo, era simples detalhe. Mas as atitudes que demostrava, a postura como médica, enfim, o profissionalismo, seduziu os estudantes. E queriam acompanhar ela na sua atividade no meio dos mortos e da dor, porque era uma luz vocacional para os jovens. Enfim, uma versão feminina do nosso legista africano.
Decido colocar um ponto final a estas linhas, e agora sim, entendo perfeitamente porque tinha gostado tanto do filme. As muitas ideias que estavam latentes, quiescentes por utilizar uma linguagem dos patologistas, escondidas na minha memória à espera de que Will Smith, e os meus alunos vieram despertá-las. Desfilaram estas -e muitas outras- enquanto digitava as teclas do computador, com rapidez, com receio de deixa-las passar enquanto lhes sussurrava: calma, vocês têm que me ajudar a entender porque gostei desse filme!
Comments 1
A força do bom exemplo conduz a coerência do humanismo, oxigenando as relações humanas e atenuando sofrimentos mesmo nos campos de batalhas ou nos consultórios. Certamente será uma luta diária daquele que procura entender o outro num mundo que não quer ouvir, dominado pelo tecnicismo desumanizado.