Australia: Um filme como os de antigamente
(Australia) Diretor: Baz Luhrmann. Nicole Kidman, Hugh Jackman, David Wenham, Bryan Brown, Bruce Spence. 165 min. Já faz algum tempo que assistir a um bom filme me dá muito trabalho. Talvez seja por isso que as mais das vezes hesito fazê-lo, assim, de bate pronto, sem antes me preparar psicologicamente. Dá trabalho porque sempre acabo despendendo razoável esforço para tentar descobrir as entrelinhas dos diálogos, das cenas, da trama como um todo, para depois poder lhes escrever a respeito, fazendo do Cinema uma espécie de arco voltaico, que por meio de um elo incandescente liga idéias, vivências, sonhos, valores. Sim, o Cinema pode iluminar a vida, a qual, embora não seja arte, desta se alimenta. Vida que temos de viver diariamente, em branco e preto, cansativa, pontilhada de rotinas insípidas. Cabe a nós descobrir o sabor único e insubstituível de cada minuto que nos é dado viver. Quando me acomodei para assistir Austrália, nenhum desses pensamentos ocupava a minha mente. Tudo indicava que desta vez seria diferente, que se tratava apenas de assistir a mais um filme, sem compromissos nem ulteriores desdobramentos, sem esforços, tampouco preocupações de monta. Ao menos era o que pensava enquanto me dispunha a desfrutar um filme de três horas.“Um filme como os de antigamente”, li em comentário de certa revista estrangeira, que me caiu às mãos semanas atrás. “Um longa metragem”, “um épico”, “a construção de uma cultura”. Lembrei-me de “Assim caminha a humanidade”, dos tempos em que o Texas testava novas riquezas para as somar ao já abundante gado. O petróleo. Com ele, James Dean, medindo a passos largos as terras que lhe couberam. E pensei que a qualquer momento lá poderiam aparecer Rock Hudson, Liz Taylor. E até o próprio Dean, o garoto fatal, que não viu estrear o filme porque sucumbiu sob a velocidade irresponsável que seus 24 anos imprimiram ao Porshe que dirigia.Austrália é um canto de amor ao Cinema. Uma saudade que desfila na tela sem pudor de mostrar as referências que faz aos clássicos. Lady Ashley é mulher que se recorta sobre o horizonte vermelho, do lado da árvore solitária, como Scarlet O’Hara em “E o vento levou”, quando jura que amanhã será outro dia, e que não passará fome novamente. O capataz entra no baile com pinta de quem diz “eu sou Rett Buttler”. E dança com Scarlet, quer dizer, com Sarah, que é uma Scarlet que sobrevive ao bombardeio japonês de Darwin, como Vivien Leigh safa-se do incêndio de Atlanta e assume o papel de enfermeira, até que Clark Gable vem buscá-la em meio às gigantes chamas. Mas Sarah é também Dorothy, que canta “Somewhere over the Rainbow”, e o diretor – sem o menor constrangimento – a coloca sobre um fundo que é um cenário, como a garota do Kansas que vai parar em Oz, em sua viagem fantástica. Contam-se histórias. Quando as contamos, os protagonistas permanecem conosco para sempre. A magia dos aborígenes que conseguem parar uma boiada desbocada. Haverá quem diga que tudo isto é ilógico e destoa de um filme moderno. Mas quem disse que Austrália é um filme moderno, ou melhor, quem disse que é um filme feito para os homens de hoje? A encantadora falta de lógica dos filmes de antigamente encaixavam-se perfeitamente em nossos sonhos, filmes sobre os quais não se pedia explicações, porque ninguém as queria ouvir. Nisto consiste a redenção da rotina que o Cinema nos proporciona. Não é ilógico, também, que o bandido elimine o magnata – este mais bandido que aquele, diga-se de passagem – e se case com a filha dele, como se tudo fosse normal? Mas, afinal, quem busca explicações lógicas para o Cinema se a este se vai apenas para sonhar? Talvez sejam justamente essas pessoas, cuja vida é plena de contradições, de paradoxos, de loucuras e insensatezes, as que cobram lógica ao Cinema, lógica que não podem encontrar em suas próprias vidas.O diretor Luhrmann ama o Cinema e ama a Austrália, sua terra natal. E fabrica um casamento entre os seus amores, o qual é prazerosamente desfrutado pelo público. Eu pelo menos mergulhei numa viagem de três horas, na qual rememorei “E o vento levou”, “O Mágico de Oz” e “Assim caminha a humanidade”. Foi ótimo! As ruínas do bombardeio, com tomadas em perspectiva aérea, trouxeram-me de volta as imagens dos feridos no incêndio de Atlanta, bem assim Scarlet, de vestido lilás e chapéu, movimentando-se entre todos eles. Sarah, com o cabelo recolhido e ar cândido, contando histórias para o menino, destaca-se sobre o fundo que aspira a decoração de estúdio. A mágica de Oz revive em mim, enquanto o capataz afirma que não há lugar no mundo como o nosso lar. No final, os créditos em branco e preto, com letras estilo antigo sobre o mapa, o que me fez lembrar, sem nenhum esforço, de “Casablanca”.A imprensa criticou o filme de Luhrmann, que logo saiu do circuito. “Muito longo”, “um melodrama sem conteúdo”, dizia-se. Mas eu me pergunto qual é o conteúdo que estão buscando? Neste mundo louco em que vivemos, onde tudo é comunicação veloz, eficiente, instantânea, sem qualquer conteúdo, com que direito se pode criticar um filme que nos convida a sonhar de mãos dadas com o Cinema de sempre? Numa sociedade em que as pessoas se aglutinam em barzinhos da moda, cujo único protagonista é o barulho reinante – impossível um diálogo sob tanta estridência – e nada se fala, porque provavelmente não sabem o que falar, com que autoridade tais pessoas podem exigir conteúdo? A verdade é que faz tempo que ignoro essas críticas. Até porque, mais do que comentários, assemelham-se a espasmos que apenas transmitem o estado de humor visceral (das próprias vísceras, entenda-se) em que o crítico de plantão se encontra no momento. Parece que se incomodam quando alguém decide sonhar e viajar embalado pelos clássicos da Sétima Arte. Talvez seja pura carência de quem tenha medo das próprias emoções, de saborear o que é bom, bonito, o amor, o final feliz. Ou talvez medo de se deixar conquistar, de não ser original, de incorrer em lugar comum. Justamente eles, que vivem de grifes e de gírias copiadas das novelas de televisão, nas quais quase ninguém é normal e o conteúdo brilha pela sua absoluta ausência…Freqüentar os filósofos é sempre um consolo que alivia o desespero – falta de esperança – que o contato diário com um mundo vazio de significado provoca. Um mundo que, não obstante viva de pura aparência e se besunte de maquiagem barata, tem a desfaçatez de criticar a falta de conteúdo de um filme romântico. Os filósofos nos ajudam a entender o cenário no qual estamos inseridos, e esse é o primeiro passo para tentar mudar para melhor o nosso entorno. Talvez por isso as cenas de Austrália, em contraponto com as mencionadas críticas, tenham me evocado os ensinamentos de “Cultura e paixão” – um dos últimos livros que tive a oportunidade de ler – escrito por Alejandro Llano, filósofo espanhol contemporâneo.Dentre os muitos temas atuais que o autor aborda, a informação é um dos principais. Informação que nunca chegará a ser cultura se não houver trabalho interior, assimilação, ponderação, enfim, conteúdo próprio decantado no espírito de quem pensa estar bem informado. E por isso afirma Alejandro Llano que “as relações eletrônicas têm uma índole fundamentalmente técnica, enquanto que as relações comunitárias ou familiares são basicamente humanas. E as relações humanas são necessárias, por muito que avance a técnica. O crescimento da comunicação eletrônica globalizada deve ser acompanhado por um desenvolvimento equivalente da comunicação pessoal, por um cultivo das humanidades”. Bela análise que nos ajuda a entender o mundo moderno, em que as pessoas se comunicam sem ter o quê comunicar. E continua o filósofo: “Quem recebe uma informação abundante e imediata, com velocidade e urgência, é quem mais precisa do critério para selecionar qual a informação relevante e qual a supérflua. Por isso, ao invés de passar horas no celular ou ligado nos e-mails, o executivo precisa muito de ler os clássicos para construir esse critério”. Não é fácil construir esse critério, pois não se encontra pronto na Internet, tampouco se lhe pode adquirir em lojas de conveniências, recurso este que parece bastar a quem almeja somente ir tocando a vida. Uma vida muito “comunicada”, vivida em alta velocidade, em banda larga – uma wikivida, diria – mas com uma incultura que, no dizer do citado filósofo, assemelha-se a um analfabetismo bilíngüe, até poliglota. Talvez seja por isso que um dos poucos estímulos aos quais nosso mundo ainda reage seja o gosto pelas novidades – o bálsamo das vidas vazias, como as definia um escritor brasileiro anos atrás. De fato, a reação às novidades e a wikivida não combinam com o romantismo de contar histórias, pois o amor e a aventura são insensíveis ao paladar do homem deste século.A perda da sensibilidade corre paralela à falta de cultura. Tremendo risco do qual Ortega já falava: “A vida é um caos, uma selva, uma confusão. O homem perde-se nela, mas sua mente reage perante a sensação de naufrágio, e trabalha para encontrar na selva caminhos: idéias claras e firmes sobre o universo, convicções positivas sobre o que são as coisas e o mundo. O conjunto, o sistema dessas coisas é a cultura, o que nos salva do naufrágio vital”. Cabe a cada um de nós encontrar esses caminhos, para não se extinguir como se extinguiram os animais pré-históricos. É Alejandro Llano, ainda, quem traz oportunamente o pensamento do Professor Ratzinger: “Diz-se que os dinossauros se extinguiram porque se desenvolveram na direção errada. Muita carcaça, pouco cérebro; abundantes músculos, escasso entendimento. Não terá acontecido algo similar conosco? Não teremos desenvolvido uma técnica vazia de alma? Espessa carcaça e um coração vazio? Não terá diminuído a nossa capacidade de reconhecer e aceitar a bondade, a verdade, a beleza?”Definitivamente, Austrália não é um filme para qualquer um. Seria um filme de sucesso para o público dos anos 50. Não porque tenha nascido velho ou démodé, mas porque no século XXI é cada vez mais difícil encontrar quem se disponha a ver um filme desarmado, de coração aberto, sem medo de adentrar na historia que nele se conta, para que esta também venha a fazer parte de si próprio.Lá se foi o meu propósito de assistir a um filme sem ter trabalho, quer durante, quer depois. Daí as presentes anotações, nascidas da sinceridade de quem se rende ao bom Cinema, sem qualquer vergonha, e quer lhe prestar a merecida homenagem. Mais ou menos como o fez Luhrmann. Haverá quem não seja capaz de entender. É uma pena. Nós, porém, teremos sempre o bom Cinema, como Bogart e Bergman tinham sempre Paris.
Comments 2
Olá Pablo, quem me passou seu contato foi a Drª Isabel Esposito. A proposta do seu blog é muito interessante. A meu ver, o assunto merece atenção na área da saúde, especialmente no Brasil.
Quanto à crítica sobre Austrália, confesso que também fiquei apaixonado pelo filme. Mais do que o comentário ao filme, vale a sua reflexão sobre a sociedade atual. Algumas pessoas se interessam pelo que está pronto, pelo imediatismo. O interesse explicita-se também pelo gosto por filmes prontos e previsíveis porque não exige do espectador qualquer análise para o entendimento da “obra”.
Boa sorte
Pedro Reiz
Olá Pablo, quem me passou seu contato foi a Drª Isabel Esposito. A proposta do seu blog é muito interessante. A meu ver, o assunto merece atenção na área da saúde, especialmente no Brasil.
Quanto à crítica sobre Austrália, confesso que também fiquei apaixonado pelo filme. Mais do que o comentário ao filme, vale a sua reflexão sobre a sociedade atual. Algumas pessoas se interessam pelo que está pronto, pelo imediatismo. O interesse explicita-se também pelo gosto por filmes prontos e previsíveis porque não exige do espectador qualquer análise para o entendimento da “obra”.
Boa sorte
Pedro Reiz