Um Sonho Possível. Liderança 360° em Versão Feminina.
The Blind Side. 2009 Diretor: John Lee Hancock. Sandra Bullock , Tim McGraw , Quinton Aaron, Jae Head, Lily Collins. 128 min
Algumas semanas atrás um amigo deu-me o filme na mão: “Vás gostar. É desses filmes que você gosta de comentar, valores, tudo isso”. Vi o filme, gostei, mas ficou por isso mesmo. Confesso que não entrou na minha lista de pendências. Pouco depois, outro amigo perguntou-me se o tinha visto. Assenti, sem muito entusiasmo. Ele tinha assistido no cinema, junto com os filhos. “Impressionante a força dessa mulher que consegue envolver toda a família num projeto audacioso. E o curioso é que não impõe nada; tudo é muito natural porque contagia o marido e os filhos com o seu entusiasmo. Ela é encantadoramente determinada.” Foi uma pista importante; comecei a refletir. Finalmente, na semana passada, durante a viagem para um congresso internacional, um dos colegas que me acompanhava, assistiu no avião e me disse: “Bom filme esse do Oscar da Sandra Bullock. Tem pegada”. Foi o suficiente para rever minha lista de pendências e modificá-la. Assisti de novo, agora calibrando os detalhes. Os comentários dos amigos tinham dado a largada à reflexão que, nessa altura, já acumulava idéias. Muitas, uma atrás da outra. Mas, perguntei-me, como é que isto passou batido?
É inútil tentar justificar as distrações, a falta de sensibilidade no caso, porque de não ocorrerem as advertências provenientes de quem te conhece e te quer bem, nada disto estaria sendo escrito. Mas meditar no fato traz uma luz confortável sobre o processo, em perfeita sintonia com o tema que nos ocupa. “Deve ser –pensei com os meus botões- o meu lado cego. Algo que não consigo enxergar e que, afortunadamente, outros me protegem e me avisam em tempo”. E, neste momento, lembro que o título original –The Blind Side- – esse sim me chamou a atenção. Vai ver que foi a espantosa tradução –mais um exemplo desafortunado, entre muitos no universo dos títulos fílmicos- o que, não justificando, ao menos explica o deslize. Um sonho possível, não tem nada a ver com o miolo do filme. Não diz absolutamente nada, e rebaixa a força da proposta original. Os sonhos, no nosso mercado de traduções, são tão freqüentes como inúteis. Tem os sonhos que o são de verdade, como os de Shakespeare na Noite de Verão, ou os de Kurosawa; tem os sonhos aceitáveis (Um sonho de Liberdade -The Shawshank Redemption, 1994; Um sonho distante -Far and Away, 1992), e tem os sonhos nos títulos que são fruto da invenção simplória do tradutor (Sonhos de um Sedutor –Play it again, Sam, 1972; Foi apenas um sonho – Revolutionary Road, 2008).O caso que nos ocupa se inclui neste último grupo, que continua presidido pela pior tradução ao vernáculo já feita e que todos lembram: A Noviça Rebelde – The Sound of Music, 1965, um exemplo genuíno de como se pode destroçar um filme com um título desafortunado. Neste último não tem sonhos –que até seriam mais aceitáveis do que o resultado iconoclasta- mas serve para exprimir a idéia que estamos ventilando. Em resumo: na dúvida, coloque sonho no título que acaba valendo e encaixa bem. Tudo acaba ou passa por sonho. Ou por pesadelo. Ou por sonhos que perturbam o sono, e daí vem a necessidade de fazer uma polissonografia que, fatalmente mostrará algum distúrbio, apnéia noturna ou qualquer uma das suas variáveis. Até agora nunca vi um paciente que fizesse um exame desses com resultado normal, mas isto é outra conversa. Voltemos ao filme, e fiquemos longe dos tradutores e das polissonografias.
O Lado Cego – nada melhor do que focar-se na idéia original- é o flanco débil do atacante do futebol americano, o entorno que o jogador não consegue enxergar quando arma a jogada. Se for atacado pela defesa contrária, a jogada morre na fonte. Para proteger essa fragilidade é preciso destacar um zagueiro do próprio time que, não possuindo a habilidade nem a rapidez do atacante armador, consegue blindar com sucesso o companheiro. Sua função, aparentemente sem brilho, é protegê-lo das agressões que lhe chegam pelo lado cego. Assim começa o filme, num campo de futebol americano, e neste contexto se desenvolve o argumento e se inserem os protagonistas: Big Mike, o zagueiro com 98% de instinto de proteção nos testes escolares, e Leigh Anne, com um modelo revolucionário de liderança além de um merecido Oscar de melhor atriz.
Vai aqui o primeiro recado, que a entusiasta protagonista dá ao treinador da equipe, e a nós. É preciso conhecer as pessoas –os que trabalham do nosso lado, a própria família- para aproveitar o potencial de cada um, e colocá-lo onde realmente pode ser útil. Não somente útil, como muitas vezes, insubstituível. Li, anos atrás, um pensamento que releio com metódica periodicidade: “Não digas de nenhum dos teus subordinados: não presta. – Quem não presta és tu: porque não sabes colocá-los no lugar em que podem funcionar bem.” Uma verdade tremenda, que esquecemos com perigosa freqüência. A teoria é clara, o conselho é magistral, mas na hora de por em prática, dá o branco. Não um branco mental, mas um branco afetivo que nos faz também sofrer. Irritamo-nos com as limitações dos outros, ao invés de apoiar-nos nas suas capacidades. Gostaríamos que fossem de um jeito –do nosso jeito- e, sendo diferentes, além de sentir-nos incomodados, escalamos as pessoas em posições inadequadas.
Preciso seria observar primeiro as virtudes, o poder de fogo de cada um, ao invés de calibrar os defeitos que, esses sim, gritam sempre desde a primeira linha do curriculum alheio. Precisamos de um filtro diferente, porque notando primeiro as virtudes podemos realmente descobrir como potencializar as pessoas, torná-las úteis, e ajudar a que dêem o seu melhor. Não é fácil, porque os defeitos funcionam muitas vezes como um imã que consegue atrair com surpreendente rapidez um núcleo duro que nos irrita; o que mais sentimos no defeito de outrem não é talvez a limitação que supõe para o interessado, mas a porção de ofensa que nos provoca. É necessária da nossa parte –da parte de quem exerce a liderança- uma verdadeira ginástica de virtude, um exercício de concórdia, para passar por cima do defeito, colocá-lo entre parênteses, e chegar até o potencial para desenvolvê-lo. A experiência do turista nos avisa disso: quando viajamos e estamos de passo, somente vemos o lado bom das coisas. Como dizia Chesterton, parece-nos encantadora a extravagância de quem toca violino no próprio domicílio, a qualquer hora. Mas, se ao invés de turistas somos os vizinhos do tal artista, daí a coisa muda, torna-se insuportável.
O segundo recado do filme – que podemos batizar como liderança em 3600- é menos explícito mas, ao meu modo de ver, inovador e de capital importância. O comentário do meu amigo sobre a determinação serena da protagonista que envolve no seu projeto de vida toda a família fez-me pensar. E trouxe à memória os comentários de Ortega acerca do comando das mulheres que, sem fazer barulho, como o clima faz com o vegetal, transformam o ambiente que as cerca, com uma influência que condiciona a vida possível e fecunda. Uma liderança –vamos chamar atmosférica- que determina a ecologia do sistema no qual estão inseridas.
A empreitada não é fácil mas, como já dito, parece-me um modelo essencial nos dias que vivemos. Saber colocar tudo numa coisa só: trabalho, família, projetos, sonhos, e o afã de fazer um mundo melhor. Ou talvez , mais do que colocar, a questão é colocar-se, ser único e o mesmo para todas as dimensões que nos ocupam e que amamos. Os amores que preenchem o nosso coração devem ser multiplicadores, nunca fator de redução. O conselho bíblico de que ninguém consegue servir a dois senhores, não pode ser interpretado de maneira simplista, como se de colocar velas a Deus e ao demônio se tratasse. A realidade é que os dois senhores –ou três, ou muitos- são senhores bons, que nos entusiasmam e aos quais queremos devotar o melhor dos nossos esforços. Atender os vários senhores com mentalidade de servos, querendo contentá-los para que não fiquem enciumados entre eles e nós ficar bem com todos, é equilíbrio difícil e desgastante. Não é possível servir a vários senhores enquanto nos sentirmos empregados – por não dizer reféns das coisas que fazemos, e mesmo que amamos. São amores divididos, que não se desfrutam plenamente, porque estão amputados na divisão da nossa alma. A solução é viver o que Fernando Pessoa recomendava: “em tudo quanto faças sé só tu, em tudo quanto faças sê tu todo”. Ser senhores de nós mesmos, para atender em compromisso único e total, tudo aquilo em que a vida nos envolve.
Onde buscar a unidade que nos salva da esquizofrenia vital e nos permite viver por inteiro o variado espectro da nossa existência? Parece-me lembrar que foi Jacques Leclercq um professor de Lovaina, quem escreveu que quando o homem se propõe a tudo custo ser feliz, sem mais, todo o seu universo fica reduzido e ele mesmo e às suas possibilidades e, a experiência mostra que ele mesmo –quer dizer, nós mesmos- é de fato pouca coisa. Somente é possível a felicidade –e com ela a unidade- quando nos abrimos a um ideal maior. Para ser senhores de nós mesmos e, desse modo, atender a todos os senhores com liberdade e dedicação, é preciso devotar-se de por vida a algo maior. Há quem chame isso de missão, outros de vocação; em qualquer caso, é preciso encontrar o nosso lugar no mundo, e responder a tremenda pergunta, diariamente: quem sou eu e qual é a minha função?
Resolvido isto, as conseqüências não se fazem esperar. Surpreende a naturalidade com Leigh Anne envolve toda a família no seu projeto de vida. O exemplo do filme é chocante –na verdade é uma metáfora por ser distante da realidade da maioria dos cidadãos- mas serve para ler nas entrelinhas. Tudo funciona como um contágio fantástico desse modus vivendi, porque a protagonista tem a questão da própria unidade resolvida. E arrasta toda a família com o exemplo, não com teorias. As amigas –gente da sociedade como ela- não parecem entender tudo isto. Pode ser até que trabalhem em ONGs para proteger crianças pobres, mas certamente há um horário para tudo isso e ninguém leva os problemas para casa. Aqui pode parecer exagerado –provavelmente o é- levar para a própria casa o emblemático desamparado, mas a leitura por trás do símbolo é suficiente para entender que se os projetos que temos fora –profissionais, do trabalho, atividades sociais- não entram no nosso lar e vice-versa , é porque não entraram na nossa alma.
Exemplo constante, ser feliz fazendo o que se faz. Esse é o caminho, não as teorias. Estou lendo nestes dias um livro instigante: Ética da hospitalidade. O autor comenta que de nada serve o ensinamento sobre a moral, se não é precedido pela experiência, se não há uma preparação prévia , um certo apego pelas coisas boas. Ninguém aceita o bem racionalmente, se antes não degustou a bondade, se não houve uma educação do paladar. A experiência vem antes da teoria; existe uma sabedoria sem argumentos nas práticas da vida humana, algo que a gente percebe como bom, porque o experimentou, o viveu, aprendeu a gostar disso. Estes pensamentos me fizeram lembrar o que alguma vez já escrevi sobre este tema, citando os clássicos. Assim, Platão dizia que educar é ensinar a gostar daquilo que é bom. E Aristóteles, quando fala de educar o desejo. E, finalmente, Bernardo de Claraval que afirmava ser sábio aquele a quem as coisas sabem como elas são.
A ética da hospitalidade –curioso título que interpreto como uma feliz coincidência com o argumento do filme que nos ocupa- é uma ética dos acontecimentos, que tem mais de passivo do que de ativo, pois a experiência mostra que a vida é menos um conjunto de iniciativas soberanas, do que de respostas a convites que o mundo nos faz sem nos consultar. Uma ética da resposta, muitas vezes imprevista, já que o homem mais racional não consegue controlar o que vai lhe surpreender. Naturalmente tudo isto implica riscos, incômodos, é um “buscar sarna para se coçar”. O caráter mesquinho é mais estável que o generoso, o fechado mais seguro do que o aberto, o simples mais harmônico do que o complexo. Uma ética da hospitalidade, na medida em que implica generosidade, abertura, e disposição favorável para o complexo, é necessariamente uma ética da instabilidade, que nos deixa vulneráveis como o anfitrião que está sempre ameaçado pela visita inoportuna. Quer dizer, complica a vida. Uma vida que é mais feita de respostas do que de planejamentos estratégicos. Respostas que requerem personalidade, fibra moral e, inapelavelmente, unidade de vida, posse plena da própria alma. Se o homem pode prever muitas poucas coisas – situação que a técnica moderna ameaça com fazer-nos esquecer- pode sim construir a integridade do seu caráter, devotar-se à sua missão, firmar sua posição no mundo. Estar em forma para saber responder à altura dos acontecimentos.
Longe levou-nos um filme que, inicialmente, tinha passado despercebido. Foram os tais sonhos, agora estou certo, os que me distraíram. Voltamos ao título original, inspirador. O Lado cego, o lado oculto de cada um de nós. Aí se incluem nossas fraquezas e limitações, nosso calcanhar de Aquiles, que temos de levar com paciência e sem desistir. Talvez o que nos protege é mesmo a abertura aos outros, colocar nosso sistema operacional em função de terceiros, superando o egocentrismo que nos cerca. Vou cuidar da minha vida – ouvimos com freqüência. Atitude esta que na verdade significa ter várias vidas, porque quem tem uma só, não cuida dela, mas a vive em plenitude, com alegria. Quando estamos divididos, o esforço por cuidar da vida implica na inútil tentativa de que umas vidas não contaminem as outras, sem entender que somos uma pessoa só, que as divisões mentais e de agenda que fazemos por atender tudo, é um câncer que, antes ou depois, dará metástases e nos devastará numa divisão que não é fisiológica. As divisões, os compartimentos, o “eu não misturo” é uma bomba relógio, porque a nossa vida é misturada e temos de encontrar a unidade que consegue abraçar, com o mesmo coração, cabeça e potencialidades, tudo no qual nos envolvemos. Esse é o caminho para envolver os outros, em cada ambiente. Até na própria família. Essa é a liderança em 3600, um belo projeto a perseguir.
Comments 5
É intressante como às vezes não captamos em um primeiro momento a riqueza de um filme, e somente pelos olhos de outros, e pela sua sensibilidade, aprendemos a valorizá-lo e a enriquecer-nos com o seu conteúdo e mensagem. É esse o motivo que me faz agradecer o recebimento destas críticas de cinema.
Excelente texto. Em algum momento (ou em quase todos) nos vemos inseridos nesse comentário. Querendo ou não, temos um lado realmente cego, que nos torna mais vulneráveis. Mas isso faz parte da maestria de Deus, que criou todo ser humano com alguma deficiência, para que dependesse do próximo de uma maneira ou de outra. Não há humanos plenos, perfeitos. Isso frustra nossa auto-confiança de querer sempre ter uma resposta a todas as situações que enfrentamos. Parabéns!
Pablo,como sempre,você tece excelentes argumentações em suas críticas que nos envia,
induzindo a muitas reflexões sobre os valores da vida.
Fico na dúvida sobre qual área de atuação você se destacaria melhor:medicina ou filosofia.
Um grande abraço!
Roberto Fava.
Pingback: Cinedebate – Filme: Um sonho possível – John Lee Hancock « Casa de Familia
Pablo, muito bom.
O detalhe do titulo, foi sendacional, me passou desapercebido.A liderenca feminine tambem foi um fato muito interessante. Eu passei o filme olhando apenas o lado encantador da atriz. E por ai vai. Sociedade, preconceito, racismo, coragem, influencia, oportunidades, ajuda, Sao assuntos tambem enriquecedores…falamos em outra oportunidades…abs