Um ato de liberdade: O coração de um líder
Há filmes ótimos que passam totalmente despercebidos do grande público. Não sei por quê. Parece até que são tacitamente sabotados pela mídia. Um ato de liberdade é um deles. Tive oportunidade de assisti–lo antes de entrar em cartaz, num avião, fora do País. Depois, quando fui alinhavando ideias para escrever sobre ele, busquei-o na programação dos cinemas e o encontrei encostado num canto, sem nenhuma estrela – não digo poucas, mas nenhuma estrela, totalmente ignorado –, alocado em pouquíssimas salas de cinema da Cidade, em horários completamente esdrúxulos. Esta era a situação quando fazia apenas três semanas que estava em cartaz. Um despropósito!Perguntei aos amigos e comentei com colegas. Ninguém o conhecia. Por que o silêncio? Talvez porque estejamos cansados de filmes sobre o holocausto, embora, neste caso, o tema fosse justamente o contrário: o jeito de safar–se do holocausto. Talvez porque o protagonista – encarnado por Daniel Craig – não tenha conseguido se desvencilhar da imagem de 007 que lhe foi emplacada nos últimos dois filmes do agente britânico. Ou simplesmente porque Hollywood não anda tendo muita coisa nova a oferecer. Ou então porque o filme não seja politicamente correto, embora nos tempos em que vivemos seja cada dia mais difícil atinar com o significado exato desta consagrada expressão e fazê–la compatível com o respeito às minorias, com a responsabilidade social e a solidariedade ecológica. Confesso que são tantos os parâmetros do “politicamente correto” que é muita areia para o meu caminhão!A verdade é que eu já vinha seguindo a pista do filme, desde que tive ocasião de ler um comentário em certa publicação estrangeira. O filme não foi nenhuma supressa e, pensando bem, a reação – o silêncio da mídia – também não o foi. Edward Zwick é um diretor forte, com temática centrada: a liderança na adversidade. Seu currículo fala por si: Tempos de Gloria, Coragem sob Fogo, O Último Samurai, e o recente Diamante de sangue. Sabemos o que vamos encontrar num filme de Zwick. Conhecemos seus gostos, suas habilidades. Sabemos também que não negocia valores e que seus recados nem sempre são confortáveis. Tem uma atração toda especial pela missão que é, do ponto de vista dele, o que realmente constrói o homem, o que o configura. “Meu dever fez–me, como Deus ao mundo” escreve Fernando Pessoa em sua Mensagem, em honra aos reis daquele Portugal que navegava e conquistava. A missão que nos foi confiada permite que nos tornemos naquilo para o qual estamos destinados. Essa identificação do homem com a missão é marca registrada dos filmes de Zwick, missão que é dever que não se escolhe, mas que surge diante de nós, nos atrai, o incorporamos e fazemos dele vida da nossa vida. Lembra-me muito aquele outro diretor, Fred Zinneman, que também tinha atração pelas personalidades fortes, independentemente da cultura, crença, ou raça. Matar ou morrer, O homem que não vendeu a sua alma, Espíritos indômitos, são alguns exemplos de sua filmografia nos anos 50 e 60. Não é de estranhar que os filmes de Zwick careçam de divulgação, o que, todavia, não deixa de ser paradoxal nestes tempos em que tanto se fala de liderança, de valores, e que portanto constituiriam, em tese, um ambiente propício à propagação de mensagens como as de seus filmes. É justamente aqui onde reside a explicação. Vivemos, sim, uma época de marketing de valores, marcada por uma epidemia de cursos de liderança – corporativa ou pessoal –, os quais, não por acaso, se converteram para muitos em negócio altamente rentável. Não é isso, porém, o que os filmes de Zwick apontam. O líder que nos apresenta não é um executivo bem sucedido, um guru dos tempos modernos, mas alguém que sofre, tem dúvidas, vence a si próprio, com frequência se dá mal, sofre perdas e experimenta as misérias próprias e alheias. “Uma coisa é pôr ideias arranjadas – diz o nosso Guimarães Rosa pela boca do jagunço – e outra lidar com país de pessoas de carne e sangue e mil e tantas misérias”. Esta liderança nada tem a ver com o sujeito sorridente que aparece nas capas dos folders dos MBA de liderança corporativa, metido num terno Armani. Vivemos momentos em que os valores podem estar em alta, mas as virtudes que os sustentam estão ausentes. Valor sem virtude (que é força de caráter), que se apoia apenas em emoções, é papel financeiro “tóxico”, destituído de lastro na realidade e por isso propenso a pulverizar-se. Um ato de liberdade é uma homenagem ao genuíno líder, ao coração do líder – esse líder que navega entre carne, sangue e mil e tantas misérias. Três irmãos judeus na Bielo–Rússia durante a ocupação alemã é o cenário que Zwick escolhe para nos propor o tema. Eles têm consciência de que devem fugir às montanhas, salvar–se, pois toda a família foi eliminada pelos alemães com a ajuda dos colaboracionistas. O propósito da sobrevivência é claro, mas os planos mudam quando outros judeus – famílias inteiras – vêm agregar–se ao grupo inicial: “Deste modo não poderemos fugir. Todos os dias chegam mais pessoas. Há velhos e doentes; não podemos cuidar de todos” – diz um dos irmãos. “São família! Cuidaremos deles. Lutaremos!”. É o coração do líder que se dilata e no qual sempre cabem mais pessoas. Consciente da missão que se vai revelando em sua vida, busca mais pessoas para ajudar. É realista, conhece suas limitações: “Está proibido engravidar; não temos como cuidar de recém-nascidos”. Mas a prudência não evita os imprevistos, os novos desafios. A mulher que havia sido estuprada por um alemão, e nota que a vida que nela se desenvolve lhe confere forças para continuar fugindo – dá-lhe um sentido para viver –, esconde–se para dar à luz. A criança chora e o líder sente–se enganado: “Terá de abandonar o acampamento com a mãe e o pai” -diz. Mas o líder soube formar seus colaboradores, e agora é interpelado: “Você nos ensinou que não podemos ser como eles, que não somos animais. Temos que defender a vida. Isso foi o que ela fez”. Qual é o tamanho do coração de um líder? Qual a capacidade de improvisação, de liderar nos imprevistos e nas adversidades? Liderar aqueles que não escolheu, em cômoda seleção de uma equipe, dentre pessoas capacitadas, mas aqueles que, na verdade, o escolheram e lhe pediram que os guiasse. Como liderar quando as ideias são atropeladas pelas circunstâncias e as previsões se tornam insuficientes? Isso não é um curso de liderança num hotel cinco estrelas, com grupos de animada discussão depois de um farto coffee–break . Isto é a realidade. “A vida é terra e vivê–la é lodo – escreve Pessoa. E continua: “Tudo é maneira, diferença ou modo. Em tudo quanto faças sê só tu, em tudo quanto faças sê tu todo”. A teoria se torna lodo, complica e polui a existência. O decisivo é o coração do líder, o exemplo de virtude e determinação. O líder sabe–se humano, apalpa suas próprias fragilidades, e com esse conhecimento consegue entender melhor as misérias das pessoas. Este coração onde cabem todos e tudo não é blindado contra a fraqueza e o desânimo, mas repleto de boa vontade, que no dizer de Gregorio Marañón é o que mais nos assemelha de Deus – essa possibilidade de re-criar com vontade boa sobre circunstâncias adversas. E essa vontade criadora é o instrumento que ajuda o líder a moldar seus colaboradores, os quais, por sua vez, nos momentos difíceis, serão os que lhe prestarão ajuda e o lembrarão que a missão é o único sentido da vida, o dever que faz a pessoa, que a edifica e a constrói eficazmente: “Deus não vai separar as águas deste pântano. Seremos nós, com a nossa vontade, ajudando–nos uns aos outros” – diz o irmão menor, quando vê o líder claudicando. Para liderar na adversidade é preciso grandeza de coração, toneladas de virtude que vão sendo amealhadas pela reflexão, pelo vencimento de si próprio. “Somente quem tem na sua alma as cicatrizes da luta consigo mesmo é capaz de entender as fraquezas dos outros” – afirma Marañón. Caminho certeiro, embora árduo. Uma proposta diferente para essa pseudoliderança que vem se divulgando tanto quanto se desgastando, à base de ser apresentada como simples técnica de comunicação, ou como uma confortável disciplina de pós–graduação em management moderno. Quando um assunto nos conquista e monopoliza nossos pensamentos acabamos reunindo todas as circunstâncias que nos rodeiam para melhor entender o tema principal. Estas reflexões sobre Um ato de liberdade coincidiram com a leitura do Diário de Etty Hillesum, uma intelectual holandesa judia que escreveu em 1942: “Não vejo outra solução a não ser adentrar–se em nós mesmos e exterminar toda esta corrupção. Não creio que possamos melhorar em algo o mundo exterior, enquanto não melhoremos primeiro nosso interior. Esta me parece a grande lição desta guerra: que tenhamos aprendido a buscar o mal dentro de nós, e não em nenhuma outra parte”. Essas palavras, provenientes de quem voluntariamente quis acompanhar sua família a um campo de concentração, onde acabou perdendo a vida, nos brindam com uma luz contundente e muito propícia ao encerramento deste comentário. Eis o tamanho – enorme – que deve ter o coração de quem, de verdade, pretende liderar e ajudar os outros, neste mundo que é lodo, carne, sangue e mil e tantas misérias.