Gustave Flaubert: “Madame Bovary”
Gustave Flaubert: “Madame Bovary”. Unidad Editorial. Madrid 1999. 320 págs. (tradução de Carmen Martín Gaite).
Por algum motivo que não alcanço a lembrar -talvez a sugestão de um dos participantes da Tertúlia Literária, associado ao contraste com a última personagem feminina comentada neste cenário (Joana D’Arc)- a leitura mensal nos leva até o obra de Flaubert. Clássica e polêmica na sua época, valeu-lhe processos e proibições por conta de um argumento que hoje não destoaria de uma sessão da tarde na TV.
Leio um exemplar da versão espanhola (comprada por 1 Euro numa rua de Madrid), ciente de ser uma boa tradução do original, por conta de uma escritora destacada. Não lidamos com um simples tradutor; mas com um literato vertendo ao seu idioma a prosa de Flaubert. Eu traduzo para o português, com inegáveis perdas de efeito e de elegância semântica.
A saga de Emma, que toma o nome do seu marido Charles Bovary é, no dizer dos participantes da tertúlia, um ensaio multicolorido sobre a insatisfação humana -nunca estamos bem com o que temos, o quintal do vizinho é sempre melhor. Para outros, com palavras de um comentador afamado, é mesmo um estudo sobre a estupidez humana, aquela que se decorre de não valorizar o que temos na mão, da falta de gratidão, que leva a sucumbir aos espasmos dos desejos sem forma nem propósito.
Eis a radiografia da protagonista na prosa de Flaubert: “Emma, habituada ao sossego da vida, sentia-se atraída por contraste pelos aspectos turbulentos. Se gostava do mar, era pelas tempestades; e apreciava o verde do campo somente quando aparecia entre as ruínas. Precisava extrair das coisas uma espécie de proveito pessoal, e rejeitava por inútil tudo quanto não contribuía ao consumo fulminante do seu coração, e sendo como era de condição mais sentimental do que artística, preferia as emoções às paisagens (…) Com as leituras acontecia-lhe o mesmo que com os labores domésticos; mal começavam, amontoavam-se com outras dentro do armário. Pegava nelas, as deixava, começava uma nova”. Enquanto lia esta descrição da veleidade total de Emma, veio à memória aquela outra de Tess, a personagem do romance de Thomas Hardy: “um vaso de emoções sem o conteúdo da experiência”. Quer dizer uma antena parabólica que capta toda e qualquer emoção no ambiente, mas é incapaz de processá-las.
Charles, o marido devoto, refratário a esse turbilhão de paixões, nos oferece o contraste necessário. Filho de um homem sem horizontes, “que montava os cavalos ao invés de enviá-los para cultivar o campo, e em lugar de vender a sidra em barricas a bebia nas botelhas, comia as melhores aves do curral, e lustrava as botas com a graxa dos seus porcos”. Com uma educação aos trancos e barrancos, “iniciada com as aulas que o sacerdote lhe dava, curtas, de pé, em tempos perdidos entre um batizado e um funeral” faz se médico, também sem grandes pretensões. “Charles concordava fosse porque tinha a mesma opinião, ou por não querer ofender a ninguém, o talvez porque carecia de opinião alguma. Faltavam-lhe as palavras, o ocasião, a audácia” Adapta-se ao que tem, oferece a Emma tudo o que lhe é possível. E parece que esse conformismo -ou talvez desfrutar com simplicidade do que se tem, que convenhamos não é pouco- é o estopim que espicaça os espasmos cegos de Emma, e a mantém em permanente irritação.
“Conforme aumentava a intimidade nas suas vidas, produzia-se um desapego em Emma que acabava separando-a de Charles. O que esse homem poderia lhe ensinar? Nada sabia, nada desejava. Pensava que ela era feliz, e a ela se irritava com sua calma e impassibilidade. (…) Cuidava de Charles, arrumava a gravata, mas não o fazia por carinho para como ele, mas por ela mesma, para dar vazão ao seu egoísmo. Perguntava-se se nunca poderia sair daquilo? Duraria para sempre aquela mesquinharia? (…)“Como eu que sou inteligente equivoquei-me com este homem? Como me enganei para desperdiçar assim a minha vida? Tinha raiva de si mesma, de ter acreditado que aquele homem poderia valer para alguma coisa, de não ter atentado para a sua mediocridade. Não havia nele uma coisa só que não a irritasse….Nem com um milhão que me oferecesse seria eu capaz de perdoar por ter me conhecido; nunca lhe perdoarei”.
Madame Bovary consome-se nos próprios pensamentos e desejos turbulentos. E daí arranca a sua triste aventura. A vida social e os novos conhecidos proporciona-lhe um trato com “homens que mostravam suas paixões diariamente saciadas, e através das suas maneiras refinadas irrompia neles essa brutalidade que confere o domínio das coisas fáceis, onde se treina a força ou se exercita a vaidade, como o manejo de cavalos puro sangue ou o trato com mulheres de vida dissoluta. Seu coração era como os sapatos que no atrito com a riqueza, tinha se lhe grudado algo que jamais desapareceria”. Homens de postura claramente dissoluta: “sempre falando do mesmo, do dever. …O dever consiste em sentir o que é grande, gozar do belo, o único dever que temos é rejeitar todos os convencionalismos que nos impõe a sociedade”. Um belo caldo de cultura para os germes espasmódicos da Bovary.
As novidades-sensações- reflexos medulares tem nome. Leon primeiro em distância platónica; depois Rodolphe, um mulherengo consumado: “Tinha uma caixa de bolachas de Reims onde guardava as cartas que as mulheres lhe escreviam. Quando as abria saia um cheiro de pó e de flores murchas. Na realidade, aquelas mulheres quando lhe vinham todas juntas à cabeça, atropelavam-se entre elas, apareciam-lhe repetidas, cortadas todas pelo mesmo arquétipo de amor (..)Fugiu de Emma, a evitava depois, com aquela cobardia típica do sexo forte (..) Se o primeiro dia enamorou-se de mim, agora a impaciência de tornar a ver-me terá aumentado seu amor.”
O efeito dos envolvimentos carecem de qualquer consistência. São também espasmos, de outra ordem, mas anseios transitórios. “Olhou-se no espelho e ficou surpresa da mudança operada no rosto: tenho um amante! Vinham à mente as protagonistas de todos os livros que tinha lido, e aquela poética legião de mulheres adúlteras começava a entoar um canto que a fascinava. Era chegada a hora do triunfo! (…) A partir daquele dia sua vida converteu-se num pacote de mentiras com os que embrulhava seu amor, para melhor escondê-lo, como dentro de um velo”.
Veleidades que mudam de rumo, e até assumem cheiro de arroubos místicos: “De repente encontrou-se a caminho da igreja, disposta a qualquer devoção, tanto dava, sempre que submetesse sua alma e afogasse a sua vida até fazê-la desaparecer (..) Não tinha inteligência para concentrar-se em nada sério. As normas do culto a irritavam. E daquele amor embalsamado subiam eflúvios que entravam pelas frestas e perfumavam docemente a atmosfera imaculada onde tinha se proposto viver”.
E do incenso da igreja, já aborrecida e consumida de ciúmes de anterior pretendente, o espasmo caminha de volta para o anterior: “Não trate com eles, não saias com ninguém, pensa somente em nos, tens que me amar. Até pensou em contratar alguém para lhe seguir”. Assim descreve Flaubert o reencontro com o antigo amante e a consumação do novo adultério: “abriu-se a cortina do coche de cavalos, a apareceu uma mão nua que deixou cair uns pedaços de papel picado (o papel no qual tinha escrito uma carta de despedida – explicação nossa) , que voaram longe e se depositaram como borboletas brancas sobre um campo de trevos vermelhos”. Dizíamos no início que o argumento poderia ocupar espaço numa sessão da tarde, mas nunca numa novela porque essas sim, superam a licenciosidade de Emma Bovary, com a diferença que o escritor francês sabia usar a perífrase e as insinuações, aspecto do qual carecem absolutamente as produções novelescas televisivas, transpirando grosseria e mal gosto. Roteirista de novelas não é, nem de longe, Flaubert.
A história de Emma transcorre na angústia, porque os espasmos medulares esgotam uma natureza racional, por mais sensual que se possa apresentar. “Não era feliz. De onde vinha aquela inconsistência de vida, aquela podridão fulminante de todas as coisas nas quais tentava se apoiar? (…) Pesava-lhe como um crime o desejo de ser virtuosa, e o pouco que restava desse propósito se desmoronava pelos golpes tremendos do seu orgulho. (…) Por covardia, por pura imbecilidade, por esse indescritível estado de ânimo que nos arrasta por vezes a cair nos atos que nos repugnam. Quem a tinha feito tão desgraçada? Onde estava a causa da sua catástrofe? E olhava à sua volta querendo encontrar em algum lugar a raiz dos seus males”.
Como médico sou obrigado a pensar que Madame Bovary não me parece uma mulher libertina, mas doente….Alguém que precisaria de tratamento correto. Lembrei do comentário de uma professora da faculdade de medicina com quem coincidi numa banca da doutorado, a respeito de “um evento de assédio” no estacionamento da Instituição. Parece que a aluna em questão tinha tomado umas e outras e começou a se despir, estimulando a plateia a partir para as vias de fato. A atitude da aluna alcoolizada, que aparecia como uma justificativa para o ilustre colegiado de professores, provocou o comentário da professora “Quer dizer, que se eu tiro a roupa em cima de um carro, vocês partem para cima de mim ao invés de me internar e tratar? E nós estamos tentando formar médicos nesta Instituição?”. Silêncio. Reflexão.
A tertúlia literária foi riquíssima em comentários, cuja densidade é impossível reproduzir nestas linhas. Alguém chamou a atenção para a sociedade líquida, onde tudo é rápido, passageiro, o que conduz a insatisfação permanente, e a suicídios porque a vida está saturada de sensações, de espasmos medulares. Não será tudo isso como um suicídio aos poucos, como um câncer da insatisfação que vai tomando conta de tudo? E junto com o fastio surge a irritação e a revolta contra as coisas e pessoas que nos são caras. Anota Flaubert: “O fato de denegrir aos seres queridos e algo que sempre nos afasta um pouco deles. Os ídolos é melhor não tocá-los porque pode acontecer que parte da pintura dourada que os recobre fique sempre entre nossas mãos”.
Apalpamos a miséria alheia, nos decepcionamos, saturamo-nos também dos nossos anseios sem rumo, das quimeras que bem descreve o autor: “Não há burguês que nos ardores da primeira juventude não tenha acreditado, mesmo por alguns minutos, estar destinado a grandes empresas e capaz de enormes paixões. O libertino mais baixo já sonhou algumas vezes com sultanas”. Sim, a estupidez, a insatisfação humana, sozinha com sua imaginação, que gera uma estéril expectativa. E de novo os magníficos questionamentos do participantes: Porque não aproveitamos o que temos? Talvez porque nos falta gratidão que confere a dose equilibrada de realismo. Sem acomodar-se, aceitando novos desafios, mas sabendo desfrutar com simplicidade do que temos.
As aventuras de Emma Bovary não são em busca do amor, mas da pura sensação visceral, um reflexo quase medular ou condicionado como o experimento de Pavlov, sem a procura explicita de prazer mas apenas da novidade, mesmo sem saber o que fazer com ela depois. Não posso evitar anotar o que neste contexto me vem à cabeça em forma de ditado popular acerca da indecisão sobre a vida: não sabe se casa ou se compra uma bicicleta. Flaubert que me perdoe, mas penso que encaixa perfeitamente e impõe uma reflexão de por vida. Não abrir mão de refletir -esse diálogo imprescindível consigo mesmo de que falava Hannah Arendt para evitar a banalidade do mal. E para fugir da mediocridade e da indecisão, que é como revestir-se -palavras de Flaubert- “com uma dessas prendas de vestir, cuja muda fealdade alcança abismos comparáveis aos do rosto de um imbecil”.