Svetlana Aleksiévitch. “Vozes de Tchernóbil. A história oral do desastre nuclear”.
Svetlana Aleksiévitch. “Vozes de Tchernóbil. A história oral do desastre nuclear”. Companhia das Letras. São Paulo. 2016. 384 págs.
A narrativa poderosa e impactante da escritora prêmio Nobel da Bielorrússia, protagoniza a leitura mensal e as reflexões da Tertúlia Literária . Escreve o livro em 2005, 20 anos depois da catástrofe, após recolher testemunhos multivariados dos envolvidos no desastre nuclear, que alinhava de modo magnífico -um exemplo notável de história oral- dando voz aos que não têm, imprimindo relevo e colorido humano sobre um evento cinza. Svetlana é de fato uma escritora que humaniza a história, e nos faz chegar até a alma das personagens.
Assim descreve seu trabalho de garimpo recolhido nesta obra. “Passaram-se mais de 20 anos da catástrofe, mas até hoje persegue-me a mesma pergunta: do que tenho de dar testemunho? Do passado, ou do futuro? É tão fácil cair na banalidade, na banalidade do horror”.
E explica que o foco são, como sempre nas suas obras, as pessoas e não apenas os fatos: “Este livro não trata de Tchernóbil, mas do mundo de Tchernóbil. Sobre o tema escreveram-se milhares de páginas. Eu dedico-me à história omitida, às pegadas do nosso passo pela terra e pelo tempo. Escrevo recolhendo o quotidiano dos sentimentos, das palavras, da vida diária da alma. A vida quotidiana de gente corrente. Aqui tudo é extraordinário: as pessoas e as circunstâncias elevaram esse povo a uma nova condição. Tchernóbil para eles não é uma metáfora, mas sua casa. O nome do meu pais, um pequeno território perdido na Europa, do qual o mundo nunca tinha ouvido falar, começou a ressoar em todas as línguas, converteu-se no laboratório diabólico de Tchernóbil, e nós, os bielorrussos, nos convertemos no povo de Tchernóbil. Escrevi durante muitos anos este livro. Quase vinte. Encontrei-me com trabalhadores, científicos, médicos, soldados, evacuados, residentes ilegais em zonas proibidas. Com as pessoas para as que Tchernóbil representa o principal conteúdo da suas vidas. Reflexionávamos juntos, tinham pressa, temiam não chegar a tempo, e ainda não sabiam que o preço do seu testemunho era a vida”.
Mas os fatos e os números não estão ausentes: “Antes de Tchernóbil por cada 100 mil habitantes de Bielorrússia se produziam cerca de 82 doenças oncológicas. Hoje chegam a 6 mil. Quer dizer, multiplicaram-se por 74” . Embora o que de fato a seduz são as personagens, seus entrevistados: “Tropecei com muita gente boa: uma auxiliar de idade foi me preparando: algumas doenças não se curam. Tens de sentar e acariciar a mão. As mucosas caiam em capas. Chagas que foram crescendo. Mas tudo nele era tão meu, tão querido”.
Aleksiévitch é o alto-falante da história, a voz do povo. E, sendo como é tremendamente feminina -vale lembra aquela outra obra magnífica, A Guerra não tem rosto de mulher– as narrativas de mulheres são sempre o prato forte, relatadas em voz baixa, na intimidade da cozinha, tomando chá, ou quem sabe alguma bebida mais substancial. “Não precisam compadecer-se de mim. Houve um tempo em que fui feliz (…) Para mim são lembranças tão vedadas que não falo delas em voz alta. Deus não me librou de danos, mas deu-me anos” .
Mulheres que choravam por sua terra envenenada, e pelo toxina que sobrou para elas. “Você é de Tchernóbil, ninguém vai querer se casar com você (…) Peço amor, mas tenho medo. Tenho medo de amar. Tenho noivo, já entregamos os papeis no registro…..Já ouviu falar dos Hibakusi de Hiroshima? São os sobreviventes, somente podem se casar entre eles. Ninguém fala disso. Nós somos os Hibakusi de Tchernóbil (…) Minha menina nasceu com deformidades. As crianças como ela não vivem , morrem logo. Ela não morreu porque eu a amo demais. Não posso parir mais ninguém, já me avisaram. Meu marido, de noite, me beija, mas não devemos….O medo…..Quiseram evacuar nossa vila, mas depois a tiraram da lista. Foi então quando me enamorei, e casei-me. Eu sabia que aqui não poderíamos nos amar”.
Pessoas simples que não alcançavam a entender o que estava acontecendo. “Fico sentada junto a todos os meus -relata uma mulher solitária em zona proibida- suspiro, e até posso falar com eles, tanto com os vivos como com os mortos. Para mim não há diferença. Radiação? Que radiação? Se as borboletas voam e as abelhas zumbem do meu lado, e meu cachorro continua caçando ratos (…) Escutei que todos temos muitos glóbulos brancos……E outra responde: bobagem, ontem cortei meu dedo e o sangue era vermelho”.
Relatos onde as crianças afetadas insertam enormes doses de dor e de ternura. “Nunca escutou as conversar dos meninos sobre a morte? Os meus, com catorze anos perguntam se dá medo a morte. Até há pouco tempo, as crianças queriam saber de onde vinham os bebés….Agora lhes preocupa a morte, depois de uma bomba atómica (…) Estou todo o dia em casa, sou invalida. As meninas da classe, quando souberam que tinha câncer no sangue, ficaram com medo de sentar do meu lado. De tocar-me. Olho minhas mãos, nada mudou. Os médicos dizem que estou doente porque meu pai trabalhou em Tchernóbil. Eu nasci depois. Eu amo meu pai”.
E misturadas com as histórias dolorosas, emerge sempre a enorme estatura da alma russa, da consciência pátria. “Sou uma pessoa que não sabe o que é o instinto de conservação. Mas tenho um sentido do dever muito desenvolvido. E pessoas como eu havia muitas naqueles momentos (…) Para nós a vitória não é um acontecimento, mas um processo. A vida é luta. Por isso a fascinação pelas inundações, pelos incêndios, terremotos. É a necessidade de encontrar um lugar no qual poder atuar, dar mostra de valor e heroísmo, e depois levantar a bandeira (…) Estava proibido filmar a tragédia; somente se gravava o heroísmo. Ninguém reclamava. E preciso fazê-lo? Faz-se. A pátria te chama, a pátria te ordena. Assim é o nosso povo. Porque calávamos? Por disciplina do partido. Nenhum dos nossos trabalhadores se negou a viajar à zona. E o faziam não por medo de serem expulsos do partido, mas pelas suas convicções (…) Não quero no jornal gente difundindo o pânico. Escreve sobre os heróis, os soldados que subiram ao teto do reator”. Heróis que atuam como liquidadores, na tentativa de minimizar a catástrofe sabendo que comprometem definitivamente sua vida. Eis o grito de um deles: “Sabe qual é o meu maior desejo? Uma morte corrente, não como as de Tchernóbil”.
Assim descreve a versão soviética do compromisso pátrio: “Entre nós não há médicos, nem maestros, nem científicos, nem jornalistas. Só existe para nós uma profissão: a do homem soviético. O socialismo soviético: o homem entregava ao Estado a alma, a consciência, o coração, em troca de uma ração. (…) A ciência estava ao serviço da política; a medicina também amarrada pela política. Buscávamos o inimigo que não existia. Era uma combinação letal de ignorância e corporativismo. A verdade é que a qualidade e a segurança de uma instalação especial como aquela não se distinguia de um complexo agropecuário (…) Nossa educação ensinava que o perigo somente se poderia dever a uma guerra…Mas aquilo era um incêndio normal,….. Queríamos nos proteger do átomo , como se fosse metralha de um projetil.. Mas estava em todas as partes. Dos dez milhões de bielorrussos, dois milhões vivem em terras contaminadas. Um laboratório natural”.
Mas um compromisso que estava à borda do precipício, uma revolução atómica, diferente do sangue que correu no final do império dos Czares, mas de efeitos catastróficos. “Durante os primeiros dias, desapareceram das bibliotecas os livros sobre radiações, sobre Hiroshima e Nagasaki; até os que tratavam de Raios X (…) Não só se contaminou nossa terra, mas também nossa consciência….E por muitos anos (…) Depois que acabou a União Soviética não temos mais pátria. Nos matamos uns aos outros. Não é um guerra como a anterior (…) Na história ficarão juntos: o desmoronamento do socialismo e a catástrofe de Tchernóbil. Foi a catástrofe que acelerou o afundamento do Império Soviético. Tchernóbil é a catástrofe da mentalidade russa. Como alguns escreveram, não é o reator o que explodiu, mas todo o sistema de valores vigentes”.
A autora descreve as guerras entre os diversos povos que compunham a União Soviética, agora sem comando, cada um por sua conta. Cenas terríveis de matanças por motivos étnicos, incluídas mulheres, crianças e bebés. “Existe algo mais pavoroso do que o homem? ….Meio pais encerrava, e outro meio pais estava encerrado”. E no meio deste pavor, uma vez e outra, a voz que ecoa da alma ferida: “Jornalistas? Perguntam, tomam sua água mineral -a que eles carregam consigo- teme tocar meu copo, e eu tenho de lhes abrir a minha alma….entregar-lhe minha alma (…) Quando queres encontrar sentido a algo, notas que te convertes numa pessoa religiosa. Eu sou engenheiro, tenho outras convicções, guio-me por outros símbolos (…) Porque me fiz fotografo? Porque me faltavam as palavras”.
Após ler o livro, assisti os cinco capítulos da Série correspondente da TV sobre a catástrofe. Estranhou-me não encontrar nos créditos as referências à obra de Svetlana, mas não há dúvida de qual é o embasamento do roteiro: há momentos onde o filmado é literalmente as descrições do livro. No final da série, encontrei sim um belíssimo resumo do acontecido, e uma acertada interpretação que, de um modo ou outro, poderia estar assinada pela escritora premiada. Inicia-se com um diálogo entre o cientista e o homem de estado:
-Se você sugere que o Estado Soviético é responsável pelo desastre está entrando num terreno perigoso.
-Bem estamos todos num terreno perigoso….Há 16 reatores que na URSS que apresentam o mesmo defeito….3 deles a menos de 20 km daqui, em Tchernóbil …..
– São segredos. Da KGB, do Comité Central….
E, a seguir, o grande recado: “Mentiras: é o que nos define. Quando a verdade ofende mentimos até não nos lembrarmos mais dela…..Cada mentira que dizemos, incorre numa dívida com a verdade. Antes ou depois essa dívida será paga. É assim que explode um reator nuclear: com mentiras! Ser cientista é ser ingênuo. Estamos tão focados na verdade que não reparamos que são poucos os que querem que a encontremos. Mas ela está lá, queiramos ou não, sem se importar com o que queremos. Não se importa com nossos governos, ideologias, religiões…..E ela ficará à espera, para sempre. Esta é a grande dádiva de Tchernóbil….Eu temia o preço da verdade, mas agora me pergunto: qual é o custo da mentira?”
Copiei textualmente para colocar fim a estas linhas…..e deixar espaço para a reflexão pessoal, que transcende a catástrofe nuclear -tão distante de nós- para levar-nos a um terreno muito mais familiar: qual é o preço da mentira e o saldo que resulta em querer, sistematicamente, não encontrar a verdade!