Amor Towles: “Um Cavalheiro em Moscou”.
Amor Towles: “Um Cavalheiro em Moscou”. Ed. Intrínseca. Rio de Janeiro 2018. 460 págs.
Inauguramos a Tertúlia Literária deste ano 2020, com um livro fascinante. Elegante, detalhista; e no centro da magnifica narrativa, o Conde Aleksandr Ilitch Rostov, um aristocrata dos felizes anos 20 do século passado, se apresentando nestes outros anos 20, que teremos de ver o quão felizes podem ser . O argumento -que sempre evitamos contar nestes comentários- é um simples detalhe, um prefácio para tudo o que se desenvolve depois, em variações que poderiam ter como tónica dominante a frase estampada a modo de subtítulo provocativo: “Se um homem não dominar suas circunstâncias, ele é dominado por elas”.
O Conde Rostov tem 23 anos em 1922, quando o expurgo da nobreza iniciado pelos bolcheviques da revolução de Outubro de 1918, continua implacável. Há quem pense que deve ser eliminado no paredão de fuzilamento. Mas….. “alguns altos escalões do Partido o têm entre os heróis pré-revolucionários da causa. Por conseguinte, é opinião deste conselho que você deve retornar ao hotel de que tanto gosta. Mas não se engane: se voltar a pôr os pés fora do Metropol, será baleado”. Essa é a largada para este romance singular, e o contexto das circunstancias que o Conde terá de dominar ao longo das próximas três décadas……
A narrativa mescla-se com momentos anteriores de vida do Conde, sua educação esmerada que lhe rende uma cultura superior, o relacionamento com a sua família já desaparecida, os momentos únicos com sua irmã também falecida na juventude: “Enquanto Helena bordava, o Conde inclinava a cadeira para trás, e lia em voz alta as obras de Puchkin prediletas da irmã. E quando ele a acusou de desfazer os pontos à noite como Penélope, apenas para que ele fosse obrigado a ler outro volume de poesia, ela abria um sorriso inescrutável”.
O cenário quase único do romance, praticamente um palco teatral, poderia ameaçar com que o tédio tomaria conta, antes ou depois, do romance. Nada mais longe da realidade, porque os detalhes, descrições e, no comando, a criatividade do Conde, confere ao livro uma originalidade peculiar, além de conduzir o leitor pelos caminhos da estética e do bom gosto. O barbeiro que frequenta semanalmente, e as visitas à florista são um exemplo encantador: “Na loja de flores do hotel Metropol a florista Fátima Federova era fluente nos códigos florais que haviam governado a sociedade refinada desde a Idade da Cavalaria. Ela não só conhecia a flor que deveria ser enviada como pedido de desculpas mas também a que se mandava por causa de um atraso; de uma fala fora de hora; e de quando, ao avistar uma jovem à porta, negligentemente se ignorava seu próprio par. Em suma, Fátima conhecia a fragrância, a cor e o propósito de cada flor melhor do que uma abelha”.
O restaurante é, sem dúvida, uma das variações mais apuradas. Está presente nos momentos em que o Conde o frequenta como hóspede: “Ocupou seu assento com um jornal na mão, o símbolo internacional de um jantar a sós; ou quando fechou seu cardápio e pousou-o ao lado de seu prato, o símbolo internacional de prontidão para fazer o pedido”. E também aparece quando passa a fazer parte das suas funções: “Para testar verdadeiramente a engenhosidade de um chef, deve-se olhar para um período de escassez (…) Essa era a vida no Boiarski (o restaurante do Metropol): uma batalha que devia ser travada com precisão, ao mesmo tempo que dava a impressão de não haver esforço, todas as noites do ano. O Conde tinha servido todos os funcionários do Kremlin. Em ocasiões formais, mas também nas mesas íntimas e menos reservadas, quando jantavam com esposas ou amantes, amigos ou inimigos, patronos ou protegidos. Ele conhecia o grosseiro e o áspero, o amargo e o prepotente. Tinha visto todos eles sóbrios e a maioria bêbados”.
E sempre a elegância e a classe de Rostov presidindo todas e cada uma das suas ações: “Ao levantar o copo de coquetel, não teria ele demonstrado uma fé essencial de que, por meio do menor dos atos, é possível restabelecer algum sentido de ordem no mundo?”. Faz-se necessária a evocação de Napoleão, “quem na última hora antes do amanhecer, quando andava entre suas fileiras, examinando tudo, desde as provisões de munições até o traje da infantaria, tendo aprendido por experiência que a vitória no campo de batalha começa com o brilho em uma bota”.
A leitura desperta o gosto requintado e necessário pelo detalhe. Pois é no detalhe onde mora o perigo, e o próprio demônio. Impossível não pensar que à base de descuidar detalhes o nosso mundo se embrutece, nos transforma em paquidermes na alma. Anota o autor : “Todos nós devemos adotar uma estrutura essencial, algum sistema com razoável coerência de causas e efeitos que nos ajudarão a encontrar sentido não apenas nos acontecimentos importantes, mas em toda as pequenas ações e interações que constituem nossa vida diária”.
Entre detalhes, cortesia e elegância, o Conde nos ilustra com recados sobre o ser humano. Naturalmente, o contexto exige comentários irónicos sobre a situação no poder: “Até onde o Conde podia determinar, os bolcheviques se reuniam a qualquer momento, de qualquer forma e por qualquer motivo. Em uma única semana, pode haver comités, assembleias, colóquios, congressos e convenções ocorrendo para diversamente estabelecer códigos, definir linhas de ação, levantar queixas e reclamar sobre os problemas mais antigos do mundo por meio de sua novíssima nomenclatura (…) Os sinos da Igreja da Ascensão foram reivindicados pelos bolcheviques para a fabricação de artilharia, voltando assim ao reino de onde vieram. Apesar de tudo o que o Conde sabia, os canhões que foram salvos da retirada de Napoleão para fazer os sinos da Ascensão haviam sido forjados pelos franceses com os sinos de La Rochelle, que, por sua vez, tinham sido forjados a partir de bacamartes britânicos apreendidos na Guerra dos Trinta Anos. De sinos a canhões e vice-versa, de agora até o fim dos tempos. Esse é o destino do minério de ferro”
Mas as considerações antropológicas vão muito além da Rússia revolucionária, atingem todas as versões do poder, e o apego que contemplamos diariamente, nas variações de caciquismo que sucumbem, sempre, à vaidade: “A pompa é uma força tenaz. E astuta também. Ela inclina a cabeça humildemente enquanto o imperador é arrastado pelos degraus e atirado na rua. Mas então, depois de ter tranquilamente esperado pela hora certa enquanto ajuda o recém nomeado líder a vestir seu casaco, elogia sua aparência e sugere o uso de uma ou duas medalhas. Ou pergunta em voz alta se uma cadeira mais alta não seria mais apropriada para alguém com responsabilidades como as dele…..Os soldados do homem comum podem lançar as bandeira do antigo regime sobre a pira da vitória, mas logo as trombetas retumbarão, e a pompa vai tomar o posto ao lado do trono, tendo novamente garantido o seu domínio sobre a história e os reis”.
O que fazer diante de tudo isto? Sem dúvida, trabalhar na construção de si mesmo. Lembrei de Mandela, trabalhando na cela da prisão, ao compasso daqueles versos: “Eu sou o mestre do meu destino, Eu sou o capitão da minha alma”, magnificamente retratado no filme Invictus. O destino “não teria a reputação que tem se simplesmente fizesse o que é previsível”. Por isso, Rostov sabe que “Se a atenção é medida em minutos e a disciplina em horas, a resistência deve ser medida em anos (…) O Conde tinha optado pela vida dos propositalmente sem pressa. Não só não gostava de correr por conta de uma hora marcada, desprezando até mesmo o uso de um relógio, como tinha grande satisfação de garantir a um amigo que um assunto mundano poderia esperar em prol de um almoço tranquilo ou de um passeio pelas margens do rio. Afinal, o vinho não melhorava com o tempo? Não era a passagem dos anos que dava a um móvel a sua maravilhosa pátina?”
A mensagem é clara: parar de reclamar -escape fácil que nos espreita a todos os humanos- para centrar-nos no que realmente importa, no denominado círculo de influência. “Admito -disse o Conde para o guardião dele – que não passo muito tempo imaginando como as coisas poderiam ter sido. Mas gosto de pensar que há uma diferença entre se adaptar a uma situação e se resignar com ela.” É o comentário feito pelo Conde para o funcionário Glebnikov, que solicita a colaboração do seu prisioneiro para entender a cultura americana em alta…..Tudo isso enquanto assistem Casablanca, que marca uma tónica no comportamento elegante de Rostov, como um alter ego de Bogart, de smoking branco, em outro bar, no Marrocos.
Esta atitude confere serenidade e prudência na hora de julgar os outros: “O que uma primeira impressão pode nos dizer sobre alguma pessoa? Ora, nada mais do que um acorde pode nos dizer sobre Beethoven ou uma pincelada sobre Botticelli. Os seres humanos são tão caprichosos, tão complexos, tão deliciosamente contraditórios que merecem não só a nossa consideração, mas a nossa reconsideração, além da nossa firme determinação em refrear nossa opinião até que tenhamos nos envolvido com eles em todos os cenários possíveis, em cada hora possível”.
Entender e educar, o que exige desprendimento de si mesmo: “Para que os nossos filhos possam lembrar devemos nós abandonar nossas reivindicações sobre o que vemos. Para que eles possam se lembrar, devemos esquecer. Mas devemos nos ofender com isso? Devemos nos sentir enganados pela ideia de que suas experiências, por enquanto, podem ser mais ricas do que as nossas?”. Educação que traz resultados que, por sua vez, revertem em benefício do educador, como se manifesta na figura encantadora de Sofia: “Sua mãe (Nina) era propensa a expressar impaciência com a menor das imperfeições do mundo, enquanto Sofia parecia acreditar que, apesar da Terra girar um pouco torta de vez e quando, era, em geral um planeta bem intencionado”.
As experiências do Conde decantam em reflexões que são cargas de profundidade. Não é um homem que somente se adapta, mas cresce interiormente diante de cada vivência: “Lembre-se Aleksandr que a diferença dos adultos, as crianças querem ser felizes. Por isso ainda tem a capacidade de tirar grande prazer das coisas mais simples (…) O que importa na vida não é se recebemos aplausos; o que importa é se temos coragem de nos aventurar apesar da incerteza da aclamação”.
A trajetória do Conde ao longo de mais de 30 anos rende o fruto maduro de uma personalidade fascinante: “Aos 64 anos era sábio o suficiente para ter consciência de que a vida não avança a grandes saltos. Ela se desenrola”. E por dominar suas circunstâncias, consegue tirar o melhor de cada um. “Um brinde para o Conde: um homem inclinado a ver o melhor em todos nós!”. A exclamação dos amigos, convida o leitor a unir-se à celebração, enquanto se pergunta se uma personagem como a do Conde Rostov, de tamanha amabilidade, não ganharia o direito de existir, de sair da ficção para a vida real. Talvez ele exista dentro de cada um de nós, e as andanças do cavaleiro em Moscou seja um convite para despertá-lo no nosso interior.
Comments 6
Procurei esse CONHECIMENTO PLENO e encontrei nos vossos ensinamentos …obrigadíssimo!!!
Em Santa Maria di Castellabate temos um dito…..
Quando sento i pedagogisti parlare di didattica quando non hanno mai insegnato un solo giorno, o i preti parlare di famiglia e coppia che sono loro vietate o i sommelier che parlano di vini senza aver mai messo piede in un vigneto o peggio ancora quelli che non hanno fatto o finito neppure un liceo parlare di medicina manco fossero Ippocrate redivivo penso che, chi non ha fatto mai o non sa fare, si mette a dispensare consigli …
Esta síntese tão bem construída trouxe a personagem para bem próximo, a tal ponto de concordar que talvez ela exista dentro de cada um de nós. Basta prestar atenção.
Adorei.
Amei!
Bela descrição da personagem. Já avancei as primeiras páginas, mas agora, após a leitura do seu texto, Pablo, já não sou um navegante sem rumo, para quem qualquer vento lhe é favorável.
Grande abraço
Espetacular.
A crônica mais do que a crítica e entusiasmada e retrata muito bem a incrível e sabia figura do conde Rostov e do autor.
Livro delicioso e imperdível