Stefan Zweig. “ Maria Stuart”.
Ed. Delta Rio de Janeiro 1956. 364 págs.
Leituras na Pandemia – 7
A tertúlia literária mensal leva-nos desta vez até a Escócia do século XVI. Uma viagem da mão da escrita cativante de Stefan Zweig, que torna a história palatável e disseca acontecimentos e personagens, penetrando nos meandros da alma humana.
Uma biografia de Maria Stuart onde aos fatos juntam-se a interpretação e os pensamentos, audácia que o autor faz questão de esclarecer: “ Talvez não haja outra mulher que tenha sido apresentada sob formas tão diferentes, ora como assassina, ora como mártir, já como desatinada intrigante, já como santa…Quase em nenhum outro caso se pode verificar mais claramente do que no de Maria Stuart com que enorme diferença um fato pode, no mesmo momento, ser narrado por diversos observadores (…)Não se veja uma contradição , no fato de neste livro o longo período dos seus primeiros 23 anos e os da sua prisão, que dura quase 20 anos, juntos, não ocuparem mais espaço do que os dois anos da sua tragédia passional. Na esfera dum acontecimento da vida, só na aparência o tempo subjetiva e objetivamente é o mesmo. Na história de uma existência só importam os momentos de vida intensa, decisivos”.
Maria Stuart, ajustiçada dois séculos antes de Maria Antonieta inaugura a presença real no patíbulo. Mas as circunstancias são completamente diferentes, pois não há mudança de regime nem revolução popular. É uma luta de poder por vários flancos, algo não incomum no povo Escocês. “Ser uma Stuart e um rainha da Escócia é uma herança duplamente sóbria, pois a nenhum Stuart até então foi concedida felicidade ou duração nesse trono. Dois reis -Jaime I e Jaime III- foram assassinados; Jaime II e Jaime IV pereceram no campo de batalha, e a dois de seus sucessores (Maria e ao seu futuro neto, Carlos I) o destino reservou crueldade ainda maior: o cadafalso (…) Os nobres escoceses , esse bando indomável e invejoso somente se torna unido quando se trata de oprimir o senhor comum, o próprio rei. Ai do rei da Escócia que ousar ser soberano e desejar disciplina e ordem no pais, opondo-se ao orgulho e à rapacidade dos lordes! Na realidade são todos bisnetos de Macbeth e de Macduff, com a consabida tragédia de Shakespeare”.
Estas eternas brigas internas são aproveitadas pelos inimigos da Escócia: “Fortalecer militarmente a Escócia é a eterna política francesa; nada mais natural do que a Inglaterra, para defender-se, açúcar por seu lado os lordes promovendo constantes rebeliões, desestabilizando o poder do soberano escocês”. Quer dizer, uma quase guerra civil crônica -com altos e baixos- espicaçada pelos inimigos que, como acontece nesses cenários, vem ‘dar uma mão’, quando na prática somente procuram os próprios interesses.
A narrativa de Zweig é precisa na descrição da personagem: “Discrição e senso estético são dotes naturais de M. Stuart. Já desde criança, seja vestindo o kilt escocês, seja em traje de gala. Sem o exagero e as pompas de Isabel I, sua eterna rival (…) Ainda criança desposa o delfim da França com 14 anos, doentio, que morrerá logo. Uma viúva adolescente. Trajetória rápida: com 6 dias rainha da Escócia com 6 anos noiva de um dos mais poderosos príncipes, rainha da França com 17 anos, e viúva com 18. Tudo lhe cai duma cornucópia nas mãos e nada disso é adquirido por meio de sua própria vontade, nada é produto de esforço, tudo é herança, mercê, presente”.
Os dois anos da tragédia passional estão magnificamente descritos, as personagens cobram vida fora do papel, parece que se situam do nosso lado, observando os acontecimentos. “Moray, o meio irmão de M. Stuart, o bastardo de Jorge V, esses filhos que não são gerados no leito real, preteridos pelos herdeiros, que são mais fracos porque não gerados pelo amor mas sim por cálculo político. Essa inferioridade pode enfraquecer o bastardo, ou fortalece-lo, pode alquebrar um caráter ou enrijece-lo admiravelmente”.
Depois os maridos passionais da Stuart: Darnley, que acabará sendo assassinado, porque trai a rainha que foi humilhada: “Não há maior humilhação para uma mulher do que ter se entregue precipitadamente a um homem que não é merecedor desse amor; uma verdadeira mulher nunca perdoará a si própria nem ao indigno essa culpa (…) É sempre fácil tornar desconfiada uma ambição ofendida que não tem coragem de queixar-se aberta e francamente; uma natureza que não se fia em si própria, rapidamente desconfiará de qualquer outra”. E Bothwell, o salvador da Rainha que conquista de modo doentio seu coração: “Como as doenças, as paixões não se podem acusar nem desculpar; só pode descreve-las com aquela admiração sempre nova, à qual se associa um ligeiro medo diante da força primitiva dos elementos que prorrompem na natureza e às vezes num ser humano (….) Com Darnley ela só queria dividir a coroa, o poder, a vida. A Bothwell, porém, não quer dar só alguma coisa, e sim tudo que possui na terra”.
E conclui Zweig: “Toda vez que duas criaturas se lançam mutuamente na perdição, cada uma atribui a culpa à outra. A ação de M. Stuart é talvez um dos mais perfeitos exemplos desta espécie de crimes que não são praticados pelo próprio indivíduo, e sim em escravidão por uma outra vontade mais forte. Não se pode perdoá-los, mas pode-se compreendê-los. Somos obrigados a pensar em Lady Macbeth que, em traje de dormir, erra horrorizada e oprimida por terríveis pensamentos. Ninguém pode negar que a tragédia de Shakespeare tenha sido influenciada pela tragédia da vida de M. Stuart”.
Aspecto a destacar em toda esta tragédia-biográfica inspiradora de Shakespeare, é o relacionamento entre Maria Stuart e Isabel I, sua prima, e a disputa pelo trono inglês. “A ambiguidade continua até a morte, essa é a atitude peculiar de Isabel. Nas decisões graves aparece a diferença de temperamento entre as duas. Maria revela-se logo decidida; Isabel, de acordo com seu feitio medroso, hesita, retarda sua decisão. Isabel, a realista, vence na história e M. Stuart, a romântica, na poesia e na lenda (…) Os príncipes do século XV e XVI, com exceção da grande antagonista de M. Stuart, Isabel, só pensavam de modo inteiramente secundário no seu povo e cuidavam exclusivamente do seu poder pessoal”
Uma luta peculiar entre duas mulheres, com armas diferentes das habituais. “Sempre na política as mulheres têm a propriedade funesta de ferir as suas rivais com alfinetadas e envenenar os adversários com perversidade pessoal. Isabel, para ofender à rainha, ofende a mulher. Em vez do gesto enérgico de ameaçar a luta, escolhe o gesto perverso e fraco da ofensa pessoal. O conflito entre as duas não tem a sinceridade franca dos homens, é uma briga de gatos, um andar à roda e espreitar com as garras escondidas, uma luta de emboscadas e absolutamente desleal”. Perante a atitude de Isabel, M. Stuart não se intimida nem se curva, porque “soube esquecer ultrajes à sua pessoa, porém nunca a menor ofensa a seu direito de rainha”.
“Não há desculpa para a perfídia de Isabel que, contra a vontade de M. Stuart não permitiu sair da Inglaterra a quem tinha vindo pedindo asilo. A retém com astúcia e com promessas pérfidas e violências clandestinas. Mas para que serviria a política se não para arquitetar pretextos e subterfúgios e fazer de alguma coisa um nada e dum nada alguma coisa? A política nada tem a ver com a moral, e se colocam do lado da mulher que há pouco pediam sua execução como assassina. A moral e a política trilham caminhos diferentes (…) Isabel não luta pela vida da sua prima, nem Jaime VI pela vida da sua mãe. Ambos lutam por um belo gesto ‘no palco do mundo’ (…) Ao ouvir a leitura do documento que contém a sentença de morte, o coração de M. Stuart treme menos do que a mão de Isabel ao assiná-lo. Sabe que o mundo e a história analisarão sua atitude como primeira rainha condenada à morte”.
“O nome de M. Stuart ficaria esquecido na história , ou seria mencionado com pouco respeito, como de uma rainha que casou com o assassino de seu esposo. Foi unicamente a injustiça cometida por Isabel quem livrou M. Stuart de ter sorte obscura e mesquinha na história. Isabel deu grande vulto ao destino da sua inimiga e procurando rebaixá-la acabou elevando-a e circuncidou a fronte da rainha destronada com a auréola do martírio. Prefere ser uma prisioneira coroada a ser rainha sem coroa”. A frase que encontramos bordada num brocado da prisioneira real, é um belo fecho de ouro para esta aventura biográfica, da qual tanto é possível aprender sobre as sinuosidades do coração humano: “Em meu fim está meu começo”
Comments 2
Parabéns, Dr. Pablo , pela minuciosa resenha importante obra .
A vida sofrida ,pela perseguição cruel de sua meia irmã Elizabeth , é descrita com riqueza de detalhes por Stefan Zweig .
Sua análise é importante, tanto pelo aspecto histórico quanto pela abordagem da luta e o fascínio que o poder desencadeia no ser humano .
Dr. Pablo,
Temos três grandes momentos de expectativas e gratidão na Tertúlia.
O primeiro, é quando o doutor indica o livro do mês; o segundo, é
a participação na live; e, o terceiro, é a sua especial reflexão cheia de conteúdo de uma grande história literária.
Contamos também com a participação na live da Dra. Dora, que enriqueceu a conversa com seus comentários.
Grata por tudo!