O Dilema das Redes e O Rei Lear: Uma reflexão desde a maturidade.
The Social Dilemma (USA, 2020) Diretor: Jeff Orlowski. Roteiro:Davis Coombe, Vickie Curtis, Jeff Orlowski, Com: Kara Hayward, Catalina Garayoa, Barbara Gehring, Skyler Gisondo, Chris Grundy, Sophia Hammons, Vincent Kartheiser, Marty Lindsey, Tristan Harris, Tim Kendall, Aza Raskin, Justin Rosenstein, Shoshana Zuboff, Fotografía: John Behrens, Jonathan Pope Montaje: Davis Coombe. 93 min
Nada grandioso entra na vida dos mortais sem carregar junto uma maldição – Essa é a frase de Sófocles que inaugura o magnífico documentário sobre as Redes Sociais recentemente lançado por Netflix. Qualquer tentativa de resumir o recado -que são muitos, sendo no fundo um só- seria uma pretensão arrogante. Até porque cada um saberá extrair suas próprias consequências….E com elas, advertências, avisos, receios, e dúvidas. Muitas dúvidas, porque afinal a questão é: o que fazer com essa bomba que nos é servida?
Depoimentos pontuais de executivos que militaram em Google, Facebook, Instagram, Youtube, num “mano a mano” entre eles, trazem dados contundentes e verosímeis. Ninguém tem uma atitude xiita, retrógrada, de condenar o progresso, pois afinal é a criatura deles. Reconhecem as maravilhosas conquistas -desde reunir famílias dispersas, até facilitar o transplante de órgãos; mas todos apontam para o alto imposto que estamos pagando com essas incríveis novidades tecnológicas. O mais sério e preocupante é a adição, e os próprios executivos se confessam viciados: “Trabalho todo o dia em algo do qual não consigo desligar”. Algo sutil, uma escravidão imperceptível, que lembra aqueles filmes de gangster que eliminavam suas vítimas com escapamentos em garagens fechados: a morte doce do monóxido de carbono, que não se percebe até que dá conta do sujeito.
Lembra-se com propriedade que não existe um vilão na história, não há bandidos e mocinhos. Existe gente fazendo negócios -algo absolutamente honesto- e muitas pessoas, milhões de usuários, que não tem a menor ideia desse modelo de negócio e de sua monetização. ” Se você não está pagando pelo produto….você é o produto. Nossa mudança lenta e insensível para como vemos o mundo, a captação da nossa atenção : esse é o produto”. Uma frase que daria que pensar aos milhões de usuários….se não estivessem ocupadíssimos consultando suas redes socias, e gerando dividendos para os que as manejam.
As memórias acodem à mente enquanto assisto o documentário. Lembrei do modelo ético do sapo na panela: se colocamos ele em água fervendo, pula fora rapidamente. No entanto, se o colocamos em água morna, e vamos esquentado aos poucos, não percebe até que é cozinhado. Reconheço que sorri quando vi uma cena de O Show de Truman, onde o produto não é o Truman -no ar 24 horas desde o momento em que nasce- mas sim o público que não consegue desligar a TV. E por isso, todos torcem por Truman quando decide sair de cena, enfrentar-se com o criador. Uma torcida que carrega a saudável inveja -emulação se diz em linguagem clássica- de quem vai realizar o que eles, espectadores, não são capazes de fazer: a liberdade!
Fazer negócios com algo intrinsicamente perverso -pornografia, drogas- é água escaldante. Mas quando é bálsamo suave, que ajuda a curar -e, por exemplo, a escrever estas linhas, enquanto consulto a internet e ouço as trilhas sonoras de Ennio Morricone- e o entorno toma conta de você, a coisa é muito mais complicada. O risco que a tecnologia carrega junto, deve ser manejado individualmente pelo usuário: a virtude da prudência – o famoso in médio virtus– da ponderação equânime, para que aquilo que sendo um meio não venha se converter em fim, ou pior, em tirano que escraviza o usuário.
As consequências do que fazer no próprio médio, na família, saltam à vista enquanto se assiste a produção. Não apenas por desenvolver uma dependência igual à que acontece com uma droga, mas sobre tudo pela tentação de construir-se um mundo ao seu gosto, à sua imagem e semelhança. E quando se comprova que lá fora não é assim, surge a frustração, a irritação, a depressão….e até o suicídio. “Sou um incompreendido”…..
Talvez por isso (porque a prudência não chega com a tecnologia junto com o manual do usuário) estes executivos colocam distâncias e filtros para os próprios filhos. Algo a ser pensado pelos pais que vejam o documentário. De fato consta-me também de famílias amigas que procederam da mesma maneira depois dos sustos que vão pingado nos 90 minutos de produção. Não é o caso de estender-se aqui, a já foi tratado neste espaço, os tremendos riscos que o mundo virtual oferece a crianças e adolescentes, verdadeira esquizofrenia em relação à vida como ela é.
Mas para os adultos, como fica? Aqui entra nossa reflexão desde a maturidade, para aqueles que somos já sapos paquidérmicos -chapa grossa, fabricação antiga que não amassa, dizia um velho amigo- que temos navegado muitas águas, e pensamos, equivocadamente, que o muito conhecimento supõe a virtude. Aí é que surge o perigo. A dependência é a mesma, ou pior, embora se encontra mascarada.
Há tempo li um livro onde se comentava uma experiência curiosa: vários executivos que reclamavam não ter sossego para trabalhar por conta das contínuas interrupções vindas de e-mails e mensagens, foram levados para um cenário “sem conexão”, confortável, para poderem realizar aqueles trabalhos que almejavam. Após 12 minutos “desligados”, notou-se uma inquietude global, desconcentração, movimento: estavam sentindo falta de serem interrompidos! Tinham verdadeira dependência daquilo que reclamavam ser um obstáculo…..
A gestão das prioridades é algo que também fica prejudicada. Por que tem de ser importante aquilo que nos chega rapidamente, em caráter de urgência, habitualmente por vários canais simultâneos fruto da impaciência do nosso interlocutor? Classicamente, aprende-se a importância de distinguir o urgente do importante, mas essa distinção vai ficando diluída na avalanche de mensagens, e nas multitarefas às quais -justo é reconhecer!- voluntariamente queremos nos submeter. O ritmo e o tempo dos acontecimentos, a impaciência que se reveste de imprudência histórica, querendo resolver a toque de caixa o que somente o tempo ajuda a sedimentar.
Qual seria o legado do sujeito que correu 42 km para avisar da vitória na batalha de Maratona, se alguém tivesse uma conexão 5G? Teria existido o retrocesso ordenado pelo Marechal Kutuzov, após a batalha de Borodino contra Napoleão, sabendo que “o animal está ferido de morte, é uma questão de tempo” se os russos conseguissem calcular o impacto via satélite? Para ganhar perspectiva real, é preciso conhecer história e ler Guerra e Paz de Tolstói. Essa é também a melhor proteção contra as Fake News que brincam com a ansiedade do usuário. Lembro daquela frase que, segundo comenta um livro que li há muitos anos, figura em baixo de um relógio em Roma: Non numero horas, nisi serenas. Somente contabilizo as horas serenas!
De modo sutil, também vamos edificando um mundo ao nosso gosto, à nossa imagem e semelhança, composto de “seguidores que nos curtem”, e construímos uma comunidade virtual…. absolutamente desinteressada e sem compromisso. E quando esse edifício desaba, quando somos tirados de um grupo, ou alguém não gosta dos nossos posts, surgem reações irracionais, violentas, capazes de arrancar o pior das nossas entranhas, reações que deixariam com inveja o terrorismo fundamentalista. Isso sim, invocando a liberdade de expressão; a nossa, naturalmente. Tornamo-nos, sem perceber, senhores de um mundo fictício, onde obedientes marionetes acenam com emojis, curvando-se às nossas propostas que consideramos notáveis sem perceber que são tremendamente superficiais. Tudo vai bem até que um dia, a marionete decide colocar as manguinhas de fora….
A vaidade: eis o fator de risco que deve ser ponderado no adulto, muito mais pernicioso do que adição do adolescente. Aqui é onde entra o Rei Lear, que recompensa Goneril e Regane, as duas filhas que “curtem e louvam” ele (que são as que depois acabarão com o pai, e a fonte da sua desgraça) e despreza a filha que não curte, que não o elogia. A doce Cordélia , a caçula, que é quem no final toma conta do pai, já tarde, pois é arrastada ao mesmo final trágico. O que perde a Lear é a vaidade do velho, do maduro. O encanto dos elogios, e das curtidas.
As lições de Shakespeare são universais. Vale a pena pensar em tudo isso. E não supor que somos imunes. Essa é a perdição latente nas tragédias do dramaturgo inglês: supor que isso não vai comigo, que a mim não me afeta, que estou vacinado. La está Macbeth e o desejo do poder, e Lady Macbeth que vai curtindo seu atuar e o impele ao crime. E Otelo com seus ciúmes doentios, também alimentados por Iago, outra rede aduladora. Bom seria ter presente que diante de tanta novidade -boa, de possibilidades incríveis- é prudente assumir uma saudável desconfiança, de que “pode haver algo podre no reino da Dinamarca”, ao modo de Hamlet. Isso nos ajudará na prudência….e no conhecimento próprio. Um conhecimento que se alcança nas horas serenas, enfrentando os questionamentos vitais. Algo cuja resposta não está nas redes, mas na reflexão.