Gregorio Marañón: “Ensayo Biológico sobre Enrique IV de Castilla y su tiempo”.
Colección Austral. Ed . Espasa Calpe. Buenos Aires, 1941. 138 págs.
Um amigo, médico humanista, surpreendeu-me no final de uma reunião clínica com este libro. Certamente conhecia minha admiração por Gregorio Marañón, e deve ter desentocado este volume de um sebo, como é fácil perceber pelo desgaste do uso.
Marañon o denomina “retrato morfológico daquele rei Trastámara, que a história apresenta como um degenerado, esquizoide, com impotência relativa”. E ainda aponta que “poderia tratar-se de um ser com traços de eunuco e acromegálico, com insuficiência de secreção interna sexual; isso explicaria sua tendência ao isolamento e à solidão, a fraqueza de vontade com a qual se entregou ao comando alheio, ligado ao instinto sexual vacilante”. O retrato morfológico de Enrique IV, que parece tinha boa envergadura, continua: “Aos homens de grande talha sempre se lhes exige mais do que são capazes de dar; assim se origina o complexo de inferioridade. Isso faz com que os gigantes sejam muitas vezes tímidos sociais, fracos para a luta e para o amor. A timidez sexual também coincide com as estaturas elevadas”.
Já tinha conhecimento de este ensaio de Marañón, mas nunca me aventurei na sua leitura. Sei -também por conversas com outro amigo- que o médico espanhol buscava com alguma frequência nas figuras da história, o recurso para falar dos seus próprios pacientes (algo que por sigilo é lhe vedado ao médico). Daí o nome de ensaio biológico: uma aproximação com olhos clínicos da personagem histórica, fazendo convergir nela o conhecimento científico disponível.
Existe ainda um terceiro motivo -mais um gatilho por conta de outro amigo, sempre os amigos que nos ajudam e advertem!: atrevi-me a ver alguns capítulos da série para TV Isabel , onde a primeira temporada está dedicada ao conturbado período sucessório na coroa de Castela, nas décadas finais do século XV. O retrato que lá se faz de Enrique IV -por sinal, magnificamente interpretado- coincide com o estudo de Marañón, que se torna transparente e esclarecedor. Anota o médico espanhol em relação as personagens: “Nem D. Enrique foi tão impotente que mereça esse apelido para a posteridade, nem a sua esposa, Joana de Avis, foi tão leviana como se apresenta. A sua filha, também Joana, não foi filha de Beltran de la Cueva, mas do Rei que, como todos os mancos, nem por isso deixam de caminhar, mesmo tropeçando”. Uma visão mais indulgente que a oferecida pela série televisa.
Enrique IV conhecido com o impotente é de fato um prato cheio para um estudo de personalidade. Acrescenta Marañón: “Respeito à vida conjugal do casal, as notícias são bastante confusas, pioradas pela paixão política, já que dependendo do lugar onde se inclinasse a balança, o que estava em jogo era a legitimidade da princesa Joana , conhecida como “La Beltraneja” , como herdeira da Coroa de Castela. Assunto que dividiu os espanhóis, sempre propensos aos partidarismos frenéticos”. Algo que nada tem a ver com a verdade, mas com os próprios interesses.
O tema da impotência do Rei – o apelido que carrega- não é assunto de fácil solução, nem livre de suspeitas. “Talvez o argumento de maior peso em pro da debilidade sexual do Rei é a mansidão e indiferença com que recebeu a carta enviada pelos Grandes de Castela, aludindo que tinha feito passar por princesa herdeira a dona Joana, sabendo que não era sua filha. Os do seu partido ficaram tristes comprovando a frouxidão do rei ao ler pacificamente esta missiva injuriosa”.
Dessa fraqueza de caráter a série televisiva dá fé em vários episódios, assim como “da afeção do rei pelos mouros e seus costumes” . Mesmo das suas aventuras amorosas, pois como adverte o estudo “homens de incapacidade notória com mulher de beleza reconhecida -como era a própria esposa, Joana de Avis- se mostram aptos para outras aventuras com mulheres de baixa condição”. Também da morte por envenenamento, algo que o próprio Marañón considera possível.
O ensaio biológico vai além da personagem real, pois Marañón não perde a oportunidade de dar seus recados. O tema da sexualidade incerta, em idades precoces: “tenho estudado a idade crítica da puberdade masculina, e comprovado como com facilidade se pode inverter o instinto sexual, mesmo em rapazes de aparência e tendências normais”. O tema daria pano para manga, mormente agora com o protagonismo do gênero. Penso que Marañón teria muita coisa sensata a dizer.
Recados sobre as virtudes do caráter, algo que sempre tem presente nos seus estudos psicológicos de personalidade. “O espírito humano tende a fazer crer aos outros justamente aquelas virtudes das quais carece…..Quase sempre podemos reconhecer a verdadeira psicologia dos homens, com apenas colocar um sinal negativo na frente de tudo aquilo que ostentam. Isto se faz notório na vida dos sexos, principalmente no varão em quem a vaidade é um dos seus eixos mestres. Os médicos sabemos bem quantas aventuras escandalosas dos homens não são mais do que tentativas de certificar publicamente sua masculinidade, para satisfazer o que os outros podem dizer e, especialmente, o seu próprio instinto vacilante”.
O que sobra da leitura deste ensaio em sanduiche com a série de TV? Saber que os reis acabam sempre medidos na história pelos seus conselheiros (como há inúmeros exemplos). Não foi diferente com Enrique IV que delegou em Beltrán de la Cueva poderes e favores, e acabou sobrando para ele a possível paternidade de uma princesa herdeira.
Assistindo os capítulos da série, contemplando intrigas, corrupções, imoralidades por todo lado, ausência de exemplo e liderança, faz sentido perguntar-se com Marañón, o que viria a ser da Espanha -Castela era Espanha nessa época- qual o futuro sombrio que lhe aguardava. A resposta que se recolhe nos parágrafos finais é arrepiante e surpreendente: “Tudo anunciava a dissolução do Estado decadente, sem consciência política. Porém as profecias se equivocaram , porque o sol que nasceria no meio de tanta sombra, iluminaria a grandeza mais dilatada que jamais alcançou nenhum povo (…) Deus quis que na vida dos povos, como na vida dos homens, entremos sempre no amplo templo da gloria humilhando a fronte na mesquinha porta da dor”. O sol que se anunciava era o do Império Espanhol, aquele que chegou a estender-se numa latitude tal, de Oriente a Occidente, onde justamente o sol nunca se ocultava: quando anoitecia nas Filipinas, já amanhecia nas costas americanas do pacífico.
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Como sempre, sua primorosa explanação faz-me sentir, e perceber a as realidades do assunto, como se tivesse lido ou assistido os fatos que relata. Realmente atuais.