Sándor Márai; “ O Legado de Eszter”.
Sándor Márai; “ O Legado de Eszter”.Companhia das Letras. São Paulo. 2001. 113 págs.
Por recomendação de um amigo, grande leitor, que sabe da nossa Tertúlia Literária, escalamos Sándor Márai na lista dos “autores necessários”. O livro escolhido foi outro, mas como eu tinha este na nossa biblioteca, decidi ler primeiro a modo de “aquecimento”. Afinal, é um livro curto, apuro em uma semana, e parto para outro- assim pensei….. e me enganei! Como era mesmo aquele ditado de que os melhores perfumes vem sempre em pequenos vidros?
Uma pancada contundente. Li o livro -devagar, apreciando a prosa do escritor húngaro; elegante, precisa, desgarradora como instrumental cirúrgico que penetra nos tecidos da alma humana. Tomei algumas notas, poucas. Deixei o livro repousar. E voltei a ler após enfrentar a outra obra de Márai, que foi a designada para a Tertúlia Literária. Mais notas, agora com respeito e agradecimento a quem me apresentou este escritor notável. O que temos diante, não é propriamente um romance, mas um ensaio antropológico que causa vertigem, e descortina as possibilidades -sublimes e rasteiras- do ser humano. De modo que sem me atrever a fazer comentários, vou alinhavando com cuidado as notas que emprestei dos pensamentos de Eszter.
Ouçamos ela: “Antes de morrer quero contar a história do dia em que Lajos esteve comigo pela última vez e me roubou. Ao me presentear, a vida foi maravilhosa, e ao me roubar, perfeita….que mais posso esperar?”.
Lajos, o homem que Eszter amava e a quem abandona trocando-a pela irmã, volta agora, viúvo e com os filhos, os sobrinhos da protagonista. “Fazia vinte anos eu não via Lajos, e pensava estar a salvo das memórias. Mas um dia recebi seu telegrama, que era como um libreto de ópera, exatamente tão artificial, loucamente infantil e mentiroso quanto tudo o que Lajos, vinte anos antes ou mais, escrevia e dizia a mim e a outros (….) Mentia, é verdade; mentia como uiva o vento, com certo vigor e alegria naturais Era capaz de mentir em matizes inacreditáveis”. Ai temos desenhado em quatro linhas mestras, o perfil de Lajos.
Que sente Eszter? Outra pincelada de mestre: “Nunca fui feia, mas também não tive a beleza que atrai os homens; induzia-os mais ao simples respeito e a uma devoção covarde (…) Vinte e dois anos atrás fui infeliz. Mas depois o sentimento coagulou, como sangue na ferida. Desconhecia a força que tamponou em mim o frêmito da dor. Entretanto há feridas que o tempo não cura”.
Aparece a personagem da criada, que é também família. Figura que parece recorrente em Márai, porque encontramos uma personagem análoga na outra obra. Aqui chama-se Nunu: “Nunu era a parente que assumiu na casa o papel de todos os demais. Chegou há trinta anos na migração familiar que acompanha o ciclo de lendas de toda parentela: veio de tempos pré-históricos, da urdidura confusa da genealogia de tias e primas, para uma visita, por algumas semanas. Ficou por aqui porque era necessária. Depois, acabou por ficar de vez porque nas fileiras familiares todos morreram diante dela e Nunu, a cada década, dava um passo vagaroso para a frente, como nos degraus de uma repartição: u dia ocupou o lugar de vovó, instalou-se no quarto de cima e assumiu os poderes da falecida. Depois morreu mamãe e, um dia Vilma. Em dado momento, Nunu percebeu que já não “substituía” ninguém; percebeu que ela, a forasteira, ela, o resto, era a verdadeira família (…) Naquela névoa invisível, úmida, que se derramou sobre minha vida nos últimos anos, Nunu era a lanterna, um brilho pacificador, débil, cuja luminosidade podia me orientar.”
Enquanto espera a chegada de Lajos, Eszter reflete e recorda. “Nessa situação ridícula, entre as flores do meu jardim como num romance à antiga, só, envelhecida, na manhã em que esperava a visita do homem que me enganou e roubou (…) Lajos deixou de estudar: ‘tenho que trocar a privacidade silenciosa e produtiva do quarto de estudos pelos acontecimentos perigosos e estrepitosos do campo de batalha da humanidade’- disse. Seu tom era sempre o de quem lia um livro. Lajos não abria mão de sacrifícios pela humanidade ou por ideais -porque sempre preferiu os ideais à realidades, talvez por serem mais inofensivos e fáceis de acomodar (….) Conheci Lajos como o homem que principia pela mentira e, a seguir, no ato de mentir se emociona e acaba em prantos; prossegue na mentira com lágrimas nos olhos e, por fim, para surpresa de todos, diz a verdade com a fluência com que, no início, mentia”.
As lembranças de Eszter são arroupadas por um amor latente que defendem a triste figura de Lajos até da nosso aversão. Tal é o amor desta mulher, o seu verdadeiro legado que surpreende o leitor. “ Lajos é uma eterna criança que prefere brincar com notas promissórias…..O seu passado era repleto desses feitos e promessas descompromissadas… Falava como quem tem intimidade não só com o secretário de Estado mas também com Deus, é capaz de resolver tudo, inclusive a questão da velhice e da morte…. É uma alma flexível, pensava. No entanto, durante os meses em que o esperei, compreendi que não era possível viver com ele; em seu ser e realizações faltava aquela argamassa cuja ausência impede a construção de relações humanas. Suas lágrimas eram verdadeiras mas não dissolviam nada que fosse lembrança ou dor. Lajos sempre se entregava inteiramente à alegria ou à aflição, mas na realidade não sentia nada”. Difícil descrever uma vida dissoluta com maior precisão e, ao mesmo tempo, com uma delicada compreensão.
“Será que ela ainda o ama? Amores desesperançados não morrem” -são os comentário dos amigos da família enquanto esperam a chegada de Lajos, que acontece em grande estilo. O diálogo entre Eszter e Lajos é outro ponto alto deste pequeno grande livro:
-Qual é o limite? Imagino que todo homem tenha algum limite íntimo em que há uma medida para o bem e para o mal. De certo modo , para tudo o que é possível entre os homens. Mas você não tem limites.
-É possível – disse Lajos- mas a vida não tem limites…..É possível que tenha errado ontem ou há dez anos atrás, com dinheiro, anéis ou palavras. Nunca decidi meus atos. Enfim, somos responsáveis apenas pelo que planejamos pelo que desejamos. Somos responsáveis apenas por nossas intenções….O que são os atos? Sempre uma surpresa arbitrária (…) Sempre fui um homem fraco. Gostaria de ter realizado alguma coisa na vida e creio que nem me faltava talento. Mas hoje sei que isso é pouco. Para criar é preciso mais, uma força especial, disciplina, ou ambas e creio ser isso o que no geral chamam de caráter….Isso é o que me falta. (…) Você, Eszter, teria sido o que me faltava: o caráter. O homem que não tem caráter é um pouco aleijado do ponto de vista ético (…) Em questões de ética sou surdo, quase analfabeto. Foi por isso que corri ao seu encontro.
-Mas uma mulher não pode ser ama de leite ética durante a vida inteira….A verdade é que você me traiu, no passado, em linguagem de romance. Você é um jogador estranho: em vez de cartas joga com paixões e pessoas. Alguém pode descartar uma mulher porque é passional, porque não consegue se comprometer, porque tudo e todos são apenas instrumentos…..Porém, descartar alguém por distração é mais do que crueldade. Não tem perdão porque é desumano (…) Você mente como cai a chuva; você é capaz de mentir com lágrimas, é capaz de mentir com boas ações. Às vezes creio que você é um gênio brilhante, o gênio da mentira. Você me olha ou me toca, e suas lágrimas escorrer, sinto o tremor de suas mãos, e ao mesmo tempo sei que você mente, sempre mentiu, desde o primeiro instante. Sua vida foi uma mentira. Não acredito nem em sua morte; também será mentirosa. Sim, você e um gênio”
Qualquer comentário sobre este diálogo seria supérfluo, atrevido, perigoso. Como é possível glosar de modo simplista essa dor que transpira o aleijado moral, fazendo gotejar o suor enganoso sobre essa mulher que o amor engrandeceu? Melhor do que comentar, vale ler uma vez e outra, para identificar o que nos afeta: os traços da mentira, talvez a magnanimidade, na nossa própria alma.
Dá pena pensar no final trágico de Márai, suicidando-se às vésperas da queda da cortina de ferro. Uma frase perdida na boca de Eszter, nos oferece não a justificativa, mas a compreensão desse triste desenlace: “Senti então, pela primeira vez, que a morte pode ser libertação, descobri que a morte é absolvição e paz. Somente a vida é luta e infâmia”. Olhamos com a compreensão de Eszter para o seu criador. E permanecemos em silêncio, conturbados, após fechar o livro e depositá-lo cuidadosamente na biblioteca.
Comments 2
Me desculpe a pobre interpretação. Só vi a falta de firmeza, de fé e confiança em Deus, em cada personagem. A que foi abandonada, a que suicidou-se, e o mentiroso que não teve caráter de buscar a conversão.
No final, é uma estória triste para todos eles.
Se é que a entendi.
Adorei o artigo! Voltarei a visitar mais vezes