O Último Lance: Educação Estética num mundo digital
Tuntematon mestari (The last deal). Diretor: Klaus Härö. Heikki.Nousiainen, Amos Brotherus, Stefan Sauk, Pirjo Lonka, Henrikki Haavisto. 95 minutos. 2018.
O artista anônimo. Essa é a tradução correta do título original deste pequeno grande filme. O nome em português – O último lance– segue o pragmatismo americano, as regras do IMDB, base em inglês de todas as produções (One last deal). Felizmente a recomendação chegou-me através de uma crítica espanhola onde, lá sim, estamparam o nome original; no filme, e no quadro em questão, o imã que aglutina todos os fotogramas, de autoria anônima.
Foi lá também que soube da qualidade impar do protagonista, o velho Olavi, um dos atores consagrados do teatro finlandês. Ele, sua filha Lea, o neto Otto, são o triângulo sobre o qual o diretor finlandês Klaus Härö, monta esta peça encantadora: se não uma sinfonia, sem dúvida um magnífico minueto.
Confesso que a minha curiosidade -por não dizer entusiasmo- já estava em alta e à procura da fita, quando vi o nome do diretor, e lembrei da maravilhosa produção -outra miniatura fascinante- que assisti alguns anos atrás. Aquele filme do professor de esgrima, que é um canto enorme à educação (O Esgrimista).
Educação estética em tempos digitais. Esse foi o complemento que me veio à cabeça, para colocar a modo de explicação, talvez de desdobramentos, do filme. Porque disso se trata: de motivar a nova geração para um despertar estético. Aquilo que começa como obrigação -o estágio obrigatório que o Otto deve completar no seu curriculum escolar- transforma-se em inquietude, adquire voos mais altos.
Dizer que os jovens de hoje não ligam para a estética é queixa frequente na nossa geração de veteranos. Tão frequente como estéril. Porque afinal, quem tem de superar essas barreiras que as novas tecnologias parecem colocar, é a criatividade do professor, do formador. Neste caso, do avô merchant. Não é verdade que está tudo perdido, que a batalha contra os celulares e conexões rápidas que seduzem a juventude, é uma luta inglória. Tudo depende dos recursos que colocamos em ação. Lembro de um amigo que me disse: “Os meus filhos não largam o celular. É uma briga, todos os dias, no jantar para que entrem na conversa. Mas a minha sogra veio na semana passada, começou a contar histórias da família e a criançada esqueceu o celular….e não queriam sair da mesa”.
Contar histórias que nos envolvem. Não é uma concorrência, mas algo situado em outro plano, no nível daquilo que nos apaixona. Nestes dias, acabamos de elaborar um Memorando de atividades acadêmicas do biênio passado na nossa Instituição. Chamou-me a atenção uma frase feliz que a professora encarregada da publicação fez questão de estampar na primeira página. É do W. Churchill e diz assim: “ Antes que alguém possa levar a plateia à emoção é preciso que se deixe arrebatar. Se quiser despertar indignação, seu coração tem que transbordar de ódio. Antes de provocar lágrimas, terá de derramar as suas. Para convencer alguém, ele tem que ser o primeiro a acreditar. Suas opiniões podem mudar à medida que as impressões esmoreçam, mas todo orador que crê no que diz no momento em que profere as palavra, jamais é conscientemente insincero .” Sobram comentários!!!
O conselho é antigo, e funciona. Parece que o melhor recurso para educar as emoções na infância, é que os adultos as manifestem em voz alta, e ao mesmo tempo, com sabor de intimidade. Uma lembrança pessoal vem atestar a eficácia desta atitude. Recordo que meu pai certa vez, quando passávamos por um local onde um estabelecimento comercial tinha fechado o negócio, comentou: “Doe-me ver uma porta fechada, porque sei que tem gente passando necessidade”. Naquela época, eu nunca teria me preocupado com essas consequências ….Mas nunca esqueci o fato, ajudou-me a temperar o paladar afetivo, a sintonia da cordialidade, tocou as cordas da compaixão dentro de mim.
Uma criança aprende a compadecer-se quando vê os adultos fazendo-o. Sem vergonha, de coração aberto. Quando vê que existem outras razões -as do coração- que a razão não entende. A razão infantil que vai se desenvolvendo, e aprendendo no colégio as matérias que caem na prova. Há outras coisas a aprender: basta isso, para despertar a inquietude e promover o crescimento como pessoa.
Mas não somente na criança, também no adolescente, e no jovem profissional. O quadro que seduz o velho Olavi, a intuição de que lá tem algo de valor, transportou-me a um tema que me ronda nos últimos tempos neste mundo da educação médica no qual me vejo envolvido. E, certamente não sou o único veterano a pensar assim, porque já houve quem deu até um nome -em inglês!- para essa intuição sênior: Gut Feelings! Quer dizer, um sentimento que procede das entranhas, algo que sem ser absolutamente racional, impõe-se na sua evidencia incontestável.
No caso dos médicos que levamos muitas horas de voo, é saber que aquele paciente, com exames normais, tem algo que preocupa. Não sei o que é, mas tem cachorro no mato. Ou aquele outro, de quem não consigo estabelecer exatamente um diagnóstico, mas não é nada sério, pode-se esperar. Acontece o mesmo no âmbito da família, da mãe que conhece os filhos, que saber ler as entrelinhas, os olhares, as reações. O tempo todo. Não é capaz talvez de fazer uma descrição racional, mas sabe que algo não anda bem, ou que enverada por mal caminho. Ou que, ao contrário, desponta uma luz no final do túnel.
As mães não tem que justificar isso para ninguém. É algo de uso pessoal, e utilíssimo. Mas os médicos -e os cientistas- parece que sim. E como a intuição das entranhas não é uma evidencia cientifica, temos receio de manifestar em voz alta, de “ficar mal na fita”. E o silenciamos. Já houve quem traduziu isto por intuição qualificada, talvez para dar um toque ‘científico’ que justifique o proceder. O fato é que a intuição, que poderia ser um recurso pedagógico magnífico, parece não ter vez neste mundo onde tudo tem de ser medido, provado, com números e gráficos. E os algoritmos podem trazer evidências…..mas não entusiasmam ninguém.
Tudo isso, veio à minha mente enquanto assistia o filme. Para alavancar o entusiasmo, para despertar a motivação real, é preciso abrir o coração, arriscar, mostrar o que levamos dentro. E ai sim, as pessoas colocam o seu melhor, se desdobram, vão muito mais longe. Nisso consiste a diferença entre educar e treinar. No treino -de um cavalo, por exemplo- os resultados estão previstos, mesmo os melhores. Na educação, o educando nos surpreende e chega muito mais longe. Essa é a certificação de qualidade da criatividade do professor.
Não consigo deixar de pensar numa das bolas da vez no mundo atual: no coaching. Quanto coaching moderno é simples treino, não chega a mais, porque não comunica paixão, porque é um coaching asséptico (muito profissional, não vamos nos envolver). Um coaching que fabrica resultados em série, uma espécie de franquia de “lideres”, que pouco se diferenciam de latas de refrigerantes e de fast food. Ora com açúcar, ora com baixo teor de gorduras, ora sem glúten. Até no modo de vestir , mesmo na versão casual, é tudo a mesma coisa.
Olavi aferra-se à sua intuição. Mesmo os amigos prudente não entendem a loucura intuitiva do seu proceder. Afinal, loucura é algo que assusta. Bem o disse Fernando Pessoa, falando de D. Sebastião, o rei português: “Sem a loucura, o que é o homem mais do que a besta sadia, um cadáver adiado que procria”. Coaching para encaixar-se no mundo atual em formato asséptico, politicamente correto, e continuar a procriar novos cadáveres, gente de plástico, conectados com o mundo, alheios a qualquer intimidade, que desconhecem possuir.
Relendo estas linhas, parece-me que falei demais. Não do filme, porque não tem o que falar. Precisa ser visto, em companhia, e degustado. Embora tem quem pede que falemos de arte –em short version– num mundo conectado. Na semana passada, convidaram-me a dar uma aula por internet -mais de 300 pessoas acompanhando- sobre como educar a afetividade com o cinema. Naturalmente, tive de colocar algumas cenas de filmes…..E o robô do Youtube derrubou a plataforma de transmissão em poucos minutos. Problemas de direitos autorais. Eu tinha advertido os alunos organizadores, mas……Perplexidade, aula suspensa, os organizadores estressados para retomar, e de repente alguém me diz: “Professor, não daria para explicar as cenas dos filmes sem projetá-las?”. Agora fui eu a vítima do estupor……Explicar as cenas? Respondi de bate pronto: “Você pediria para alguém ‘explicar’ o 2 Concerto para Piano de Rachmaninoff? Silêncio.
Para sair do impasse -somente me restavam alguns slides, sem possibilidade de recursos fílmicos- contei uma história que ouvi quando adolescente. Beethoven estava dando aulas de piano para alguma senhorita quando de repente levantou-se, saiu da casa, caminhou pela noite afora, e ao regressar compôs de uma tacada a Sonata ao Luar. Um impulso enorme, um Gut feelings monumental. Parece que tempo depois o compositor esteve presente num sarau e tocou a peça. No final, uma dama aproximou-se e perguntou: “Maestro, o que significa isto?”. Por toda resposta, Beethoven sentou-se ao piano, tocou a Sonata ao Luar novamente, levantou-se o foi embora. O artista anônimo situa-se na mesma tessitura. Sente, contemple, deguste, e atreva-se a compartilhar suas intuições, suas emoções. Essa é a pista de decolagem para uma educação estética num mundo digital.
Comments 2
Parabéns Pablo .
Como sempre muito profundo de reflexão incontestável.
SIMBA !
Frederico Muraro
Bravo , Professor!!