A Luz Entre Oceanos: As dívidas com a própria consciência.
The Light Between Oceans. Diretor: Derek Cianfrance. Michael Fassbender, Alicia Vikander, Rachel Weisz. 133 min. USA 2016.
Um belo filme, delicado, sensível. Chegou-me até um comentário de ser uma produção excessivamente feminina…. Na verdade, não sei o que isso venha a significar, a não ser que apenas desde uma perspectiva de mulher é possível compreender a profundidade do filme. Algo que, por motivos óbvios, sou incapaz de ponderar. Mas desde a minha perspectiva, absolutamente masculina e por isso em sintonia com a personagem de Michael Fassbender -por sinal, uma performance notável, aliás como a réplica das duas protagonistas- tem sim o que comentar, e profundidade é algo que não falta. Aliás, muito pelo contrário: um verdadeiro abismo, que surge aos poucos, acentuando-se com o tempo, depois dos créditos finais, nas reflexões de cada um.
Um homem bom, que transita na vida fazendo o bem, que não quer perturbar o próximo, com desejos de serviço, afetuoso, fino. Um gentleman. Mas algo não encaixa, produz um ruído dissonante, que destoa nesta sinfonia estética, que tem o oceano como pano de fundo. O resto somente vendo…. e vivendo. Porque o filme, mais do que uma história é uma vivência com a qual é possível entrar em sintonia. Eu, pelo menos, entrei, mesmo com efeito retardado, e por isso rabisco estas linhas como uma pendência que se arrasta há alguns meses.
As dívidas com a própria consciência remetem, em versão clássica, aos remorsos de Raskolnikov em Crime e Castigo. Mais de 500 páginas, de leitura iluminada, para decidir confessar o crime. Nessa obra clássica, Sônia, é o amor que catalisa a decisão do protagonista, para saldar as dívidas com a sua consciência e com a sociedade.
Hoje vivemos tempos diferentes. São poucos os que leem Dostoievsky, muito menos os que refletem nas próprias ações, faltam Sônias que facilitem amorosamente o reconhecimento da culpa. Sobram, isso sim, espelhos virtuais que apoiam a falta de reflexão mediante “curtidas” e emojis…… E, naturalmente, o orgulho e a vaidade, incrementada por estes recursos “para não pensar”, são terreno fértil para a receita de Nietzsche sobre como engavetar as dívidas da consciência. “Minha memória diz: fiz isto. Meu orgulho responde: não, eu não posso ter feito isso. Finalmente, é a memória a que cede”. Cede, apaga, sepulta a dívida.
Voltamos ao filme que é, insisto, agradável e delicado. Não tem assassinatos ocultos no porão, nem crimes hediondos. Tem, sim, amor, talvez excesso de amor, que pode cegar e causar outros males. E isto é o assunto que me impulsionou a escrever.
O amor é tema profundo que escapa a estas modestas considerações. Mas vale invocar os pensadores que como Ortega lembram ser o amor um grau superior de atenção. Marañón, em sintonia com o seu compatriota e amigo, sublinha a importância do fogo permanente da atenção para que o amor não se esfrie. “A distração -diz o médico espanhol- é sempre o começo da erosão do amor”. E Gustave Thibon, naquela coleção primorosa de ensaios (Um olhar cego para a luz), anota: “A impureza do amor mede-se pelo número de aliados necessários para subsistir; sua pureza pelo número de inimigos que é capaz de enfrentar sem morrer. A superação das fatalidades é o sinal da transcendência do amor”.
Trocando em miúdos e de volta para o filme, e para as dívidas com a consciência: é possível praticar ações, imbuídos de imensa boa vontade, querendo até ajudar e fazer o bem, cujos efeitos não são louváveis. Já dizia Calderón de la Barca, um clássico do teatro espanhol, (em tradução livre e nada acurada pois escreve em poesia): “Mal assunto o homem, que por força quer ganhar uma alma/ porque querer sem alma, uma formosura ofendida, é querer uma beleza, formosa sim, mas não viva”. Não basta com que aquilo seja bonito, tem de estar vivo, ser verdadeiro.
A boa vontade e os sentimentos humanitários não são o escrutínio último da verdade. Servem como motor de arranque, ponto de partida. Mas depois é preciso ajustar a bússola, corrigir o rumo, aprumar-se com a realidade que está além das percepções subjetivas. Estar abertos a contemplar a verdade -que nem sempre se alinhará com os bons desejos iniciais- é todo um desafio. “Há um problema ético na raiz das dificuldades filosóficas -diz Gilson. Os homens são muito propensos a procurar a verdade, mas pouco inclinados a aceitá-la. (…)Achar a verdade não é difícil; o difícil é não fugir dela uma vez que se encontrou”. E outro filósofo francês, Maritain, complementa: “Tem-se a impressão de que nos tempos de hoje a verdade seja forte demais para as almas e de que estas não possam mais alimentar-se senão de verdades diminuídas”.
Verdades diminuídas, ou verdades à “minha medida, que encaixam com os meus bons desejos, porque afinal eu não faço mal a ninguém, fiz tudo com a melhor boa vontade, não pensei que isso poderia prejudicar alguém”. Discurso que surpreendemos em boca de ótimas pessoas, não criminais como o Raskolnikov. Não são maus; talvez ingênuos…. ou simplesmente não pensam, não projetam as consequências dos seus atos, ficam no motor de arranque.
Leonardo Polo, mais um filósofo espanhol, coloca o dedo na ferida: “Em relação à verdade, não há margem para erros por excesso, exagero ou ousadia. Os erros nascem do medo do transcendente ou, na forma de cortes e autolimitações; nascem da tentativa de menosprezar a verdade para ter a certeza de dominá-la, de rebaixá-la ao nosso nível, em vez de nos expormos ao deles”.
A transcendência coloca-nos no âmbito da consciência, onde a contabilidade das dívidas emerge. Impossível eludir neste ponto, o discurso de Bento XVI durante a canonização do Cardeal Newman, um paladino da consciência. Diz o Professor Ratzinger: “Em Newman, a força motriz que o impelia pelo caminho da conversão era a consciência, que significa a capacidade de verdade do homem: a capacidade de reconhecer, precisamente nos âmbitos decisivos da sua existência – religião e moral –, uma verdade, a verdade. E, com isto, a consciência, a capacidade do homem de reconhecer a verdade, impõe-lhe, ao mesmo tempo, o dever de se encaminhar para a verdade, procurá-la e submeter-se a ela onde quer que a encontre. Consciência é capacidade de verdade e obediência à verdade, que se mostra ao homem que procura de coração aberto”.
As reflexões que o filme me provocou, ampliadas pela vivência de situações quotidianas, onde o convívio com as verdades diminuídas é contínuo, fez-me reler pensadores, frequentar velhas anotações, ampliar o foco das minhas ponderações. Num momento dado, tropecei com este texto de Susanna Tamaro, em Vai aonde seu coração mandar, que me brindam um fecho de ouro para estas linhas. Diz a escritora italiana: “Não podemos fugir das mentiras, das falsidades. Ou melhor, podemos fugir durante algum tempo, mas quando você menos espera, lá vêm elas à tona de novo, já não são mais tão submissas como quando as dissemos, aparentemente inofensivas, nada disso; durante o momentâneo afastamento, transformaram-se em monstros medonhos, em horrorosos ogros. Mal chegamos a nos dar conta e, na mesma hora, já estamos sendo vencidas, devoram-nos e a tudo que está em volta com uma voracidade espantosa”.
Tamaro recolhe aqui algumas cartas da avó dirigidas à neta rebelde. Mesmo assim, não me considero capaz de intuir a “carga feminina” do filme, que comentei no início. Identifico-me sim, após esta reflexão em voz alta e digitada, com a personagem do protagonista que, com valentia e coragem, decide aceitar a verdade, saldar as dívidas com a própria consciência.
Comments 3
Muito bom, Pablo. Elucidativo e provocador.
Muito importante sairmos do modo automático pra voltarmos a pensar,e novamente ver as coisas de fora do redemoinho da vida,sob um perspectiva mais profunda.
Mais uma excelente reflexão que nos ajuda nestes dias tão conturbados .
Parabéns e obrigado .
Excelente análise. Pelas considerações que vc faz parece uma bela obra. Pensei q a Tamaro já estivesse no limbo (o Ze Lino me “contagiou” a ler o livrinho dela, mas passados 20 anos…que decepção). Nem na Itália ouvi falar dela.
Gde abc