Bravura Indômita: As Saudades (que todos temos) de um bom Faroeste.
(True Grit, 2010 )- Diretor: Ethan Coen, Joel Coen. Jeff Bridges, Matt Damon, Hallie Steinfled, Josh Brolin, Barry Pepper. 110 min.
(True Grit, 1969)- Diretor: Henry Hathaway. John Wayne, Kim Darby, Glen Campbell. 128 min.
O filme dos irmãos Coen saiu de mãos abanando na festa do Oscar. Eles reclamaram, e não pela ausência de premio, mas pelo excesso de propaganda. Na verdade, estava ficando molesto abrir os sites de consulta de filmes –IMBD por colocar o exemplo mais relevante- e deparar-se com a insistente cavalgada de Jeff Bridges, uma arma em cada mão, e as rédeas do cavalo presas nos dentes (nos dentes do Jeff, entende-se). Até parecia que não havia outros filmes à altura, concorrendo para o Oscar. Bravura Indômita monopolizava os chamados das páginas virtuais. Incomodou-me toda essa parafernália, barulho demais.
As críticas também rodearam o filme de comentários elogiosos. “Não é nenhum pecado fazer uma refilmagem. O cinema está repleto de remakes notáveis. Os irmãos Coen dizem que sim, que assistiram a versão dos anos 60 com John Wayne, mas que o filme deles é uma leitura própria da historia escrita por Charles Portis. E até sugerem que, talvez, os filhos deles se aventurem a fazer um novo remake.” Fui checar a idade do crítico de cinema: não chegava aos 50 anos.
Comentei com um amigo que trabalha com Cinema e que nesses dias veio me consultar como paciente. Também tinha assistido ao filme, mas não conhecia a versão de John Wayne. Também não chegava aos 50 anos e, além da prescrição médica, recomendei, até por motivos profissionais (dele, se entende) o filme de 1969.
Naturalmente, assisti Bravura Indômita, nos primeiros dias do lançamento. Gostei, mas faltava algo. E, juntando as minhas impressões, os comentários dos críticos, as conversas com amigos e pacientes, entendi que cada filme tem o seu momento e que o olhar, mesmo técnico e acadêmico, não consegue extrair o encanto que decorre da oportunidade precisa. De “estar lá”, no momento certo. Quem hoje não tem 50 anos, seguramente não assistiu Bravura Indômita, na primeira versão. Pode até ter visto, mas não no momento preciso, no lançamento. E, consequentemente, também não viu John Wayne interpretando o caubói como somente ele sabia fazer. Os que vivemos essa época, o vimos amadurecer sem tornar-se velho, com aquele andar cadenciado e oscilante, o inseparável lenço no pescoço. Bravura Indômita, que lhe valeu o Oscar da sua carreira, foi a coroação de um papel recorrente, ao longo de quase 40 anos.
Essa geração que, como eu, teve o privilégio de ver o John Wayne inúmeras vezes, e se deparou em 1969 com o caolho Rooster Cogburn na tela, dificilmente se contentará com outras versões. Jeff Bridges, um ator excelente, já fez de tudo: foi Tucker, o fabricante de carros; interpretou o professor de matemática em O espelho tem duas faces; incarnou o sobrevivente em Fearless, e se aventurou como velho caubói em Crazy Heart, que lhe deu um Oscar. John Wayne, muito menos versátil, dedicou a sua vida a fazer de caubói: não há como superá-lo nessa especialidade. Daí as minhas reservas com a exagerada promoção do filme dos irmãos Coen.
Entendo que o público de hoje goste da versão atual; não é um filme desprezível, tem qualidade. Mas é inevitável lidar com as próprias lembranças, essas que se imprimem de modo entranhável na nossa personalidade em formação. Eu já tinha visto essa história, muito melhor contada, há mais de 40 anos, num cinema de bairro em Madrid.
Melhor contada, por muitos motivos. O olhar carinhoso de Wayne –mesmo sendo um velho caubói rabugento, maltratado pela vida, afeito ao uísque- dá mais credibilidade à personagem, do que Jeff Bridges, cuja rudeza beira a grosseria. A culpa não é do ator, mas dos irmãos Coen que têm uma leitura muito peculiar, muito própria, das histórias, do cinema, e da própria vida. Sabem misturar com genialidade comédia e drama, produzem um humor que se tinge de negro, e a violência assume traços góticos. São originais, sabem contar histórias, mas na hora de aplicar essa perspectiva sobre um argumento conhecido o resultado pode não ser dos melhores. Para diretores com essa característica, ensaiar um remake é um risco considerável. Ao menos perante o público que conheceu e vivenciou a versão anterior, descrita com outros registros.
John Wayne sabia olhar com dureza e com simultânea ternura à garota que lhe procura para vingar a morte do pai. É raposa velha, duro na queda, mas sua postura é de compreensão. Também no papel feminino os Coen escorregam: transformam a moça caipira, que com certeza cheirava a rancho e a cavalo, numa espécie de intelectual, que parece ter cursado um PhD em economia em Princenton. Nada contra a atriz, que é ótima, mas reconheço que em algum momento me fez lembrar aqueles filmes horríveis de Tarzan onde se descobre que o homem macaco tinha ido para a Universidade e depois regressava à selva, e discursava sobre teoria política entre uma e outra viagem de cipó. Não me refiro aos de Johnny Weissmuller, que grunhia, pulava e nadava como convém à sua personagem, mas outros posteriores de ínfima qualidade.
A trilha sonora, composta por Elmer Bernstein, é também um dos pontos altos da versão de 1969. Simplesmente inesquecível. É daquelas músicas que te colocam no clima do Western, preparam o espírito para mergulhar naquilo que as imagens mostram a seguir. Um bom faroeste não se faz sem uma trilha sonora ad hoc. Faz parte da cultura, e os que vivemos essa época –quantos sábados de tarde devorando, naqueles cinemas de sessão continuada, as lendas do Oeste!- carregamos a lembrança. Tanto que, sempre que ouço a Sinfonia do Novo Mundo de Dvorak, olho em volta para ver por onde vai aparecer o caubói. Era uma música eternamente associada aos faroestes.
O melhor do filme dos irmãos Coen –vai aqui o meu agradecimento- foi a vontade que me injetou de rever o clássico de John Wayne. E assim o fiz, sem delongas. Gostei muito e passei duas horas deliciosas conversando com as minhas lembranças de adolescente, tirei o chapéu para o velho caolho que, quando recebeu o Oscar comentou: “Se soubesse que para ganhar esta estatueta tinha que colocar um tapa-olho, o teria feito 35 anos antes”. E, no meio desse clima formidável, uma surpresa: o chefe da quadrilha de bandidos é um jovem que me pareceu Robert Duvall. Chequei nos créditos: era ele mesmo. E daí, mais uma vontade que tenho de agradecer aos Coen: quis rever outro faroeste excelente, que Robert Duvall fez 35 anos depois, com Kevin Costner: Pacto de Justiça(Open Range– Dir: Kevin Costner. Robert Duvall, Kevin Costner, Anette Bening- 145 min).
Não há traços do bandido juvenil. Agora é o veterano sábio, prudente, que utiliza a força apenas quando necessário, e adota uma postura de conselheiro, um filósofo do Western. Robert Duvall aprendeu também com John Wayne. Aprendemos todos. Mesmo os irmãos Coen, a quem devo minha sincera gratidão pelos desdobramentos que o seu filme me brindou.
Afinal –pensava enquanto escrevia estas linhas- por que tanto alvoroço com o filme dos Coen? Deve ser como um clamor popular que cristalizou nesse barulho. Vai ver que é, lá no íntimo, as saudades que todos temos de ver de novo um bom faroeste.
Comments 3
Bem escrito… Cheguei as lágrimas.
Também fiz o mesmo, assistir o velho tio… e nem preocupei-me com o novo…
Obrigado
Valdir
Pingback: Hostiles: Categoria e Valores Clássicos num Faroeste Moderno | Pablo González Blasco
Fiquei muito feliz com sua avaliação sobre as duas versões de True Grit, suas observações são todas pertinentes.
E fiquei mais feliz ainda com a menção de Robert Duvall, tão pouco lembrado. Ao ótimo Open Range recomendo a minissérie para TV Lonesome Dove, para mim o melhor faroeste já produzido, não só pela participação de Duvall e de Tommy Lee Jones, mas pela exibição da violência e da pobreza daqueles dias pós guerra civil.
Em tempo, para os admiradores de Duvall recomendo o ótimo Secondhand Lions, com Michael Caine.