PASSAPORTE PARA O AMOR

Pablo González BlascoFilmes Leave a Comment

PASSAPORTE PARA O AMOR (Green Card) Diretor: Peter Weir. Gerard Depardieu, Andy McDowell. Austrália/França 1990 107 min.

Assisti “Green Card.” ontem à tarde espicaçado pela curiosidade: já tinham me recomendado o filme, mas faltou ocasião.  Retirei a fita das prateleiras de um vídeo clube: uma das oito cópias que a locadora tinha. O fato de não ter que reservar um filme, neste dias sedentos de novidades, nos faz desconfiar. Peguei-o e, discretamente, como quem acha uma rara mercadoria num depósito de “usados”, sai.

Duas ou três tomadas rápidas e o espectador é situado no miolo do filme. Um casamento por conveniência, ou melhor, uma simulação de casamento com vantagem para os dois lados: um visto de permanência para o francês; um apartamento com direito a jardim de inverno  para a bióloga. Ele, compositor, artista e dado à vadiagem. Ela uma versão fim de século XX de feminista ecológica, uma bióloga verde, no sentido político e social da palavra. O visto de permanência – Green Card.- também verde. Ironia do destino? Provavelmente, brincadeira do diretor australiano.

A trama é simples.  Um treinamento intensivo de “casal simulado” para ludibriar o departamento de imigração, que pratica uma política restritiva. Tudo com muito humor. As situações cômicas, favorecidas pela grande interpretação dos protagonistas distraíram-me por alguns instantes. Onde foi mesmo que estava a fita no videoclube? Na seção comédia? Drama talvez?  É a mania, nefasta, de classificar a própria vida, querendo quadricular a arte, catalogar os sentimentos, como indicando ao espectador se deve rir, chorar ou sentir terror diante do produto que é apresentado… Onde estava mesmo a fita? Respirei e sorri: ainda bem; estava entre os “lançamentos”. Escapou, por ora, à fria classificação… Veremos o que o destino lhe depara…

“Green Card.” é um filme com efeito retardado. O lirismo, envolvido em lances cômicos, emerge com força. Está lá, escondido, como a fita nas prateleiras da locadora. Mas vai temperando o filme, e, como o vinho bom, deixa o gosto agradável no paladar uma vez engolido. Um filme para ser degustado e vivido.

 Não pude menos de lembrar, “A bela e a fera”, e mesmo, “King-Kong”, na versão original, aquela dos anos 30. Tem poesia, e situações que tocam fundo. “Vejamos… -é George pensando em voz alta- porque é mesmo que eu gostei de você?…” Bronte -nossa bióloga verde- abaixa os olhos, fica encabulada.  E tudo é simulação, pelo menos isso é o que eles pensam. “Já sei… Eu comecei a compor de novo. Sim foi isso; daí me apaixonei por você”.  Bronte sorri, timidamente, com pudor. E o ápice na entrevista: “Ele diz que não tem sensibilidade -é Bronte prestando declaração- mas tem muita”. E suspira fundo. A funcionária do departamento de imigração deixa a caneta: “Penso que é suficiente”. Quando fala o coração, o formalismo não tem vez.

            Coincidência ou não, estava lendo  O Idiota de Dostoievski nos dias em que assisti Green Card. Depois de ver o filme, e quando o efeito retardado das cenas vinha-me insistentemente à cabeça, li a descrição que o escritor russo faz de uma das personagens do romance:

        “Ditas aquelas palavras, enrubescera logo. Em circunstâncias análogas, ela sempre quanto mais enrubescia mais zangada parecia ficar consigo mesma, e isso estava nitidamente visível em seus olhos lampejantes. Então, via de regra, transferia a raiva irritando-se com a pessoa causadora de tal situação, merecesse esta ou não censura, pondo-se logo a descompô-la. Mais como percebia quanto era arrebatada e irritadiça, tendo demasiada consciência do seu temperamento, adotava como regra ser esquiva a conversas e intimidades. (…) Sempre sentia de antemão quando começava a ficar vermelha.”

GREEN CARD, from left: Andie MacDowell, Gerard Depardieu, 1990. ©Buena Vista Pictures

Timidez e recato, que se irrita com o rubor que colorindo sua face, desnuda a alma. O pudor dos afetos que se adivinham; algo encantador, perdidamente feminino. Os sentimentos de Agláia Ivanovna quadram à perfeição na nossa bióloga. Uma senhorita da nobreza russa do século passado, numa sociedade que cultua as formas e Bronte, a bióloga feminista e liberada. Como é possível? Estarei ficando sentimental, pensei?

A natureza humana é a mesma. Isto é o que nos salva e permite que continuemos acreditando no homem. Para os céticos, “Green Card.” é, quando menos, uma lição magistral. E se, sem medo dos próprios sentimentos, deixam-se levar mergulhando  no fundo do filme, verão que o amor verdadeiro surge -às vezes a pesar nosso- de situações pouco atrativas, e até repulsivas. Quem sabe se, nos dias que correm, onde existe um verdadeiro mercado negro do amor -sentimentos, egoísmo e prazer são termos que se confundem entre si- não é necessário fazer o que a nossa bióloga com as suas plantas de estimação. Colocar o adubo, vulgar e malcheiroso, da rotina, da necessidade, da dureza da vida – do realismo!!!, numa palavra- para deixar que surja o fruto do amor perdurável. Mas, para tanto, é preciso ser romântico. Como era o príncipe idiota de Dostoievski. E isso agora, no começo de um novo milênio.


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