O HOMEM SEM FACE

Pablo González Blasco Filmes Leave a Comment

(Man without a face) Diretor : Mel Gibson. Mel Gibson, Margareth Whitton, Geoffrey Lewis. USA 1993. 116 min

Mel Gibson debuta na direção sem retirar-se do palco. Ator e diretor, experiência sempre tentadora para quem vai se firmando como um expoente de valor no mundo cinematográfico. Experiência que, não poucas vezes, arrasta o interessado por caminhos de vaidade, fazendo-o sucumbir ao convite fácil para se autopromover. Mas Gibson estreia sem vedetismo, num filme que tem fundo, densidade de valores. Estreia também nos bastidores, como o homem sem face da trama: uma acertada escolha para mostrar pulso na direção, abrindo mão de encher a cena com gestos e atitudes, pela própria limitação que a personagem, deformada, lhe impõe.

            Esta abertura é um bom recado para o nosso mundo, que mendiga afagos e confetes, que inaugura monumentos antes de acabá-los, em verdadeira fruição pela placa comemorativa, por amealhar títulos e condecorações. Cacarejar antes de botar o ovo, muito barulho e pouca eficiência, são elementos com os quais, infelizmente, convivemos pacificamente. E isto porque a vaidade é queda fácil para todos, desculpa confortável que abona nossas deficiências no relógio de ponto dos ajustes sociais. Um exemplo claro daquela “segreda maçonaria das paixões” de que falava Balzac. Não me cobre que eu também não cobrarei nada….Vamos deixar assim, num fazendo de conta, para não incomodar ninguém….E por aí afora.

            Justin Mc Leod, a misteriosa personagem de Mel Gibson, é um homem deformado, professor por vocação, a quem se lhe proibiu lecionar. Do outro lado, o jovem Chuck, adolescente, carente de afeto numa família desfeita e recauchutada no mercado dos usados: padrastos sucessivos, meias irmãs e uma mãe egoísta e despreparada. Os enjeitados pela vida aproximam-se, inicialmente por conta da curiosidade da criança, para seguir em amizade verdadeira. Compreensão, carinho, exigência sem melindres -que é também carinho- estabelecerão a base de uma educação proveitosa, do verdadeiro aprendizado.

            A sociedade, sempre afeita a cultuar as formas, julga com severidade. É a mesma sociedade que alimenta as vaidades e credita os homens pelo peso -em gramas, naturalmente- dos seus Curriculum Vitae sem prestar atenção no valor real das pessoas. Uma sociedade que -triste é dizê-lo- contamina o próprio ensino, deturpando o espírito universitário. Ditadura de conveniências e formalismos, de burocracias inúteis, terra fértil para as disputas políticas e interesses egoístas.

            A doação que supõe ensinar é dimensão esquecida. Fazer escola, dar o melhor de si para que os alunos, com o tempo, possam chegar mais longe, essa é a verdadeira grandeza de um autêntico mestre. Ser trânsito livre de ciência, esvaziar-se sem subterfúgios -sem medo de ser superado- pregar com o exemplo e não apenas com os conselhos: esse deveria ser o legítimo “curriculum”, as habilidades de um professor, em vez de um elenco inútil e narcisista de medalhas e autopromoções.

            Por isso ensinar é muito mais do que um papel; é um estado de graça, uma paixão – diz Justin Mc Leod. Uma verdade rotunda mas que, talvez, é  suave demais para a insensibilidade do meio circundante. Seriam preciso gritos para que haja reação; aquele grito, por lembrar de brigas no ensino, que dizem proferiu Miguel de Unamuno quando, sendo reitor da Universidade de Salamanca, o exército invadiu o campus para fechá-lo: “Este é o templo da inteligência e eu sou o sumo sacerdote; estais profanando seu sagrado recinto. Vencereis mas  não convencereis. E cegos, como estais, parece-me inútil pedir-vos que penseis na pátria”.

            Um filme agradável, com fundo duro, de poucas articulações porque o assunto é sério e não há espaço para a descontração. Uma paixão de ensinar, ao compasso dos versos de Shakespeare, onde o mercador de Veneza questiona-se pelo preço dos homens. São os dramas onde “morre alguém: sempre é assim em Shakespeare”. É a fútil conclusão da mãe incompetente que, naturalmente, não chega ao miolo da questão nunca. Nem no drama, nem na vida. As tragédias são tais não por causa da fatalidade, mas -no dizer de Ortega y Gasset- porque as personagens têm uma vontade férrea e estão dispostas a  não renunciar a si mesmas, a impor-se ao ambiente hostil.

            E para resistir, para continuar ensinando como é devido, o amor ergue-se como elemento imprescindível, divisor de águas, e selo de qualidade no amplo mundo dos docentes. “O simples professor -diz Gregorio Marañón- sabe e ensina. O verdadeiro mestre, sabe, ensina e ama. E sabe que o amor está acima do saber, e que somente se aprende de verdade o que se ensina com amor”. Maravilhoso panorama para quem ainda acredita que é possível ensinar os outros dando o melhor de si mesmo, encher essa tarefa de toda a dignidade que lhe corresponde, plena realização, vocação verdadeira. 


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