A luta pela esperança. O exemplo que nos faz sobreviver
Cinderella Man. Diretor: Ron Howard. Atores: Russell Crowe, Renée Zellweger, Paul Giamatti. 144 minutos. Assisti a este filme já faz algum tempo. Provavelmente, um par de anos atrás. Mas nos últimos meses, por algum motivo, ele me veio à mente com insistência. Acudiam à lembrança as cenas do filme, sobretudo o título – a esperança –, que bem vale uma luta. A história lembra os filmes dos anos 30-40, aqueles que Frank Capra dirigia com seu otimismo à prova de bomba, empurrando os americanos a acreditarem no seu próprio país. Anos de depressão econômica, seguidos de guerras. O nosso filme situa-se exatamente nessa mesma época. Jim Braddock – encarnado no polivalente ator Russell Crowe – é um boxeador com futuro. Estamos no final da década de 20. Escasseiam os alimentos, também as lutas, e o nosso lutador, para sobreviver, parte para os “bicos” mal pagos das docas. O ambiente é o de sempre. Lembram-se de Marlon Brando, em “Sindicato de Ladrões”, com aquele olhar tímido? É o mesmo entorno, só que desta vez em cores. Surge uma chance, e Jim volta a lutar, porque não lhe resta outro remédio: “Agora eu sei pelo que estou lutando” – declara na roda de imprensa. “Por quê?” – pergunta um jornalista. “Leite!” – responde Jim. Luta para ganhar o sustento dos seus. Mas como sabe lutar, ama sua profissão e pensa na família. O que era obrigação transformar-se em oportunidade, e vai galgando postos até enfrentar o campeão mundial dos pesos pesados. O homem que surge de baixo, do povo, o maltrapilho de New Jersey, mostra a seus iguais – ao povo que tenta sobrevier na miséria – uma luz no fim do túnel, uma verdadeira porta para a esperança: “Se Jim Braddock consegue, talvez nós tenhamos também uma chance na vida” – parecem dizer os que por ele torcem. A imprensa faz-se eco dessas expectativas e começa a apelidá-lo “Cinderella Man” (o homem-cinderela) – título do filme em inglês.
Apesar do realismo com que são filmadas as lutas – a história é dos anos 30, mas a tecnologia é atual, não dá para negar –, contemplamos um “filme-família” que destila valores. Aquilo que se mama na infância é o que realmente sobra, o que forma a pessoa. É também o que emerge quando as circunstâncias se tornam adversas. A fome aperta, o garoto mais velho rouba um salame, a mãe o reprime, e o pai o acompanha até o açougue, para que o devolva: “Nós não roubamos. Podemos passar fome, sentir frio, mas não roubamos”. O garoto abaixa o olhar. Sabe que o pai está certo. E como único comentário, diz que um conhecido teve de ser despachado para outra cidade, à casa de uns parentes, porque os pais não tinham o que lhe dar de comer. Jim não desaproveita a oportunidade. Faz o filho prometer que nunca mais roubará, e lhe dá sua palavra de que jamais o mandará embora. Mas os tempos não são fáceis. A fome e o frio tornam-se intensos, e a mãe deixa os filhos na casa da irmã: “Eu dei minha palavra de que nunca o mandaria embora” – diz Jim, que não hesita em se humilhar, pedir esmola, para poder pagar a conta de luz e trazer os filhos de volta. Ainda não sei porque este filme voltou a mim, requisitando-me estas linhas. O bom sabor-de-boca de ver uma família integrada, uma mulher que apóia o marido – “se eu não te apóio você não vence as lutas” – uma honestidade à prova de qualquer desgraça, são sempre valores que gostamos de contemplar. Mas talvez seja o exemplo de um homem íntegro o que martela a minha sensibilidade, no vácuo de uma escassez que se torna a cada dia maior. Carecemos de honestidade, de ética. Até aqui, nenhuma novidade: já virou lugar comum. Mas carecemos, sobretudo, de exemplos, de pessoas que vão à frente, mostrando-nos, com a sua atuação, o caminho a percorrer. E por carecermos de exemplos, falta-nos esperança. A falta de exemplo, ou melhor, o mau exemplo que, infelizmente, colecionamos às dúzias nestes dias que nos tocou viver, assassinam a esperança. Os filmes se entrelaçam, e cenas de outras fitas acodem à mente enquanto escrevo. A memória aponta a cena de “Circulo de Fogo” , em que os russos tentam defender-se do cerco que os alemães impõem a Stalingrado. Krushchev, em pessoa, convoca os generais soviéticos, pede-lhes contas da ineficácia das tropas que fogem do fogo alemão, e sugestões eficazes para acabar com a debandada. As respostas – todas previsíveis – abarcam desde a punição até a deportação para a Sibéria. Eis que alguém se atreve a sugerir: “Dê-lhes esperança. Dê-lhes exemplos a serem seguidos. O que precisamos é de heróis que os nossos homens possam imitar”. Este filme mereceria outro comentário, que algum dia se fará. E no vácuo dos generais russos, surge Michael Keaton, em “Minha vida” . Está morrendo de câncer, mas documenta os últimos meses de sua vida para seu filho, que nascerá póstumo. O médico lhe diz que não há nada a fazer. E o paciente, que encaixa o golpe e sai de mansinho do consultório, volta de repente, revoltado, e grita para o médico: “Você me tirou a esperança. Não pode fazer isso porque é o único que tenho”.Sim, deve ser isso o que provocou na minha memória a necessidade de escrever sobre a esperança. Diógenes procurava à luz do dia, com uma vela, um homem. Hoje, o filósofo-poeta talvez procurasse exemplos que nos mostrassem que vale a pena viver, dar o nosso melhor. Sentimos falta dessa gente que sai do comum – da mediocridade que toma conta da nossa sociedade, como metástase paralisante, silenciosa, do câncer da indolência. E assusta pensar que nós mesmos vamos sendo invadidos pelo tumor, acostumando-nos com a situação, deixando de nos surpreender com nossa própria falta de reação. É a turma do “deixa quieto” – que é o mesmo que dizer “deixa como está para ver como fica” –, que recruta a cada dia novos adeptos, em cujas fileiras vamos nos alinhando por falta de melhor opção. O que liquida definitivamente uma sociedade não são apenas os maus exemplos, mas a falta de exemplos positivos. Não é a maldade do bandido, mas a omissão dos que deveriam projetar os valores humanos: “Eu não faço mal a ninguém” – dizem alguns, muitos, cada vez mais. É verdade. “Mas também não faço nada de positivo” – deveriam pensar com seus botões. O grande problema que abre caminho ao câncer da indolência não é o mal que se faz, mas o bem que se deixa de fazer. Entramos, pois, no terreno da omissão. Do bem que eu poderia fazer ninguém me cobra – inclusive porque não se sabe o quanto eu posso dar –, e por isso mesmo deixo de fazê-lo. Sucumbimos em confortável conchavo com a mediocridade, que anestesia as consciências, amputa as iniciativas e os sonhos, liquida a criatividade. Bem o explica C. S. Lewis, humanista inglês, no seu livro sobre a abolição do homem: “Extirpamos o órgão, e exigimos a função. Fazemos homens sem coração e esperamos deles virtude e iniciativa. Damos risada da honra e nos estranha ver traidores entre nós. Castramos e exigimos deles que sejam fecundos”. É um panorama assustador, que se encaixa perfeitamente na sociedade da omissão que nos preside. Algumas semanas atrás, conversando com os amigos, surgiu a tão ventilada questão da ética na empresa. Alguém apontou que o branco e o preto são facilmente distinguíveis, e ninguém faz confusão. O grande problema é sempre a zona cinzenta, saber se o cinza pertence ao branco – ao correto –, ou ao preto. Um comentário sincero e aberto de um dos participantes me marcou e me fez pensar: “Na verdade, o que eu faço é ver se isso que é cinza posso contá-lo em casa, à minha família, sem ficar vermelho. Se puder, então deve ser branco. Do contrário… temo que caia para o preto”. Gostei do exemplo e o incorporei a meu repertório. Naturalmente, deve-se ponderar que família cada um tem. Mas mesmo no pior dos casos, ninguém gosta de aparecer como bandido no ambiente doméstico. Talvez porque a família – o exemplo positivo na própria família – seja parâmetro de qualidade ética, ou porque seja isso o que hoje também falta, pois, afinal, “lá em casa, não fazemos mal a ninguém, não brigamos com ninguém, mas cuidamos cada um da própria vida, sem no meter na vida dos demais”. Quer dizer: se posso evitar de me encontrar com qualquer vizinho no elevador, muito melhor. Já tenho problemas o suficiente para tentar mudar o mundo, ou o condomínio, ou até mesmo o prédio onde moro, ou o meu cunhado… A mediocridade e a mesquinharia caminham juntas. O exemplo positivo abre as portas à esperança, exige complicar a própria vida para ser criativo e querer, de fato, mudar uma parte do mundo – aquela que nos rodeia. A ingenuidade de querer mudar as estruturas quando o que é preciso mudar são as pessoas, desemboca em visões “macro”, que fatalmente são negativas. Ater-se ao círculo de influência de cada um, no qual realmente se pode fazer a diferença, e aí não deixar de fazê-lo por comodismo, é o papel do líder que a sociedade precisa. Para tanto requer-se criatividade. Lembro de uma história recente, ocorrida num país europeu. Uma professora de filosofia, mãe de família, contou-me com entusiasmo que, no colégio onde trabalha, as jovens estudantes acudiam às aulas vestidas – ou desvestidas – de modo não apenas pouco acadêmico como quase indecente. A diretora e alguns professores pensaram em fazer advertências sérias, até punições. Nada muito diferente de Krushchev em relação aos generais russos. “E o que você fez?” – perguntei à professora. “Montei um desfile de modas com as alunas. De nada serve proibir. É preciso que as garotas ganhem o gosto por se vestirem bem, com elegância. É o único caminho”. Eis um exemplo do bem que podemos fazer e… o fazemos, mesmo que dê muito mais trabalho que ficar condenando o erro alheio, confortavelmente instalados na nossa poltrona. A esperança vem como conseqüência do exemplo positivo, da criatividade que se esforça por encontrar soluções á altura das circunstâncias. Quer dizer: é preciso estabelecer um combate sistemático à omissão ou, como dizia uma aluna numa aula que dei semana passada, “é preciso lutar contra nós mesmos, contra esse outro eu que abominamos”. Quem se atreve a escrever sobre “a esperança que nos salva” é o Professor Ratzinger – hoje Bento XVI – de modo, aliás, contundente. Por isso afirma que um progresso que confie apenas na técnica, e não na evolução paralela do homem interior – do homem ético –, não é progresso, mas verdadeira ameaça. O que nos arranca da mediocridade é o exemplo de quem não se conforma com o convencional, de quem se arrisca. Afinal – afirma ele –, o que redime o homem não é a técnica, mas o amor. Um amor que nos faz dar o melhor de nós mesmos, com criatividade. Trata-se de abrir as portas da esperança a essa humanidade machucada, dolorida, enjoada até a náusea da mediocridade e da omissão dos que deveriam ser exemplo, mas não acabam de assumi-lo.
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Força e honra senhor Pablo