“Apenas uma vez”: a música que nos cura
(Once) Director: John Carney Atores: Glen Hansard, Marketa Irglova, 85 min. Fui criado num lar onde se amava o cinema. Não o aspecto acadêmico do cinema – o amor dos cinéfilos –, mas as possibilidades que o cinema nos oferece para conhecermos melhor a vida, o mundo, as pessoas. Entendíamo-nos através de filmes, éramos corrigidos com frases de filmes, estimulados com situações e valores que os filmes – a que assistíamos juntos, muitas vezes de pijama – nos brindavam. Na minha família, o cinema era uma linguagem habitual. Hoje, quarenta anos depois, estamos todos envolvidos, de alguma forma, com temas de educação – talvez por culpa do cinema –, de tal modo que evocamos e utilizamos o cinema para formar os outros, tal qual nós fomos formados. Agora estamos entrando na quarta geração, e o cinema continua sendo um amor da família. No mês passado, tive oportunidade de estar com os meus irmãos que vivem na Europa, e vários deles me falaram de “Once” como “um filme necessário”. Consta-me que um deles organizou uma sessão familiar para assistir ao filme com meus sobrinhos, porque ao cinema – entendido como nós o entendemos – deve-se assistir em família. Voltei ao Brasil com a pulga atrás da orelha, como se diz, mas também com muito trabalho pendente, de modo que a curiosidade acabou se aquietando um pouco, antes que surgisse a ocasião de ver o filme. Mas a ocasião, finalmente, surgiu, na semana passada, quando entrei na locadora de um amigo. Aproximei-me da prateleira para ver as novidades, até que pude ler o título “Apenas uma vez”. Como estivesse sem óculos, afastei um pouco a capa do DVD para conseguir ler o titulo original. Lá estava: “Once”. Peguei-o e saí, sem prestar muita atenção no que o balconista me dizia sobre o filme. Provavelmente, algumas frases-chavão que a gente sempre interpreta com o pensamento daquele cantor de tangos: “Isso o dirás a todos…” De cara, vê-se que o filme não é bem um filme. Quer dizer, não é algo cinematográfico. Logo no início já cheira a documentário: câmara solta, sem cortes, sem primeiros planos… “O que será isto?” – perguntei-me, enquanto na tela um figurante – não parecia ser ator; pelo menos representava muito bem não sê-lo – tocava violão na rua, e agradecia as moedas que os passantes depositavam na capa do instrumento. “Não será que esse filme não passa de um videoclipe, de um mero cenário-pretexto para ‘rolar’ rocks e outras canções que a molecada gosta?” – pensei comigo, sentindo que talvez estivesse ficando velho… Acomodei-me na poltrona, sem grandes expectativas, e confesso que duvidei da recomendação familiar. Minha sintonia é outra… Surge uma garota, que fala um inglês muito mais compreensível. “Acho que não é irlandesa” – arrisquei. De fato, logo ficamos sabendo que é tcheca. Ingênua, não sabemos o que faz lá, quer consertar um aspirador, que parece ser a profissão do músico ambulante. Um documentário, um conjunto de entrevistas. E, de repente, a música. Violão, piano e umas toadas irlandesas que chegam à alma com sabor “folk” e letras que são poesia arrancada da vida. “Você gosta dessa mulher – diz a moça. Não é possível compor isso para alguém que se esqueceu”. Talvez ela tenha razão. “Vamos tentar tocar juntos”. Mais piano e violão, duas vozes, o rapaz fazendo o agudo, ela o grave, em contraponto. Falam de sofrimento, de pegar um barco que está afundando e voltar para casa porque ainda há tempo. E a esperança penetra na alma – na deles e na do espectador – e faz a festa. Uma canção, e agora outra: “Essa não tem letra. É a tua veia romântica. Eu vou colocar letra. Posso?” E a letra aflora, contundente: “Tentei ser uma pessoa melhor para te satisfazer. Se você me quer, satisfaça-me, conquiste-me”. Ainda estamos saboreando o efeito de uma música – e já com vontade de ouvi-la novamente – quando chega outra, de mansinho, numa explosão de simplicidade: “Se me necessitas, chama e irei rápido até a tua porta para lutar”. E mais outra: “Você deve ter caído do Céu, para consolar o homem excluído, o homem que vai ser devorado pelos lobos”. E segue a canção-tema, envolvente, imensa: “Falling slowly – os olhos que me conhecem e se fecham lentamente”. Tudo é muito irlandês, muito natural e muito profissional, porque são músicos os que atuam. Um filme feito com música, mas não um musical. Mais parece um documentário onde as cenas são bordadas com canções que dizem o que a imagem não é capaz de exprimir: “Escapa-me o sentido das palavras nesses jogos que vão acabando”. Lá estão os sentimentos, as feridas, os desejos e sonhos, os medos, e a confiança da mão amiga que nos levanta, e que ao nos ajudar acaba se ajudando a si própria. Não sabemos os nomes dos protagonistas. Nos créditos lê-se apenas “o rapaz”, “a moça”. Na verdade, o filme é a vida mesma, e os protagonistas poderiam ser cada um de nós. E música também, essa música que nos cura, que tira de nós o melhor que temos dentro.