Susanna Tamaro: “Va aonde seu coração mandar”
Este foi o meu primeiro encontro com a obra de Susanna Tamaro. Um momento inesquecível, prelúdio de muitos outros. Utilizei inúmeras vezes os dizeres que a autora coloca elegantemente neste livro, recomendei-o para muitas pessoas que, posteriormente, me agradeceram. Hoje, passados mais de 13 anos, vim lembrar que na época em que li “Vá aonde seu coração mandar” escrevi uma pequena crítica –uma sinopse recolhendo algumas das frases que mais me impactaram- que ficou esquecida entre os documentos do meu computador. Pensei que estava na hora de devolver à autora com quem tanto simpatizo –temos a mesma idade- o tributo que, imerecidamente, eu recolhi por ter recomendado suas obras. Mergulhei no baú de arquivos mortos do computador –não daquele, mas de um sucessor que conserva o mesmo DNA do disco rígido- encontrei o escrito, e agora o coloco no ar. Ai vai, com um pedido de desculpas para Susanna Tamaro, e com profundo agradecimento.
Susanna Tamaro. Ed Rocco. Rio de Janeiro, 1996. 136 pgs.
Eis um livro surpreendente e necessário. São as lições de vida que uma avó, doente, dá para a neta rebelde que fugiu de casa. Escrito em forma de diário, ao compasso das lembranças da própria vida, recados que a neta poderá encontrar ao seu regresso, recomendações empapadas de carinho e sabedoria. Um testamento de vivências, não conselhos, pois se recolhe o que a vida leva consigo: erros e acertos, alegrias e sofrimentos, dúvidas, e o claro-escuro que tece a existência humana quando enlaça grandeza e miséria. E percebemos que o que a avó quer é acertar as contas com o seu passado, e deixar esse saldo de reflexão para a neta que ama. Rodeada de silêncio “na casa muda e solitária como um peixe em sua redoma de cristal” encontra-se a si mesma. “A compreensão exige o silêncio…O silêncio é como o pano úmido, afasta de vez a opacidade do pó”.
A autora situa-se no papel da protagonista. O relato é pausado, detalhista, minucioso, como o bordado da anciã que abre sua alma. Uma confissão aberta que abomina das formas e do faz de conta – no qual sempre viveu-, e implora pela verdade que necessita como do ar para respirar. “Não podemos fugir das mentiras, das falsidades. Ou melhor, podemos fugir durante algum tempo, mas quando você menos espera, lá vêm elas à tona de novo; já não são mais tão submissas como na hora em que as dissemos, aparentemente inofensivas, nada disso; durante o momentâneo afastamento, transformaram-se em monstros medonhos, em horrorosos ogros”.
Surpreende a profundidade de ideias num livro que, aparentemente, foi escrito sem compromisso. São recados encantadores que a avó deixa cair entre as linhas da narração. Predomina a tonalidade feminina em toda a atmosfera do livro. Afinal é uma conversa entre mulheres, que também sabem da fragilidade dos homens: “por trás da aparente segurança, por trás do aparente atrevimento, os homens são extremamente frágeis e ingênuos; possuem dentro de si alavancas muito primitivas, basta puxar uma para fazer com que caiam na frigideira como peixinhos fritos”. Uma mulher que educa em linguagem de culinária, com originalidade: “Lembra-se de quando lhe ensinava a preparar as crêpes? Quando as vira no ar, dizia-lhe, deve pensar em tudo menos no fato de elas terem de cair direito na frigideira. Se pensar demais no voo, pode ter certeza de que cairão enroladas, ou se irão estatelar direto no fogão. É engraçado, mas é justamente a distração que nos faz chegar ao centro, ao coração das coisas”.
Mas não é um livro para mulheres, pois a sabedoria que encerra diz respeito à condição humana, à pessoa que é sempre única, irrepetível. “Somos seres humanos, cada um de nós nasce com um rosto diferente dos demais, e esses rostos os levamos conosco pela vida afora. O antílope nasce com cara de antílope, o leão com cara de leão, são iguais, idênticos a todos os outros animais da mesma espécie. Na natureza, a aparência permanece sempre a mesma, ao passo que o rosto é algo que só o homem tem, mais ninguém. (…) No rosto há tudo. Nele, há a sua história, seu pai, sua mãe, seus avôs e bisavôs, pode até haver um parente distante de quem já ninguém se lembre. Atrás do rosto há a personalidade, as coisas boas e as não tão boas que você recebeu dos antepassados. O rosto é nossa primeira identidade, aquilo que nos permite uma acomodação na vida, dizendo: aqui estou eu.”
Pessoas que precisam de compreensão, e para isso é necessário colocar-se no lugar do outro: “Não faz muito tempo, em algum lugar de que não me lembro, li um provérbio dos índios americanos que afirma: ‘Antes de julgar uma pessoa, passe três luas usando seus sapatos’. Gostei tanto que, para não esquecê-lo, escrevi-o no caderninho ao lado do telefone. Exteriormente, muitas vidas podem parecer erradas, irracionais, loucas. Enquanto nos ativermos ao exterior, será fácil interpretar mal as pessoas e nosso relacionamento com elas. Apenas penetrando-as, apenas caminhando três luas com seus sapatos, poderemos compreender suas motivações, seus sentimentos, o que as leva a agir de um jeito, e não de outro. A compreensão nasce da humildade, não do orgulho de saber”.
Compreensão que deve correr parelha com a exigência que corrige e quer o bem daquele que ama, sem esconder-se por trás de um falso conceito de liberdade: “Por trás da máscara da liberdade, esconde-se amiúde o descuido, o desejo de não nos envolvermos. A fronteira é extremamente sutil, superá-la ou não é questão de momento, de uma decisão que tomamos na hora ou não tomamos nunca; e só percebemos sua importância depois de o momento já ter passado. E só então nos podemos arrepender, só então percebemos que naquela hora não devia haver liberdade, mas intrusão: estávamos lá, tínhamos consciência, dessa consciência devia ter nascido a obrigação de agir. O amor não combina com os preguiçosos; para existir em sua plenitude muitas vezes exige gestos decididos e fortes. Está entendendo? Eu disfarçara minha covardia e indolência dando-lhes o nobre nome de liberdade”
Um testamento reflexivo que faz pensar e aprender com a experiência dos outros, e com o seu sofrimento. Reflexão que exige parar, ponderar o que se quer na vida que “não é uma corrida mas um tiro ao alvo: o que conta não é a economia de tempo, senão a capacidade de encontrar um objetivo”. Somente assim é possível mudar e mudar o que temos à nossa volta. E nesse desafio está, talvez, a melhor proposta deste pequeno e maravilhoso livro: “Toda vez que, crescendo, tiver vontade de transformar as coisas erradas em coisas certas, lembre-se que a primeira revolução a ser feita é aquela dentro de nós mesmos, a primeira e mais importante. Lutar por uma idéia sem ter uma idéia de si mesma é uma das coisas mais perigosas que alguém pode fazer”.
Comments 6
Pablo, este livro me foi recomendado e quando entro na internet para buscá-lo, encontro teu texto, teus comentários. Que sutileza! Fiquei ainda mais curiosa pela obra depois de ler tuas palavras! muito obrigada! Lenice Zarth Carvalho
Pingback: Susanna Tamaro: “Todo Ángel es terrible” | Pablo González Blasco
Assisti, na época do lançamento o filme e posteriormente li o livro. Sem dúvida este é mais rico pois temos a possibilidade de ler e reler cada frase que em sua maioria é de extrema beleza. Parabéns pelo comentário. Beatriz
Pingback: Sully: O Herói do Rio Hudson. A Criatividade do Fator Humano | Pablo González Blasco
Pingback: Susanna Tamaro: La Tigresa y el acróbata | Pablo González Blasco
Certa feita ouvi a frase “se Pedro fala de Paulo, conheço mais Pedro que Paulo”. Isso, de certo modo, ocorreu ao ler a sinopse que Pablo G. Blasco fez sobre o livro vá aonde seu coração mandar de Susanna Tamaro. Sim o livro, depois dessa culta sinopse, está recomendadíssimo. Mas, sem dúvida, também, que restou demonstrado que o autor da sinopse tem uma reserva de cultura e humanismo farta e assim, portanto, fica, também, recomendadíssimo, a leitura de suas obras.