Juan Antonio Rivera: “O que Sócrates diria a Woody Allen”

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Juan Antonio Rivera: “Lo que Sócrates diría a Woody Allen”. Espasa. Madrid, 2003. 326 pgs

     O que melhor define este livro é o subtítulo que o acompanha: Cine e Filosofia. Não se trata de um diálogo de Sócrates com Woody Allen, contado pelo autor, a modo de Platão moderno, nem de réplicas do diretor americano ao filósofo grego, como sugere o título em português. Trata-se, sim, de falar de filosofia, e dar recados, tomando como ponto de partida uma série de filmes. Ou talvez, encontrar os filmes que encaixam com as ideias que o autor, um professor de filosofia que ama o cinema, quer explicar. Como já sabemos –e tantas vezes o experimentamos, o ensinamos e escrevemos sobre o assunto- a filosofia da vida se torna de algum modo transparente na arte, diáfana no cinema que é o modo moderno de contar histórias; o autor arranca dos filmes, a modo de pista de decolagem para voos mais altos, alguns muito peculiares, outros um pouco forçados, mas voos ao final que nos ajudam a assumir uma postura de reflexão diante da vida. Esse é o grande ensinamento desta obra: é possível contemplar a vida –real, ou na ficção como no cinema- e refletir sobre ela, tirar consequências, enfim, assumir uma atitude filosófica diante do próprio viver, e do mundo.

     De entre os muitos pontos abordados, vale destacar alguns que são particularmente inspiradores: o mais importante da vida é o que o autor chama subprodutos. Quer dizer, aquilo que se consegue por tabela, não diretamente. É o caso da felicidade, da alegria, do sentimento do dever cumprido. Como muito bem anotou a este respeito V. Frankl –que o autor não cita, talvez por desconhecimento- ninguém consegue a felicidade quando se propõe ser feliz, mas quando serve os outros, cumpre o dever, é integro, ou mesmo quando sofre por um motivo claro. A felicidade lhe chega por tabela. O mesmo acontece com o descanso, com a realização pessoal.

     São vários os filmes comentados, sempre no vácuo dos recados que o autor quer comunicar. Especial destaque merecem os capítulos que se dedicam à formação do gosto moral, onde disseca com paciência produções do cinema dos anos 40 e 50, que mostram como é possível melhorar, tornar-se bom apesar dos defeitos e misérias, no vácuo de um modelo humano que inspire essa melhora. Lembrei novamente de Frankl, citando Goethe: “Se tomamos os homens como são os fazemos piores do que se os tomássemos como o que deveriam ser”. Ilustrando este importante ponto – a possibilidade de redimir as próprias misérias- o autor nos brinda um longo estudo de “Na Teia do Destino” (The Reckless Moment, 1949) e do inesquecível “Sindicato de Ladrões” (On the Waterfront, 1954).

     Outro importante ponto a destacar são os comentários sobre a liberdade, o risco que a vida entranha, nos capítulos onde se comenta a preferência ética por viver num mundo real. Lá encontramos “Matrix” (The Matrix, 1999), “O Show de Truman”(The Truman Show, 1998) , e alguma outra produção clássica sobre o assunto, amplamente comentada. Nota-se que o autor pensou, sonhou e deu incontáveis voltas a cada tema de reflexão; as vezes, isso pode cansar, mas sempre é possível ler em diagonal, e passar ao tema seguinte, que conservará seu próprio interesse.

     As ideias são muitas, e também a vivência prática que se experimenta ao ler o livro, e recordar os filmes. O autor confere, por sinal, mais valor às vivências e as crenças, pois como diz citando Ortega, “as ideias têm um caráter ortopédico; entram em vigor, lá onde uma crença se rompeu ou debilitou”. Um belo pensamento do filósofo espanhol, que dá muito que pensar, e explica a fauna de ideólogos que cercam os que têm crenças e ideais de vida debilitados, recrutando assim as massas.

     Enfim, o livro é, em palavras do autor, um verdadeiro delírio metafísico controlado. É justamente nas páginas finais, onde se aventura a construir a teoria –que nos é tão familiar- sobre o poder educador do cinema. Assim, comenta: “Quando se assiste a um filme, essas duas horas empregadas formarão parte da experiência do expectador de maneira indelével. E invocará essa experiência para, no dia a dia, resolver os assuntos práticos que a vida lhe coloca diante. E certamente os resolverá melhor do que se não tivesse visto o filme. (…) O Cinema é um potente meio de somar vidas à vida própria, e aumentar o caudal de experiências para o uso prudente no futuro.”

     Ainda nestas páginas, visto ter introduzido a sugestivo tema da prudência, o autor explica que a prudência não se compõe apenas de conhecimentos teóricos, mas de cultura prática. Uma cultura que é como o conhecimento prévio que alguém adquire e que lhe torna compreensível uma nova experiência. É como uma sintonia afetiva. Nutrir essa cultura implica familiarizar-se com esses estímulos, desfrutar vivências que aumentarão o repertório da cultura prática para compreender e vivenciar novos estímulos. “Não se desfrutam as Cantatas de Bach, lendo uma enciclopédia sobre a música barroca, mas assistindo concertos, gastando horas escutando Bach”. E ainda anota: “O indivíduo prudente, no sentido aristotélico, é aquele que possui um rico acervo de cultura prática, um cabedal de experiências (próprias e importadas de modelos, aqui entra o cinema, as historias de vida); esse acervo é a ferramenta que lhe permite reduzir a dimensões manejáveis novas experiências que a vida lhe coloca diante, por relacionar a novidade com a cultura adquirida, estabelecendo pontes entre elas, buscando soluções no seu repertório de experiências acumuladas”. E para ilustrar exemplifica: “Aprendemos a tratar os membros do outro sexo, beijá-los, brigar com eles, e também fazer as pazes, em grande parte através da ficção”.

     As conclusões que daqui podem ser tiradas são muitas e importantíssimas. A necessidade de educar a afetividade –através de experiências positivas que modelem o paladar das emoções- é uma das principais. Podemos nos estranhar do embotamento afetivo, ou da falta de sensibilidade, ou mesmo da bizarra grosseria das reações dos jovens quando carecem por completo de uma educação sentimental? Carecem, porque ninguém lhes conduziu da mão, para que aprendessem a saborear as experiências enriquecedoras. São submetidos a estímulos vigorosos, dezenas por segundo –ampliados pela fauna circulante nas redes sociais- mas ninguém lhes educa na arte de apreciar, julgar e crescer nesses impactos que sofrem em orfandade afetiva.

     Talvez por tudo isto, este livro é um instrumento inspirador para professores e formadores. Para os cinéfilos, será um deleite e os provocará para que vejam –ou revejam- muitos dos filmes comentados. Os comentários do autor como complemento dos filmes serão fonte de conceitos que decantarão em ações pedagógicas. Pode-se concordar com esses comentários ou não; mas certamente provocarão a reflexão, pois é disso que se trata quando empregamos o cinema como recurso educador. Daí que o autor se atreva a afirmar que “um dos propósitos deste ensaio é deixar claro o poder das ficções cinematográficas para ampliar e aquilatar a nossa cultura prática, nossos recursos para melhor viver e melhor morrer”. Em minha opinião, é um propósito bem cumprido.

Comments 1

  1. Li o livro, e é muito bom. Me senti instigado pelo conceito de subproduto, que é bastante rico e está presente em situações corriqueiras como querer ser feliz a todo custo ou se obrigar a dormir quando a cabeça está a mil! Ótima resenha!

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