Michael Ende: “A Historia sem fim”
Michael Ende: “A Historia sem fim”. Martins Fontes. São Paulo. 2001. 392 pgs.
Longe de mim pretender esboçar aqui um comentário crítico deste livro que, com frequência, serve de base para cursos, seminários, e jornadas filosóficas e literárias. Alias, foi por causa de um desses seminários –que acabou não acontecendo- pelo que me aventurei a lê-lo, pois se utilizaria como pauta do debate. A circunstância foi decisiva, porque a literatura alegórica não é gênero que me atraia. Entendo e respeito os escritores que lançam mão de metáforas fantásticas ou de animais inteligentes para dar recados ao ser humano. Mas eu prefiro viver os dramas ao natural, em versão realmente humana. Têm um sabor fenomenológico mais genuíno, ao menos para o meu paladar. E embora haja muita literatura simbólica de qualidade, a vida é curta e limitada, é preciso fazer opções, não se pode ler tudo o que se desejaria. Daí a escolha necessária, cada um conforme o seu gosto. Para o meu, a opção é direta, em carne e osso, sem necessidade de traduzir situações ou de explicar parábolas.
Nesta ocasião, aventurei-me na leitura por ocasião de um evento do qual fui privado. Mas o saldo foi positivo, e não perdi o costume de fazer algumas anotações que me chamaram a atenção. Todas com implicações humanistas diretas.
A certa altura da narrativa –o livro é todo ele uma grande narrativa, historia sem fim- deixa-se cair um comentário de tremenda atualidade. A insensibilidade, ou melhor, a anestesia para como o mal. Anota o autor: “Acontece, porém, que o horror vai deixando de ser tão terrível à medida que se repete muitas vezes. E, dado que esses lugares do Nada eram em número cada vez maior, os protagonistas acabaram por habituar-se a eles; ou melhor, tomara-os uma espécie de indiferença.” Ao horror, ao choque ético, segue-se um acomodamento, depois a indiferença, e passa-se a conviver com o mal, de modo pacífico. A conta não admite erros: não sendo a maldade a que míngua, o acerto somente se consegue com a aniquilação dos próprios valores.
Os sonhos, os detalhes, as pequenas coisas são como um protagonista lateral, silencioso, mas sempre presente. “Admirava-se por seu amigo se mostrar tão interessado exatamente nos pormenores mais corriqueiros. Talvez devido à maneira como o escutava, esses pormenores comuns do dia-a-dia da sua vida pareciam-lhe cada vez menos comuns, como se encerram-se um segredo de que ele nunca se dera conta.” Nada valoriza tanto a nossa vida, a nossa historia, como ter alguém disposto a escutá-la. Eis uma versão da solidariedade, a empatia, que brilha pela ausência neste mundo de agendas apertadas.
E por trás dos sonhos, a memória da própria identidade, que implica reflexão permanente. É preciso sonhar, ter desejos; mas cuidado com os desejos que te tiram a memória do teu mundo, de quem você é na realidade. “Somente se podem desejar coisas enquanto se lembra do seu mundo. Mas estes sujeitos que estão aqui (num determinado lugar do livro) esgotaram todas as suas recordações. Quem não tem passado, também não tem futuro. Para eles nada pode mudar, porque eles próprios já não podem mudar”.
Como disse, são inúmeras as temáticas, que decolando das linhas verdes e vermelhas de “A História sem fim”, proporcionam sustento para uma reflexão filosófica, humanista, antropológica. Teremos de esperar o próximo seminário para encantar-nos com a variedade do espectro. Para já fica outro recado que, ao meu modo de ver, percorre todo o livro como fio condutor: Não será a leitura, o mergulhar nos livros, a oportunidade que cada um tem de viver sua história sem fim? Vai ver que esse é o motivo pelo qual este livro é tão solicitado.