Meia noite em Paris. O Realismo Sonhador de Woody Allen

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Midnight in Paris. Diretor: Woody Allen. Atores: Owen Wilson, Marion Cotillard, Rachel McAdams , Kathy Bates, Michael Sheen. 2011. 94min.

     Nunca fui fã de Woody Allen. Não acabo de entender-me com ele – mesmo admitindo que sabe fazer um cinema original, intuitivo, por vezes genial. Surpreende-me, e me admira o modo de trabalhar as personagens, o roteiro, a trilha sonora; mas sempre existe algo que não funciona. Parece que, lá no fundo, se encontra latente um leitmotiv de ceticismo que sussurra: “caso você ainda acredite no ser humano, eu vou destruir essa crença”. É o mesmo que me acontece com outro diretor britânico, Sam Mendes (Beleza Americana, Foi apenas um sonho) que pratica a descrença da família: “Se você ainda acredita na família, eu vou dar um jeito para eliminar esse mito”. Definitivamente Woody Allen não é santo da minha devoção. Por isso estas linhas têm significado especial. Vai aqui o meu reconhecimento por este filme magnífico que acaba de produzir. Quando o comentei com os colegas, me disseram: “Para você recomendar Woody Allen, o filme deve ser bom mesmo”. Sim, é uma ótima fita, e por isso faço questão de promovê-la.

     O argumento é Paris. Paris, saudades, sonhos, e música. O resto, somente vendo. Até porque o argumento é o de menos; simples desculpa para um ensaio de romantismo, mas com miolo de fundo. Os atores dão boa conta do recado, performances discretas, que se dissolvem no argumento. O protagonista é um caso aparte. Parece que é um ator de seriados, sem nenhum destaque, mas encaixa no papel como uma luva. O segredo que me pareceu ver é simples: ele interpreta o próprio Woody Allen, trabalha como o faria o diretor, ….se tivesse 40 anos menos. O jeito de falar, as caras de surpresa, os gestos, a timidez estudada, até a entonação da voz. Allen o produz à sua imagem e semelhança, um perfeito alter ego, que passeia por Paris, embrulhado em lembranças, sonhos, romantismo e destilando saudades de um tempo que não viveu. Cheguei a pensar que Woody Allen teve vergonha de interpretar este papel, e delegou no garotão, para não se expor excessivamente. Maldade minha, são as minhas diferenças com o baixinho.

     Owen Wilson, que é Gil, que é a sombra de Woody Allen é, por sua vez, um escritor que não acaba de decolar. Falta-lhe inspiração, cenário. Por que não Paris, lugar onde as musas andam soltas? E, sem mais, o nosso protagonista mergulha em excursões encantadoras e atemporais, no Paris das artes. Turnês maravilhosas onde aparece Scott Fitzgerald, Hemingway, Picasso, Buñuel, Dali, os impressionistas, e até toureiros como Belmonte; toda uma corte de figuras que surgem à volta do Gil, embalados nas músicas de Cole Porter, naturalmente. Como já disse, somente vendo para apreciar este fascinante espasmo saudosista de Woody Allen, repleto de boa cultura.

     Agora sim, temos entorno para criar e produzir arte. Isso pensa o protagonista, e nós concordamos, pois afinal, os tempos passados sempre foram melhores. Saudades daqueles bons momentos, quando as gentes transpiravam cultura, vestiam-se com classe. Quem nos dera poder entrar no túnel do tempo, para fugir à nossa sociedade de vândalos e ostrogodos, saturada de tecnologias 3D, 3G, e de analfabetismo trilíngue. Mas o ser humano, que pilota a tecnologia, dança as toadas de Cole Porter, ou desenha em cores desbotadas as garotas do Moulin Rouge, é sempre o mesmo. É aqui onde Woody Allen dá o seu recado: uma apologia formidável do realismo e da sabedoria que entranha viver o momento presente, sem distrações ou evasivas.

     Conforme desfrutava com a sequência de cenas e personagens, uma poesia do Fernando Pessoa veio cutucar minha memória. Gosto imenso do poeta português, porque consegue plasmar em versos as questões existenciais mais profundas. Diz assim a tal poesia: Temos todos que vivemos/ uma vida que é vivida e uma vida que é pensada/, e a única vida que temos/ é esta que é dividida,/ entre a verdadeira e a errada. Não deixa lugar a dúvidas: a inspiração dos sonhos –presente e necessária- deve ser canalizada para ganhar forças e viver a vida que nos é dada. Ortega dizia que a vida nos é disparada a queima-roupa: não há chance de escolher outra, e a que nos é outorgada, tem de ser vivida em plenitude. Sem delegar em ninguém, assumindo a reponsabilidade. Por se ainda restam dúvidas continua Pessoa: Qual porem é verdadeira/E qual errada, ninguém/ Nos saberá explicar/ E vivemos de maneira/ Que a vida que a gente tem/ É a que tem que pensar.

     É preciso aprender a viver o momento presente, sem deixar-se seduzir por aquela tentação que um santo dos nossos dias costumava denominar a mística do oxalá. Oxalá tivesse outra profissão diferente, ou outra família, ou tivesse nascido 30 anos antes, ou fosse mais alto, ou com olhos verdes. Saudosismo estéril e incorreto, pois as saudades –a dor e alegria da ausência, esse sentimento tão nosso, tão verde amarelo- pressupõe ter vivido algo do qual se carece neste momento. Saudades do que nunca se teve, dos futuríveis, é puro devaneio. A mesma fantasia que nos faz pensar que o quintal do vizinho é sempre melhor. O mesmo engano que aplica a conhecida lei de Murphy –sujeito de cuja existência duvido- quando afirma que a fila do trânsito onde eu circulo é sempre a que não anda. Na verdade, Murphy e sua lei são a materialização da ingratidão: quem reclama que a fila não anda, é porque nunca soube agradecer as muitas vezes que a fila em que estava andou bem e nem deu por isso.

     Eis a fisiologia dos sonhos estéreis: uma fuga da realidade, ocupar-se com aquilo que não pode ser mudado, para eludir, em cômoda atitude, o que deve ser trabalhado aqui e agora. Mas as lições continuam, porque Woody Allen faz com que o protagonista retome seus ideais justamente através desses devaneios. Não se pode viver na nostalgia, mas também uma existência sem sonhos não é humana, cai na desesperança, na paixão inútil de Sartre que, por sinal, também é de Paris, e não aparece no filme, porque não teria vez.

     Não se pode viver sem sonhos, pois são a vanguarda dos ideais, da missão que cada um tem na vida. É preciso sonhar e projetar o futuro, mesmo sabendo do risco de que por vezes se contaminem de saudosismo. Querer entrever o futuro, sonhar com visão, projetar nossos desejos de melhorar o mundo, significa de algum modo tirar os pés do presente, abrir mão do imediatismo. E quando levantamos a vista do presente, do imediatismo, os ventos que vêm do passado nos atingem também e podem nos seduzir, e fazer apenas lamentar o presente, ao invés de projetar um futuro melhor que deveremos construir.

     Ter medo de sonhar, para se proteger das invasões do passado nostálgico, é sucumbir à ditadura da produção e da eficiência. Um retrato fiel da realidade que vivemos hoje, toda medida em números, e resultados, presidida por uma cultura da pressa. Tomou conta da educação. Tudo tem de ser resolvido e medido com rapidez, e as soluções vêm em formatos digitais. Não se manuseiam livros, compram-se programas; não se ensina a pensar, apenas a operar a técnica. Não se sonha com um mundo melhor, advoga-se pela comodidade prática e eficiente. Se assim anda a Universidade, a educação familiar não goza de melhores perspectivas. O mundo ficou rápido, mas a fisiologia continua igual e não adianta esticar a criança para que cresça mais rapidamente.

     Não pensar, e apenas agir, em presente total e global, não é vacina contra os sonhos do passado que nos distraem, mas abrir mão da condição racional, e reflexiva que temos. Existem notáveis exceções: um bom amigo, também médico e educador, me contava nesta semana como provoca saudáveis crises existências nos alunos e residentes quando lhes pergunta se já pensaram no epitáfio que vão colocar no respectivo túmulo. Maior projeção do futuro –por sinal certíssimo- para aprender a viver melhor o presente é impossível. Parabéns ao meu amigo, e ânimo com suas empreitadas.

     É preciso enfrentar esse difícil e necessário equilíbrio entre os sonhos e a realidade, entre as duas vidas de que nos fala Fernando Pessoa, sendo que nos cabe pensar a vida que de verdade temos. É necessário olhar para o futuro, e sonhar com ele; deve-se frequentar com sabedoria o passado para aprender; e, sobretudo, é preciso traduzir esses aprendizados no viver diário, com intensidade e paixão. O santo que fala da mística do oxalá deixa escrita uma bela síntese dessa atitude, que diz assim: “Não sejas ‘teórico’: são as nossas vidas, em cada jornada, as que devem converter esses ideais grandiosos numa realidade cotidiana, heroica e fecunda”.

     Longe nos levaram os passeios por Paris. Deve ter sido essa a intenção de Woody Allen, que com os seus 75 anos é mesmo um romântico, um saudosista, que agora se abre, sem pudor, à esperança. Será que está envelhecendo? Fraquejando? Ou reconquistando o que sempre foi: um amante do cinema, alguém que entende do riscado, alguém que nos faz sonhar com a sétima arte. Parabéns Woody, para você os versos finais do poema do português que retratam o teu sentir: Tenho tanto sentimento/ Que é frequente persuadir-me/ De que sou sentimental/ Mas reconheço, ao medir-me,/ Que tudo isso é pensamento / Que não senti afinal.

     Desta vez, tiro o chapéu para o baixinho; e confirmo meus engasgos anteriores, pois fica claro que quando ele quer, sabe fazer cinema como poucos. Não vou exigir menos de Woody Allen daqui para frente; depois de assistir “A Rosa Púrpura do Cairo” há 25 anos, não pretendo esperar outro quarto de século para saborear seu bom cinema, sem ceticismos nem complexos. Woody, isto não é um pedido de desculpas, mas apenas um gentleman agreement! Uma reverência ao bom cinema – esse que você gosta, e sabe fazer. Mergulhe sem medo. Estou esperando o próximo filme.

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