Shirley du Boulay / Marianne Rankin: “Cicely Saunders”

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Shirley du Boulay/ Marianne Rankin: “Cicely Saunders”. Palabra. Madrid (2011). Pgs. 348.

     Eis uma biografia simples, objetiva e ao mesmo tempo intimista, da Dra. Cicely Saunders, a fundadora do movimento Hospice e dos Cuidados Paliativos. Nascida em Londres, em 1918, inicia seus estudos em Oxford, e se inscreve na Cruz Vermelha para ajudar nos serviços de enfermagem durante a Segunda Guerra Mundial.  Lá descobre a sua vocação de cuidar que norteia toda a sua vida.  Abandona a carreira de Ciências Políticas e filosofia e cursa enfermagem em ST. Thomas’ Hospital, instituição associada a grandes nomes, entre outros ao daquela que é o símbolo da enfermagem moderna, a também britânica Florence Nightingale.

Os frequentes problemas de saúde, com limitantes dores de coluna, restringem sua atuação como enfermeira e inicia sua dedicação como assistente social, sempre guiada pelo desejo de servir e ajudar os que sofrem. Mas repara que, somente com bons desejos e com afeto devotado, não consegue mudar as tristes condições dos pacientes terminais. Um conhecido, médico, lhe abre os horizontes: “Faça-se Médica. São os médicos os verdadeiros responsáveis do abandono que sofrem estes doentes terminais”. Cicely entende o recado, e parte para uma nova fase de estudos, com o sacrifício da trabalhadora incansável e persistente que sempre demostrou ser. Quando se forma médica tem quase quarenta anos.

O livro é rico em detalhes biográficos e congrega os variadíssimos personagens que formaram parte da sua vida. Não é o caso de resumir o que compensa ler com vagar. Mas nessa sucessão de fatos, há um elemento que destaca como pano de fundo permanente: o interesse real de Cicely Saunders pelos pacientes. As conquistas do seu trabalho, que hoje cristalizam na especialidade médica dos Cuidados Paliativos, nascem da alma da sua fundadora. Não é uma questão apenas técnica, mas verdadeiro envolvimento com os pacientes que vai além da cordialidade ou da simples compreensão. Cria-se como um arco voltaico entre o sofrimento do paciente e a ressonância que este produz nela própria de onde surge a faísca: vontade de cuidar, fazendo a diferença, sem perder nunca o profissionalismo. Cicely constrói os fundamentos do primeiro Hospice – St. Christopher, à base de perdas e dúvidas, sofrimento e angústia, lágrimas e afetos, todos eles padecidos na sua própria carne. E a fé em Deus, a dimensão espiritual –não propriamente religiosidade a favor de determinada confissão- como balsamo que sara, como arcabouço que sustenta todo o projeto. A dimensão da transcendência é elemento essencial no Hospice, e nos Cuidados Paliativos.

Não há como evitar a questão, tão comum no meio médico –e na academia- nos dias de hoje. “Devemos ou não envolver-nos com os pacientes?” A resposta pode ter muitas nuances e variações, mas a vida de Dame Cicely Saunders mostra que sem envolvimento –sem verdadeira empatia, que é muitas vezes sofrer com quem sofre- não há como praticar os Cuidados Paliativos com qualidade. Dos remédios para controlar a dor, da técnica de administrar as doses de morfina de horário sem esperar que a dor grite mais alto, se passa com naturalidade para a atitude de cuidar, e se mergulha no envolvimento: “A ideia de aceitar a morte quando sua proximidade é inevitável não equivale à simples resignação por parte do paciente nem ao derrotismo ou negligência por parte do médico. Evidentemente não se trata de dar nenhum passo que precipite sua chegada, mas para médico e paciente significa todo o contrário a não fazer nada. O paciente pode obter nesta etapa da vida mais fruto do que em nenhuma outra, convertendo-a em algo que lhe reconcilie e o complete. Isso é o que mais consolo trará para os familiares e lhes ajudará a recomeçar a vida normal”

Tudo é feito com alta competência, incorporando os avanços da técnica, porque St. Christopher é também um centro de pesquisa e de docência. “Nossa função consiste em transformar o caráter de um processo inevitável para que não seja considerada uma derrota da vida, mas uma conquista pessoal do paciente, algo positivo”. Foram os pacientes, com suas vidas, os que ensinaram à Dra. Saunders o caminho para cuidar com eficácia. Referindo-se a um dos seus pacientes iniciais, muito querido, confessa: “É possível viver uma vida inteira em poucas semanas; que o tempo é uma questão de intensidade, não de quantidade; que num entorno adequado e mediante um controle da dor que permita ao paciente ser ele mesmo, nossos últimos dias podem ser os mais valiosos; que existe um tempo de reconciliação que é capaz de trazer paz aos enfermos e consolo aos que choram”. A interação com o médico, quando está preparado para a função que se espera dele, é de fato terapêutica. Um paciente lhe disse: “Quando falo com a minha família do que me preocupa, fico na mesma; mas se lhe conto isso mesmo à senhora, sinto-me liberado”.

Também houve os que desculpavam o próprio descaso pela falta de tempo.  Assim, alguém lhe comentou que gastar tanto tempo com os pacientes não é possível quando há muito trabalho a fazer. Mal sabia o interlocutor –que atendia 90 leitos com a ajuda dos residentes- que a Dra. Saunders cuidava pessoalmente de 120. A resposta dela foi contundente: “O tempo não é uma questão de qualidade, mas de intensidade. Não lhe parece?”

A questão que se decorre a seguir é clara: como encontrar profissionais –e formá-los-  para esta tarefa tão especial?  Novamente Cicely nos indica os parâmetros de qualidade: “Não servem para trabalhar aqui os que têm resposta fácil para as perguntas sobre a vida e a morte que necessariamente surgem neste cenário, como também não servem os que não se enfrentam com estas questões. Os mais aptos são os que não pretendem saber, os que buscam respostas a essas perguntas sem tentar evita-las”.

Nem tudo são flores nesta biografia; apontam-se claramente os defeitos de Cicely Saunders, sem fazer questão de disfarça-los. Parece ser que tinha um temperamento duro, rápido, perfeccionista, que atropelava as pessoas. A doçura que invariavelmente demonstrava com os pacientes nem sempre aflorava na hora de tomar decisões, de cobrar responsabilidades, de exigir à equipe de trabalho. Sabia disso, se esforçava por melhorar; foi uma luta de por vida. Talvez porque sabia que “a eficácia é consoladora”.

Acabo o livro e a lembrança de um grande amigo vem à memória. Médico competente, atuante nos cuidados paliativos, foi quem me falou de Cicely Saunders por primeira vez. Também me revelou o processo da sua vocação. “Eu sou geriatra de formação. E não imagines que sempre pensei em dedicar-me aos cuidados paliativos. Simplesmente continuei cuidando dos pacientes quando pioravam. E quando olhava para os lados, buscando os meus colegas médicos, reparei que tinham desaparecido. Na hora crítica, quando não há aparentemente mais nada para fazer, os médicos desaparecem. Quer dizer, fiquei sozinho cuidando dos enfermos até o final. Não fui eu quem escolheu os paliativos; eles, ou melhor, os pacientes me escolheram a mim, fui eu quem sobrou”.

A medicina não é para qualquer um. Requer vocação. Assim de simples. Estaria na hora de pensar nas consequências que um chamado vocacional implica. Algo ao qual se dedica muito pouco tempo –se é que se dedica algum- nas universidades e na formação dos médicos. Se a medicina é altamente seletiva no recrutamento, os Cuidados Paliativos, do modo como a sua fundadora os desenhou, são para muito poucos. Uma difícil escolha que vai à contramão de uma tendência que parece ser a coqueluche do momento, uma moda que atrai multidões. Ai está um perigo enorme que pode minar na base esta atuação tão especial, tão necessária. As palavras de Cicely Saunders servem como guia para uma seleção apropriada na escolha dos recursos humanos. “Enquanto continuemos nos perguntando pelo sentido da nossa vida, criaremos um clima em que pacientes e famílias sentir-se-ão capazes de buscar a força necessária para enfrentar a crise da separação. Isso lhes custará muito mais se nos deixamos envolver pelas exigências diárias de trabalho e não concedemos espaço para descobrir as necessidades espirituais, que não buscam tanto respostas mas sim necessidade de ser escutadas. Temos que lembrar que o modo de ajudar é capaz de chegar aos recantos mais ocultos quando são necessárias poucas palavras, ou talvez nenhuma”. Está tudo dito.

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