Oscar Wilde: “O Retrato de Dorian Gray”

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Oscar Wilde: “O Retrato de Dorian Gray”. Clássicos Abril. São Paulo. 1981. 283 pgs.

     Os fóruns de humanismo em que ando envolvido têm sido extremamente úteis. Não posso afirmar isso por conta dos outros assistentes – cabe a cada um apreciar o valor agregado, como se diz hoje-, mas é justo fazê-lo em relação a mim mesmo. Embora na condição de coordenador, na ausência de esta oportunidade, dificilmente teria voltado sobre livros já conhecidos, ou refletido cuidadosamente ao compasso de leitura e, certamente, não teria escrito sobre eles. Escrever torna claro para nós mesmos aquilo que aprendemos; é como liquido que revela, pacientemente, os contornos das ideias que a leitura deixa no fundo da alma. Revela e fixa, esculpe-as de algum modo, permite a sua digestão, e passam a fazer parte de nós mesmos.

     Está ai o grande ensinamento destes eventos humanistas: escrever sobre o que lemos, dar vida às nossas reflexões como catalisador de aprendizado. Quem sabe este é o motivo das grandes lacunas culturais que contemplamos hoje: há possibilidades nunca antes sonhadas de possuir, on-line, verdadeiras bibliotecas de clássicos; as pessoas passam o dia lendo – e-mails, mensagens, links, comentários nas redes sociais, até livros no tablet– mas dificilmente param para refletir, e nunca o fazem para escrever. Resultado: água escorrendo sobre as rochas, pouco sobra, ignorância fantasiada de informação que de nada aproveita. Lembra aquela queixa clássica: onde está o conhecimento que perdemos na informação? Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Provavelmente no jejum de reflexão, na ausência da escrever. Muita da sabedoria das avós certamente arrancava de aqueles diários feitos com caligrafia encantadora, perfumes e lágrimas.

     Quando começamos e escrever acontece o que me acaba de ocorrer. Decolamos do sujeito em questão, para adentrar-nos numa multidão de ideias que pedem passo para se apresentar. O sujeito em questão, agora, não é um diário de avó, mas um quadro, um retrato: o de Dorian Gray. E o mestre de cerimônias é Oscar Wilde, um escritor tão genial como sui generis. Sempre espirituoso, irónico, fino, inteligente, sutil, cativante, incapaz de evitar epigramas contundentes, definitivos: “Hoje em dia as pessoas sabem o preço de tudo, mas não sabem o valor de nada”.

     Este é o seu único romance, pois escreve teatro, e poemas. Um romance que tem muito de pessoal –como veremos- e uma temática sempre atual, que nunca envelhece, pois, assim como Dorian Gray, o ser humano é sempre o mesmo, com variações sobre o mesmo tema que apenas afetam o retrato, nunca a personagem. O argumento é suficientemente conhecido. “Manifestava um desejo louco para que ele permanecesse jovem e o retrato envelhecesse. Para que sua beleza permanecesse jovem e o retrato envelhecesse. Para que sua beleza permanecesse imaculada, e o rosto, na tela, suportasse o peso de suas paixões, de seus pecados; que fosse a imagem pintada a encarquilhar com os sulcos do sofrimento, do pensamento, e ele a manter o desabrochar, a graça delicada de uma infância recém-consciente. Alterado ou inalterado, o quadro seria, para ele, o emblema visível da consciência. Seria para ele, por toda a vida, um guia, seria, para ele, o que o sacro é para uns; e a consciência, para outros; e o temor de Deus, para todos nós”.

     O processo que se experimenta na leitura muito se assemelha ao sofrido pelo jovem Dorian sob a influência perniciosa de Harry e de um livro que mudou a sua vida: “Você sempre gostará de mim. Para você, eu represento todos os pecados que jamais teve a coragem de cometer”. O tema da influência é assustadoramente atual. Movemo-nos em função da moda, do chavão que chega por wireless, em banda larga, com espectro viral que, sem percebermos, configura nosso próprio sistema operacional. Uma verdadeira manipulação contra a qual o único antidoto seria a reflexão, aquela característica que brilha pela ausência nos dias de hoje. “Influenciar uma pessoa é dar a ela a própria alma. Ela passa a não pensar com seus pensamentos naturais. As virtudes que possui deixam de ser, para ela, reais. Os pecados que comete, se é que existem pecados, são todos tomados por empréstimo. Ela se torna um eco da música de outrem, ator de um papel não escrito para ela”.

     O retrato, que vai se metamorfoseando, não mente. “O pecado sempre se inscreve no rosto dos homens, é impossível escondê-lo. As pessoas, às vezes, falam em vícios secretos. Isso não existe. O vício de um homem perverso sempre se evidencia nos contornos da boca, na inclinação das pálpebras, até mesmo no feito das mãos”. Algo que comprovamos diariamente –em outros e em nós mesmos- quando observamos o rosto próprio ou alheio e concluímos: “um homem de cara limpa, de cara lavada”, “não fui com a cara dele”. Temática muito bem abordada em artigo publicado neste espaço.

     O retrato que Dorian esconde no porão é metáfora da própria consciência que, nos dias de hoje, conseguimos driblar de outras maneiras. Algumas, semelhantes aos frívolos personagens de época de Wilde: “Levantam-se cedo porque tem muito que fazer, e vão dormir cedo, porque não têm nada em que pensar.” Fazer muito para pensar pouco. E, antes de tudo, manter a imagem, o perfil como se diz hoje nas redes sociais que, esse sim, permanece inalterado, enquanto a pessoa se deteriora por dentro. Uma situação antitética à descrita por Wilde: decompõe-se o sujeito, mas se mantém o perfil incólume. E esse fazer de conta –no retrato ou no perfil, pois o recado é o mesmo- acaba pagando as consequências com o tempo.

     Porque o tempo tudo revela: “A beleza o arruinara, a beleza e a juventude porque tanto suplicara. A beleza não fora senão uma mascara e a juventude uma zombaria. Teria sido melhor para ele que cada pecado tivesse acarretado a respectiva pena, correta, rápida, concomitante”. Quer dizer, não vale a pena acumular passivos na consciência –nem marcas no retrato- pois os credores sempre chegam de modo contundente. Para isso é necessário reflexão, o reconhecimento imediato dos erros, abrir a própria consciência com sinceridade, sabendo que o grande inimigo o levamos dentro: nosso orgulho. Ai está a contundente frase de Nietzsche, que já apontei em comentário de outro livro: “Fiz isto, diz a minha memória. Não, eu nunca pude ter feito isto, diz o meu orgulho, e permanece inflexível. Finalmente, é a memória a que acaba cedendo.”

     O retrato de Dorian Gray –as reflexões surgidas no fórum humanista que aqui recolho a modo de apontamentos- dá pano para manga. Uma ocasião única para um mergulho fundo no conhecimento próprio. A frio, sem tapumes, nem disfarces. Penso que para Oscar Wilde, escrever este romance foi também uma verdadeira catarse. É a conclusão que surge inevitável, quando se lê aquela obra tremenda que escreve desde a prisão, onde esteve dois anos confinado: De Profundis (Oscar Wilde: “A Tragédia de Minha Vida” (De Profundis). Ed. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 1964. 194 pgs.)  Eis a sua confissão pública: “Fui eu mesmo que destruí minha vida. Ninguém, por grande ou pequeno que seja, poderá perder-se a não ser por meio de suas próprias mãos. Para mim foi a arte uma realidade superior e a vida uma forma de ficção. Despertei a imaginação de meu século, fazendo-a envolver-me em mitos e lendas. Resumi em uma frase todos os sistemas filosóficos, e toda a existência em um epigrama. E tinha ainda a fazer muitas outras coisas. Mas abandonei-me a longos períodos de bem-estar sensual e vazio. Para me divertir fiz-me ocioso, dândi, árbitro da elegância. Rodeei-me de espíritos tacanhos e de espíritos mesquinhos. Delapidei meu próprio gênio e encontrei particular alegria em arruinar uma juventude que parecia eterna. (..) Cansado de vaguear pelas cumes, desci dos livres caminhos aos abismos, onde me precipitei à cata de novas sensações. O que para mim foi o paradoxo no mundo das ideias, foram as perversões no mundo das paixões. E, por último, converteu-se o desejo em moléstia ou em loucura ou ambas as coisas a um tempo. (..) Deixei de preocupar-me com a vida de meus semelhantes e gozei onde se me deparou o prazer e prossegui avante.”

     E, ainda, prorrompe num um grito sincero que serve de conselho para todo leitor de Dorian Gray; “Olvidei-me de que a mais recôndita de nossas ações quotidianas forma ou destrói o caráter e que, por consequência, teremos de bradar um dia do alto do telhado o que fizemos no segredo da alcova. Deixei, sem o advertir, de ser o piloto de minha alma. Para contrapeso, deixei-me dominar pelo prazer e vim parar nesta medonha ignomínia”. Dorian Gray com o retrato no porão rende os destroços de Oscar Wilde. A vida supera a arte. Mais um motivo para aprendermos, com a arte, a viver bem a vida. Para isso serve o humanismo. Não é pouco.

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