Clara Lejeune- Gaymard: “La dicha de vivir. Jérôme Lejeune, mi padre”
Clara Lejeune- Gaymard: “La dicha de vivir. Jérôme Lejeune, mi padre”. Rialp. Madrid. 2012.136 pgs
Chega às minhas mãos este livro pequeno, simples e encantador. Trata-se da tradução espanhola do original francês (La Vie est um bonheur. Jérôme Lejeune, mon pere), e não me consta que exista ainda uma versão em português. A autora, Clara Lejeune-Gaymard, é a caçula das filhas do médico e cientista francês Jérôme Lejeune, descobridor da alteração genética conhecida como Trisomia 21, responsável pela síndrome de Down.
O livro não é propriamente uma biografia do Professor Lejeune, mas sim um perfil, rápido e singelo, costurado com as lembranças que a filha do cientista tem do seu pai, agora sedimentadas com a perspectiva dos anos. Certamente, a melhor apresentação do livro é a que a editora recolhe na contracapa, entressacada de um relato comovente. “Um popular programa da TV francesa –Dossier de l’ecran- transmite um debate sobre o aborto no caso dos descapacitados detectados antes do nascimento. Os portadores da Trisomia 21 são, na época, os únicos claramente identificáveis. Na manhã seguinte, chega ao consultório um menino com síndrome de Down, que chora e se abraça no pescoço do Professor Lejeune. A mãe da criança explica que o menino assistiu ao programa da noite anterior. Agora chora desconsoladamente e diz a Lejeune: ‘Querem matar-nos. Tens que nos defender. Nós não podemos porque somos débeis’. A partir desse momento –relata a autora- meu pai começara uma luta incansável pela defesa do não nascido. É consciente de tudo o que perderá na batalha, pois sabe, melhor do que ninguém, até onde terá de chegar.”
O prestígio inegável que Lejeune conquistou como cientista colocou-o sem hesitar ao serviço da vida e da defesa dos descapacitados. Foi um compromisso de por vida, e não se importou com as consequências do desgaste que teve de sofrer por conta dos constantes ataques de ideologias abortistas e eugênicas, travestidas de cientificismo. Sendo um cientista de imensa envergadura, nunca precisou invocar argumentos morais ou religiosos –mesmo sendo um homem de fé- para defender a vida. As evidências científicas que apresentava eram suficientemente contundentes para sustentar sua apologia da vida, e o amparo dos deficientes mentais. “Se a Igreja, Deus não o permita, consentisse no aborto eu deixaria de ser católico” – chegou a afirmar.
A vida do Professor Lejeune foi uma alternância de luzes e sombras; o brilho das descobertas científicas rodeado das críticas proveniente dos setores que esgrimiam ideologias contrarias à dignidade da pessoa, da qual o nascituro é um representante genuíno. “Nós, seus filhos –conta a autora- contemplamos como se escrevia cada dia esse destino, essa vida cortada em dois. Quando crianças, nosso pai foi um homem honorável. Na adolescência converteu-se num apestado, culpável do delito de opinar”.
Numa reunião na ONU, abre-se o debate sobre o aborto com os argumentos habituais (mortalidade materna dos abortos clandestinos, o lastro que supõe cuidar de um ser com malformações, evitar sofrimentos psíquicos). Lejeune –somente ele- toma a palavra para referir-se ao carácter único dessa criança cuja vida está em risco e cuja identidade nunca será substituída por outro. E afirma: “Esta instituição para a saúde converteu-se numa instituição para a morte”. Aquela noite escreve à sua mulher dizendo: ‘Hoje perdi o Prêmio Nobel’. Lejeune tinha consciência de que não teria apoio para a verdade científica que tinha descoberto. O fato de ser católico e de desenvolver postulados científicos compatíveis com a fé, faziam com que essa verdade fosse rejeitada.
As minhas lembranças pessoais do Professor Lejeune não se podem comparar às recordações que a sua filha recolhe neste livro. Até porque se reduzem a uma única ocasião: uma conferência na Faculdade de Medicina da USP, numa noite na década de 80. Não lembro com detalhe do que falou, num inglês perfeitamente compreensível, durante quase duas horas. Recordo sim, que as propostas científicas se combinavam com relatos de tremendo bom senso. Lejeune propunha como desafio da ciência aprender a desligar o cromossomo extra, como se fosse um defeito de fábrica que atrapalha o funcionamento e impede a expressão total da pessoa. E brincava quando dizia que somente os homens se juntam para decidir o que é um ser humano, sendo que ele nunca tinha visto, num zoológico, macacos e outros animais reunirem-se para decidir sobre a sua própria condição.
De uma coisa lembro com nitidez, pois foi algo que me marcou: o seu sorriso. Era um homem que transmitia paz. Sabia que os seus argumentos, apresentados de modo elegante e cordial, seriam objeto de patrulhamento ideológico. Mas pareceu-me não importar-se com isso. Seguia a sua ciência e a sua consciência, e era feliz. Transitava em outro plano, naquela dimensão do homem que vive em paz com a própria consciência, para quem a opinião alheia é simples detalhe sem importância. Agora, lendo as lembranças da sua filha, vejo que a impressão que tirei daquele encontro não estava errada. O Professor Lejeune incarnava verdadeiramente Le bonheur de vivre, a tremenda felicidade de viver, de colocar a própria vida ao serviço da vida dos outros.