Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas
Machado de Assis: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Abril. São Paulo, 1971. 173 pgs.
Os fóruns de humanismo com universitários –essa metodologia tão antiga, que parece estar sendo redescoberta, a formação pela leitura dos clássicos- me conduziram até Machado de Assis e seus personagens maravilhosamente perfilados. Seria interessante recolher aqui os comentários dos jovens universitários, que surgem como faíscas no encontro de Brás Cubas com a própria reflexão. Mas não é caso, até porque é processo que cada um deve experimentar de modo pessoal e intransferível.
Faíscas que podem provocar um incêndio, quando há disposição interior para refletir, e espelhar o próprio atuar no gabarito preciso que o clássico brasileiro nos oferece. Quer dizer, quando não se deixa adormecer a consciência na sonolência de ir tocando a vida. A advertência vem da própria personagem em revisão acurada da vida que levou. “Preferi dormir, que é um modo interino de morrer”. O adormecimento requer conforto suficiente para evitar que os incômodos da consciência cutuquem e nos despertem para a realidade. “Virgília era o travesseiro do meu espírito, um travesseiro mole, tépido, aromático, enfronhado em cambraia e bruxelas. Era ali que ele costumava repousar de todas as sensações más, simplesmente enfadonhas, ou até dolorosas(…)Escrófula da vida, andrajo do passado, que me importa que existas, que molestes os olhos dos outros, se eu tenho dois palmos de um travesseiro divino, para fechar os olhos e dormir? (….)Para mim era aquilo uma situação nova do nosso amor, uma aparência de posse exclusiva, de domínio absoluto, alguma coisa que me faria adormecer a consciência e resguardar o decoro”.
Brás Cubas tinha nos braços da amante o expediente para deixar de refletir, para silenciar a consciência. Hoje, os recursos para esquecer são múltiplos, habilmente disfarçados na correria da vida que nos toca viver. Trabalho, solicitações variadíssimas, desafios profissionais, multidão de problemas a resolver, enfim, a globalização da inconsciência que engorda a conta corrente, o curriculum e que, naturalmente, não deixa tempo para abordar os temas que de verdade importam na vida de cada um. Uma metódica insistência em abortar a reflexão que leva, no fim das contas, a pactuar com a mentira. “A veracidade absoluta era incompatível com um estado social adiantado; a paz das cidades só se podia obter à custa de embaçadelas recíprocas”.
A educação desde os primórdios é, sem dúvida, o terreno que fomenta –ou elimina- a atitude reflexiva, o conhecimento prático do bem o do mal, que alimenta a fibra moral da criança. O exemplo constante, um não cansar-se de ilustrar o que é certo e errado nas vivências quotidianas, são elementos imprescindíveis na formação moral. Como dizia um velho amigo, “os joelhos da avó são a melhor escola de ética”. Brás Cubas careceu dessas advertências, e no leito de morte –de pós-morte, para ser exato- o reconhece. “O menino é o pai do homem. Afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la. O que importa é a expressão do meio doméstico, e essa fica aí indicada- vulgaridade de caracteres, amor das aparências rutilantes, do arruído, frouxidão da vontade, domínio do capricho, e o mais. Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor”. Uma explicação que não é justificativa, mas simples esclarecimento. Até porque não se desculpa da própria culpa. “O vício é muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede que a virtude seja uma flor cheirosa e sã”.
As Memórias Póstumas são uma advertência para todo leitor –que naturalmente está vivo- que se depara com elas. Um apelo para revisar a própria vida, reconhecer os erros, corrigir o rumo. “Leitor ignaro, se não guardas as cartas da juventude, não conhecerás um dia a filosofia das folhas velhas, não gastarás o prazer de ver-te ao longe na penumbra(…) É isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. (…) Cada estação da vida é uma edição que corrige a anterior”.
É preciso ganhar o hábito de examinar a própria atuação, e não apenas in articulo mortis mas de modo quotidiano. Sem medo, pois o próprio medo é já sinal de que se pactua com a mentira. “Porque uma mulher bonita olha mais vezes para o espelho, senão porque se acha bonita, e porque isso lhe da certa superioridade sobre uma multidão de outras mulheres menos bonitas ou absolutamente feias? A consciência é a mesma coisa; remira-se a miúdo, quando se acha bela. Nem o remorso é outra coisa mais do que o trejeito de uma consciência que se vê hedionda”.
É sempre uma experiência enriquecedora o encontro com os clássicos, em leitura pausada, calma, com tempo para digerir e refletir. Quando, como neste caso, é possível ler os clássicos no idioma original, apuram-se as nuances da linguagem que delineiam com precisão os personagens. Voltamos sobre as historias conhecidas, com a coragem de quem não tem medo de se olhar no espelho –como a mulher bonita. É possível que lá nos aguarde alguma surpresa, talvez sustos, fealdades ocultas. Mas, em definitiva, é lá que se encontra a força para mudar o rumo. Esse é o cerne da verdadeira educação humanística.