Gustavo Corção: “Lições de abismo”
Gustavo Corção: “Lições de abismo”. Ed. Agir. São Paulo. 1976. 265 pgs.
Estava com vontade de reler Lições de Abismo. Deixou-me marca no seu dia, há mais de 25 anos. Agora, convocado para coordenar as reuniões literárias mensais surge a oportunidade de voltar sobre páginas que a correria do dia a dia não oferece o espaço que merecem para saboreá-las de novo. Lá encontro muitas das ideias que venho usando nestas quase três décadas, plasmadas em prosa elegante, clara, direta, sugestiva. E, nos comentários dos assistentes á tertúlia literária, novas iluminações sobre temas essenciais. Porque o livro de Corção –seu único romance- é mesmo uma lição de abismo, profunda. Na verdade, o romance é mera desculpa para filosofar em voz alta. Uma filosofia que chega junto de nós, em conversa de boteco, impregnada de sabedoria do quotidiano. “O homem precisa mais de assunto do que de pão. E como as mais irrespiráveis abstrações tem sempre raiz no que se vê e no que se ouve, é preciso de tempos em tempos ir esfregar o eu-dormente nas boas coisas que acontecem, para evitar as cãibras da alma”.
Lembrava bem do argumento, quer dizer, de desculpa para arrancar este ensaio em forma de romance. O protagonista recebe do médico a notícia que teme: está com câncer. Seu tempo é limitado, entra na contagem regressiva, dispara-se a reflexão. Não recordo se na época que li chamou-me a atenção as digressões para com os médicos. Hoje, com quase 35 anos na profissão, não tenho como deixar passar. São precisas, definitivas: “A mais angustiosa suspeita de qualquer doente é justamente a de que não estão dando todo o particular valor ao seu particularíssimo caso. Seu medo é que o médico, ainda que não se equivoque, fique perdido no vago domínio das generalidades. O doente, para o médico, quer ser um filho único, quer ser um namorado. Quer ser concreto”.
E junto com os médicos, são contemplados todos os que estão à volta do sofrimento, circunstância incômoda que procuramos evitar a tudo custo. Talvez porque nos lembra da nossa própria finitude. Pensar nos outros, sim; mas com medida, não vá ser que eu me complique a vida. “Descubro como é fácil apiedar-se dos outros. A gente chega, dá corda aos bons sentimentos, e depois vai-se embora, assim que se visitam os doentes. Cumpre-se o dever, tem-se pena, e vai-se embora. O doente fica. O doente vê o mundo numa perspectiva diferente do visitante. Ele vê um mundo que chega, que se debruça com fácil misericórdia de dez minutos, e que depois se despede. O doente fica; por definição é alguém que fica. Da cama ele vê o visitante voltar-se ainda uma vez, na porta, com votos de melhora; depois vê o visitante de costas, lampeiro, ágil; ouve seus passos na escada, alguma frase de último conforto jovial para a pessoa da família, que agradece; por fim, range o portão, bate a porta do automóvel, arranca o motor…e foi-se embora a misericórdia”.
Mas, sem dúvida, o grande recado que Corção desenha nesta obra é a necessidade de conhecer-se. Algo tão accessível, como difícil; não por complexidade técnica, mas porque implica desnudar a verdade e, consequentemente, alavanca a obrigação de se corrigir, de mudar. “Não há maior fragilidade do que essa da pessoa que sobre si mesma se engana. Mormente quando esse engano‚ é arquitetado e sistemático. Consegue-se tudo, facilmente, da pessoa que vive representando um papel de sua invenção. Basta entrar no jogo. O ator solitário logo se anima quando um outro pega a sua deixa”.
Nos dias que vivemos, a falta de reflexão está habilmente disfarçada de ativismo, de conexões globais, de redes sociais, de uma celeridade epidêmica. Somos pessoas conectadas com o mundo…. e desconectadas de nós mesmos, da nossa própria intimidade. Difícil descrever melhor do que Corção o faz, numa passagem da qual tomei nota há muitos anos: “Acho belíssima essa voracidade do homem, e essa capacidade de trazer para casa, para a sala de estar, sob as espécies do assunto, as guerras, os terremotos e os ciclones. Por outro lado, porém, acho lúgubre essa avidez de engrossar por fora a ganga do eu, numa capitulação da maior das aventuras, que é a conquista de si mesmo, a descoberta de sua própria alma. Há duas iluminações na face de um Marco Polo: de um lado o brilho ensolarado da boa aventura; de outro a verde lividez do homem que foge de si mesmo”.
Uma solidão tremenda no meio de uma multidão fervilhante. Descrição poderosa, cruel, porém precisa. “O coletivismo de que morre o mundo, e de que vivem os novos aventureiros, é a teoria do ajuntamento sem unidade; é a tentativa de encontrar significado na multidão, já que não se consegue descobrir o significado de cada um; a conspiração dos que se ignoram; a união dos que se isolam; a sociabilidade firmada nos mal-entendidos; o lugar geométrico dos equívocos (…) Os homens que perderam o segredo da alma ora se isolam, ora se aglomeram. A história do homem é uma dança em compasso binário. O erro é um pêndulo. E assim o mundo vai trilhando seu sinuoso delírio. Enquanto dura um certo contentamento do egoísmo, os homens conseguem viver numa esportiva competição dividindo a sociedade em compartimentos estanques e chegam a formular, e viver uma doutrina do individualismo apenas temperada, na inevitável convivência, por um acordo extrínseco, por um contrato social. Quando porém se esgota a euforia dessa espécie de atomização social, e nas almas pesa a solidão, correm todos a se amontoar, a encher as praças públicas levantando ora o braço direito, ora o esquerdo, em sinal de congraçamento; e no morno contato dos ombros, dos peitos, das nádegas, no tépido aconchego de curral, os homens coletivos sorriem reconfortados, com um sorriso de rua, felizes de terem escapado, por um triz! do pesadelo horrível de terem almas”.
Corção insiste na necessidade da reflexão para defender-nos da frivolidade, uma espécie de doença que suprime a imunidade e nos expõe a todos os ventos dos modismos, condenando-nos à infantilidade da inexperiência. “Todos nós sofremos na vida certos golpes psicológicos, um susto, uma surpresa maravilhada, uma descoberta dolorosa, que deixam em nós um resíduo. Ora, tudo em nossa vida vai depender da possibilidade de assimilação desses resíduos. Se conseguirmos dissolvê-los na substância de nossa pessoa, então esses sinais de nossas experiências serão fecundos. Haverá uma experiência propriamente humana, um lucro. Se eu transformar em sangue, em alma, as pedras de meu caminho, terei doravante antenas sensíveis que antes não possuía, serei capaz de intuições que antes me faltavam. Farei versos, descobrirei novos planetas, ou terei simplesmente um harmonioso equilibro que me permitirá a dilatação da vida. O frívolo, ao contrário‚ é aquele em que o resíduo das experiências encaroçou. Têm pontos sensíveis, botões, teclas de comando, estão movidos de fora para dentro, como os mecanismos. Aperta-se um botão e ele diz “bom dia” encarquilhando os músculos da face. Aperta-se outro botão e ele faz um discurso se é ministro, ou atira os cabelos para trás, se é moça de vinte e cinco anos”
Esta reflexão forçada do protagonista, no desfolhar do pouco tempo que lhe resta, confere-lhe um sadio senso de realismo. E expõe, raiando o ridículo, as surpresas que o mundo atabalhoado leva quando se defronta com o sofrimento e a morte. Algo normal, diário, mas desconcertante quando nos atinge de perto. “E eu, estupefato, olhava a cena, e admirava-me que se admirassem tanto. O fenômeno mais trivial do universo, personalizado, tomava proporções de maravilha. E todos -uma gente cansada de ir a missas de sétimo dia- todos se admiravam do cadáver do Ferraz, como se estivessem a contemplar uma aurora boreal”. São experiências vividas que encaroçaram, que não fizeram crescer. Como tantas que contemplamos diariamente.
Uma esplêndida leitura que requer tempo para saborear, para pensar. E tomar notas. E voltar sobre as páginas, nem que seja para degustar o belíssimo e elegante uso de língua portuguesa. Sem pressa, como numa conversa de bar. A pressa, inimigo mortal da reflexão –uma pressa desejada, como já advertimos- que Gustavo Corção incarna até no modo de tomar um café: “Antigamente, o café‚ era lugar de passatempo vadio. Por um tostão alugava-se um camarote para o espetáculo da rua, ou instalava-se por meia hora uma tertúlia literária. Hoje, com a generalização do serviço a infusão perdeu a nobreza que tinha, e que consistia precisamente em servir de pretexto a coisas mais altas. O café‚ era secundário, era subordinado, mas ha certas subordinações que conferem maior dignidade que a autonomia. Hoje o café é autônomo. Toma-se por ele mesmo, com a frieza racional e funcional com que se ingere uma laxante ou um analgésico. Toma-se um café, egoísta, solitário, vertical”.
Carecemos dessa liturgia do café. Pode ser um bom começo para mergulhar na aventura da reflexão, que incorpora experiências, que confere realismo, que permite aproveitar as lições de abismo que a vida nos oferece na simplicidade do quotidiano.