Uma Boa Mentira: Virtudes humanas em estado puro. Sem vírgulas.
The Good Lie. USA. (2014). Diretor: Philippe Falardeau. Reese Witherspoon, Corey Stoll, Sarah Baker, Sope Aluko, Sharon Conley, Mike Pniewski, Arnold Oceng, Clifton Guterman, Ger Duany, Emmanuel Jal. 110 min.
Uma lufada de ar refrescante. Imprevista. Tinha este filme nos meus arquivos, vários meses esperando. Algo tinha lido em alguma crítica: ativista americana que ajuda refugiados sudaneses. Mais do mesmo, pensei. E deixei esperando. Um dia –sempre é desse jeito- , sem pensa-lo muito (aliás, parece-me que tinha previsto assistir outro filme), coloquei-o na tela do computador, talvez até por engano. E deixei correr. Vejo jovens africanos embarcando de um campo de refugiados para América. E a seguir, em flashback, a explicação conveniente.
Imediatamente, conforme as lembranças dos protagonistas desfilam na tela, a minha memória evoca outras paralelas, vindas de um livro que li há alguns meses. Correr para viver. A história de um refugiado sudanês, que acaba se transformando em atleta olímpico em USA. O livro é sua história, e o débito que com justiça e com elegância paga a todos os que lhe ajudaram. Aqui os protagonistas são outros, não parece que tenham aptidões especiais como o corredor do livro, mas evidentemente o marco histórico é o mesmo. Os meninos perdidos do Sudão, órfãos durante a guerra civil de 1983 que assolou o pais e emigraram para os campos de refugiados do Quênia. No final dos anos 90 começa o êxodo facilitado pelos Estados Unidos, que através de organizações variadas, acolhe os órfãos sudaneses. Até o 11 de Setembro, onde o processo se interrompe, por motivos de segurança. O filme –como o livro- conta uma história real, e os atores são realmente emigrados sudaneses, ou filhos daqueles. Argumento simples, atitudes humanitárias, enfim, um capítulo da história humana que carrega lamentos pelas barbaridades perpetradas e louvores para os que tentaram minimizá-las.
Mas a força do filme –pelo menos o que me impactou- não esta ai, mas nas entrelinhas. São as atitudes dos africanos as que esbanjam virtudes. O tempo todo. Durante a massacre étnica, nos tempos que passam no campo de refugiados e, com destaque, na sua chegada a USA. Até parece que são pessoas de outro planeta pelo modo, simples, franco, direto, como se comportam. Lealdade, afeto, generosidade distribuída sem medida. Elogios aos policiais que mantém a autoridade, porque no entender deles –na cultura africana- são pessoas que estão ao serviço da sociedade. Compartilhar com quem não tem, porque é assim que eles foram criados, não concebem outro modo de viver. Integridade a prova de bomba, simplicidade que lhes permite apreciar o que para outros passa desapercebido. E uma amizade temperada pelo sentimento de lealdade, de honra, que ultrapassa as categorias vigentes. A boa mentira, que dá titulo ao filme, é importada de um romance de Mark Twain, onde um dos protagonistas se faz passar por outro, para ajudá-lo, arcando com o débito que o beneficiado tinha em conta. Gente de outro planeta? Ou somos nós os que mudamos e arrastamos nessa mudança saturada de mentira, corrupção e deslealdade os cacos deste mundo nosso?
Virtudes em estado puro. Esse foi o resumo que cristalizou na minha mente, enquanto desfilavam na tela os créditos finais. E ao tempo, lembrei de uma conversa singular, acontecida numa das muitas reuniões humanistas nas que ando envolvido. Recordo-a como a reunião das vírgulas. Em teoria, todos concordamos que se deve viver a honestidade –ou a sinceridade, a lealdade, e por ai afora- , mas há situações onde…..O “mas”, golpe adversativo, costuma ser precedido por uma vírgula. A vírgula, que fornece um ponto de inflexão à virtude, é o começo do descaminho. Sim, tudo isto é muito importante, mas….. Ai está a vírgula. Como esclarecendo: no meu caso, nesta situação, em tais circunstâncias, …..E, com a vírgula segue-se a desculpa para eximir-se da atitude virtuosa.
Na vírgula damos entrada aos exemplos –maus exemplos, entende-se- que outros dão e que parecem desculpar-nos das nossas obrigações. Na vírgula se desbota a virtude, perde cor e atrativo. E como nunca foi mais atual aquele ditado de que quem não vive como pensa, acaba pensando como vive, construímos toda uma antropologia da vírgula, que se veste de questões culturais, modernas –ou pós-modernas- desculpas eruditas para fugir do cumprimento do dever. Integridade? Compromisso? Lealdade? Sim, de acordo, mas….E lá vem a vírgula, confortante e salvadora. Impossível não recordar aquele fato que contam ocorreu com Alexandre Dumas, o filho. Chegou a uma reunião social e uma das damas espetou-lhe: “Deve ser muito difícil para o senhor ter um pai com costumes tão licenciosos como o pai do senhor”. Parece que a fama de bon vivant do Dumas pai era pública. Mas o interpelado respondeu-lhe com imensa calma: “Nada disso, minha senhora. Se ele não me serve como exemplo, funciona bem como desculpa”.
A reunião das virgulas ficou famosa. Lembro que alguns dias depois recebi um e-mail de um dos participantes, comentando um assunto profissional –por certo, de modo muito competente- e desculpando-se por não ter feito ainda melhor. “Sei que você não gosta de vírgulas, afirmava no final”. Não é uma questão de gosto, mas de coerência. Quando se permite que as virgulas tomem conta, as modulações e orações subordinadas acabam apagando a sentença principal.
Os atores deste filme não são gente de outro planeta. São humanos, como nos, mas sem vírgulas. E ai minha imaginação voo para outro livro que também li recentemente e que comentei neste espaço, o Caçador de Pipas. Recomendo a leitura do comentário –eu mesmo acabo de reler o que escrevi- porque é um complemento ao tema das vírgulas. Atrai-nos o exótico, emociona-nos a amizade, a lealdade destes seres longínquos –do Sudão ou do Paquistão- e até nos arranca lágrimas. Mas os deixamos lá, em outro planeta, porque permitir a entrada no nosso provocaria uma enxurrada de reflexões, e vai ver que nos pega de calça curta.
A maldita lealdade inabalável do protagonista do Caçador de Pipas, a amizade íntegra do sudanês da Boa Mentira, são uma bofetada para a nossa sociedade medíocre. É sabido o pouco espaço que as noticias dos países africanos ou asiáticos que estão no terceiro (ou quarto?) mundo, têm nos meios de comunicação. Dizem alguns que talvez porque não são relevantes para a economia e para os destinos do poderoso ocidente e de quem corta o bacalhau. Atrevo-me a pensar que há talvez outros motivos muito mais perigosos: vai ver que o confronto com essas vidas simples, diretas, repletas de virtudes em estado puro, sem vírgulas, nos incomodaria sobremaneira. Sim, uma bofetada; ou, pelo menos, uma luva que nos é jogada na cara, para enfrentar o duelo e resgatar uma vida digna, sem vírgulas, e tomar posse real do nosso planeta, em solidariedade de virtudes com quem tem tanto para nos ensinar.
Comments 1
Muito interessante. Vou assistir esse filme.