Natalia Sanmartin: “O despertar da Senhorita Prim”
Natalia Sanmartin: “O despertar da Senhorita Prim”. Editora Quadrante. São Paulo. 2016. 315 pgs
Chega às minhas mãos este livro, cortesia da Editora Quadrante que me solicita uma opinião sobre o romance. A autora, uma espanhola jornalista especializada em temas econômicos, surpreende o mercado editorial que, conforme vejo na internet, disputa os direitos autorais deste seu primeiro romance. Evidentemente, em se tratando de um romance de uma mulher para as mulheres (leio também que a escritora é uma defensora de Mulherzinhas, a obra de Louisa May Alcott, o que fica evidente na leitura do romance) após lê-lo, sinto a necessidade de colocar em pauta de discussão com as minhas colaboradoras da Tertúlia Literária Mensal.
A Tertúlia Literária Mensal, desta vez com a participação de 25 pessoas, a maioria senhoras de idade respeitável e alma jovem, é o gabarito para apreciar o impacto do livro. Encantou todo o mundo. Surgem os temas em cascata de opiniões: identifiquei-me com ela, quer controlar tudo e, sabemos por experiência, que a vida -e sobre tudo as pessoas- não se controlam. A necessidade de espaços de formação em fogo lento, como a comunidade que tem tempo para tomar chá, conversar, entender os outros e entender-se a si mesmo. Olhar para os demais, sair da visão fechada e egoísta de “quem somente olha para o próprio umbigo”. Conhecimento próprio: afinal para que eu estou no mundo? E, o grande protagonista que pulsa silenciosamente por trás de cada uma das páginas do livro: o tempo! O uso do tempo, e a virtude necessária para trabalha-lo: a Paciência. A paciência é “o amor que se faz tempo”, em palavras de Von Balthasar, e “a forma quotidiana do amor”, em frase lapidaria de Ratzinger. Paciência com os outros, e paciência conosco mesmos, em atitude desprendida, sem carências que mendigam gratidão como esmola pelas esquinas da vida. Magnanimidade, sentido de transcendência, generosidade alegre. Saber esperar, sem ansiedades nem imediatismos.
A Senhorita Prim, nossa protagonista, é uma bibliotecária, deslocada do mundo em que vive, porque se sabe possuidora de uma sensibilidade diferente. “Eu costumava pensar que eu tinha uma sensibilidade própria de outro século estrava convencida de que tinha nascido no tempo errado e de que por isso me incomodava tanto a banalidade, a feiura, a falta de delicadeza. Acreditava que essa nostalgia tinha a ver com o desejo de uma beleza que já não existe, de uma época que um belo dia nos disse adeus e desapareceu.”. Toda uma figura; fina, culta e delicada, que vai parar num cenário surpreendente, uma pequena vila onde todos os valores que ela sempre cultivou parece que se encaixam.
Lá encontra-se com personagens pitorescos, encantadores. O professor cuja única intenção é que “as crianças possam um dia tornar-se tudo o que a escola moderna é incapaz de produzir”. O pensador que aponta: “Já não encontramos tempo para sentar-nos a uma mesa para falar sobre o divino e o humano. E não só não encontramos tempo, mas também não sabemos fazê-lo”. E uma série de mulheres fascinantes, repletas de predicados femininos, que exercem com uma serenidade invejável. “Possuía esse encanto indefinível das pessoas que calam mais do que dizem. A senhorita Prim sempre havia tido a sensação de que esse tipo de pessoa contava com uma grande vantagem sobre as outras. Nunca diziam inconvenientes, não ficavam pensando tolices, nunca tinham de se arrepender de suas palavras ou de matizar seus comentários”
A senhorita Prim entra em conflito com essa simplicidade que a desarma. É verdade que é uma mulher que aprecia os detalhes. “Ela acreditava no valor das pequenas coisas. O primeiro café da manhã bebido em sua xícara de porcelana de Limoges. A luz solar que se infiltra pelas venezianas do seu quarto. As leituras do verão interrompidas por um cochilo, a expressão dos olhos das crianças quando contam algo que acabem de aprender. As pequenas coisas constroem as grandes, é claro”. E, também é verdade que sintoniza com as personagens da pequena vila de Santo Irineu de Artois, mas as atitudes deles a desafiam com uma atitude provocadora. Porque uma coisa é a teoria do que a gente almeja, e outra ver a prática desses valores incarnados em alguém. Daí adverte-se o tamanho do abismo que separa a teoria da prática. E, naturalmente, surge o incomodo: “Não aprecio o que não posso dominar”, porque a nossa protagonista desprezava o que secretamente temia nunca chegar a obter.
Quer controlar seus sentimentos, e percebe que não é tão fácil. “A bibliotecária que não era propensa a romantismo surpreendeu-se consigo mesa ao pensar quanto um sorriso inesperado pode iluminar um quarto escuro”. E nos diálogos com o professor, sempre calmo e sorridente, mas que se constitui em “alguém irritante, que sabia torcer os argumentos até extremos inverossímeis e levar as discussões para terrenos pantanosos que a faziam sentir-se insegura e ridícula”. A senhorita Prim -uma rebelde do mundo convencional e pós-moderno- procura a beleza, o clássico, a cultura que salva da barbárie atual. Mas custa-lhe entender que essa busca ultrapassa o seu controle.
O despertar da senhorita Prim é uma viagem interior, repleta de surpresas e de necessárias renuncias. Uma viagem que excede os controles e as ansiedades, e os esquemas elaborados com perfeição que se desmontam ao contato com a simplicidade da vida que, em palavras da canção, é aquilo que te acontece enquanto estás fazendo planos. “O tempo parecia estender-se indefinidamente quando fazia as coisas corretamente. Congelava-se, parava abruptamente como um relógio sem corda. E então as pequenas coisas, as coisas necessárias, até as coisas rotineiras, se tornavam obras de arte simples no fim do dia”.
Uma viagem feminina, repleta de recados tremendamente realistas, como este diálogo encantador:
-Quando for mais velho e vir uma mulher chorar, lembre-se de que o melhor que pode fazer é não fazer absolutamente nada- disse a senhorita Prim.
-Isso é muito fácil -disse o menino
-Fácil? Espere quando crescer. Não há nada mais difícil.
Uma aventura de compreensão, de conhecimento próprio e alheio, que leva a entender que são as diferenças os que nos enriquecem, porque “é a diferença e não a igualdade o que alimenta a admiração entre duas pessoas. ” Um livro, enfim, de leitura necessária. E não somente para mulheres.