Lembranças de um amor eterno: uma avalanche de conteúdo rebatendo a banalidade da comunicação
(La Corrispondenza), 2016. Diretor: Giuseppe Tornatore. Música: Ennio Morricone. Intérpretes: Jeremy Irons, Olga Kurylenko, Simon Johns, James Warren.116 min;
As tais lembranças de amor eterno é mais um caso desastroso de tradução doméstica. Por que não manter o nome original italiano em tradução literal -embora o filme seja falado em inglês- A Correspondência? Mania de inventar moda, e de colocar em risco algo que não te pertence, e que pode desestimular a assistir este filme especial. Um filme dirigido por Tornatore, com música de Ennio Morricone, e interpretado por Jeremy Irons é algo que, no mínimo, é preciso ver. Um filme em inglês, mas com alma italiana. Daí a importância do título, que forma parte de todo o pacote, ou melhor, da obra de arte.
Um título peculiar, simbólico, representativo de um filme repleto de surpresas. Um verdadeiro mano a mano -nada mais lógico em se tratando de uma correspondência- entre a atriz ucraniana, que segura com pulso mais de 70% das cenas, e o ator britânico que aparece com ritmo regular… na tela do computador! Estender os comentários sobre o argumento seria colocar em risco o filme, já ameaçado pela infeliz tradução do título.
Mas as reflexões que destilam são muitas e apetitosas. Temos aqui um elogio rasgado aos recursos técnicos de comunicação moderna: mídia eletrônica, redes sociais, e-mails, mensagens por celular, e muitos outros. E todos eles comandados por um velho professor de astronomia, alguém profundamente humano, com uma cultura notável, experimentado na vida, que sabe e gosta de viver bem. Vale a pena entender este aparente paradoxo, porque hoje critica-se dos velhos que não estão atualizados na tecnologia moderna, que lhes custa acompanhar os próprios alunos -uma geração que parece nutrida com aplicativos dissolvidos no leite materno.
Um paradoxo que, na verdade, não existe. O que Jeremy Irons faz nas aparições na tela do computador -ou quando acusa presença por outros recursos- é um maravilhoso exemplo de conteúdo: quando há densidade e substância naquilo que se comunica, os recursos inovadores tornam-se extremamente úteis. Imaginemos, por exemplo, o que Cervantes ou Shakespeare no século XVI, Tomás de Aquino no XIII ou Agostinho de Hipona no V, poderiam ter feito se dispusessem de um computador. Ou o Cardeal Newman, que escreveu mais de 30 mil cartas, teria feito com os e-mails. É um exercício de imaginação interessante, que raramente as pessoas fazem, embora admirem toda a produção literária destes e de tantos autores…com tão poucos recursos.
Na verdade, o importante seria perguntar-se quais são os recursos para produzir conteúdo na comunicação. Não precisa ser Hamlet, nem D. Quixote, mas sim algo que tenha começo, meio e fim. O relato de uma experiência, algo que em tempos não tão distantes as pessoas costumavam contar-se nas cartas, ou uma simples conversa à mesa de um bar, ou em família, ou entre amigos.
Vivemos momentos de uso compulsivo de redes sociais e recursos de comunicação, para não comunicar absolutamente nada. Relacionam-se com multidões sem ligar o mais mínimo para ninguém em particular. Um uso descaradamente banal da capacidade de interagir com o próximo. Falta conteúdo pessoal -algo que eu quero dizer a alguém – e acaba-se importando de Power points melífluos e tediosos, filmes de WhatsApp embrulhados em canções de ninar, e ainda solicitam que enviem para todos os amigos. Misericórdia. Tenha amigos para isso. Na verdade, o buraco é mais fundo: as pessoas podem ter o que dizer, mas são incapazes de se exprimir, um analfabetismo preocupante da própria interioridade que recorre a emoticons, e outros produtos servidos nas prateleiras da internet, para ver se encaixam com a sua necessidade de transmitir algo: um pensamento, um desejo, um grunhido que seja….
Recebi de um amigo há algumas semanas -recebi por e-mail, claro, e o texto é um link que está na web- algo sobre se o Google nos estava tornando estúpidos.
Vale a pena ler o artigo… se o leitor for capaz. Porque lá se adverte que mesmo leitores vorazes estão perdendo a capacidade e o fôlego para leitura. O modo como a informação nos chega, formata não somente o conteúdo (quando existe) mas molda os hábitos do pensamento. Escritores, que sempre são os que mais leem, reconhecem que não conseguem enfrentar Guerra e Paz. E mesmo nos formatos eletrônico, os olhos surfam com rapidez, sem assimilar conteúdos.
Quer dizer, se isto acontece com quem tem intimidade profissional com o conteúdo -escritores, jornalistas, críticos- o que podemos esperar do resto da humanidade submetida à avalanche técnica, com absoluta subnutrição de ideias, e felizes porque conseguem ter milhares -milhões? – de amigos (?) curtindo -outro termo que ressoa como um estertor animalesco- o que eles manifestam espasmodicamente. E o pior é que os interessados -a juventude turbinada em tecnologia- mal desconfia desta carência tremenda. Surge um modelo novo de autismo, imbuídos no próprio mundo, isolados da realidade. Um mundo ….. da comunicação que isola e não permite comunicar-se como seres humanos!
Mas, a culpa não é deles. É dos velhos. “A juventude está perdida com todos esses celulares, com a internet, ninguém presta atenção na aula, nem à mesa, nem fala mais”. A condenação da tecnologia não resolve nada. Não é possível postular um retorno às cavernas, ou ao pombo correio, ou andar em jegue. O desafio é mesmo o conteúdo, e cabe aos velhos injetar a tecnologia moderna com experiência e sabedoria. Mostrar que tudo o que a modernidade nos oferece, pode ser magnífico quando existe substância, densidade, gosto, estética e até transpira humanidade.
La Corrispondenza. Um filme impactante, necessário, que obriga a pensar, sobretudo aos velhos. Um exemplo maravilhoso do que é possível fazer com a tecnologia quando há uma avalanche de conteúdo. Assim, sim, a comunicação tem sentido. E com música de Morricone, e um Jeremy Irons que destroça com sua presença qualquer mediocridade de rede social. Um colosso do conteúdo!
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