A Chegada: Uma apologia da Comunicação
(Arrival). Direção; Denis Villeneuve. Amy Adams, Jeremmy Renner, Forest Whitaker. 117 min. USA, 2016.
A primeira notícia pipocou no grupo de WhatsApp dos colegas da faculdade. Como em todos os grupos, fala-se de tudo, cada um coloca o que quer, nunca temos tempo de ler quase nada e, muito menos, de ver os vídeos que acabamos eliminando para não entupir o telefone. Mas, o tropismo pelo cinema, me fez reparar no chamado. Um filme interessante, que faz pensar, dizia. Ou algo assim. Alguém falou em alienígenas -que são, logicamente, os que chegam, e dão título ao filme. Mas a conversa derivou depois para linguística e os entendidos -ou aficionados, não sei ao certo- iniciaram palpites e opiniões. Até aí, alienígenas e linguística; confesso que o meu interesse era mínimo.
Nos dias decorrentes, tropecei com alguma outra opinião, a flexibilidade do tempo, a generosidade da protagonista em doar-se. Muita mistura para meu gosto. Fosse pouco, alguém solicitou no tal grupo a minha opinião. É o que dá comentar filmes; as pessoas te creditam, equivocadamente, como experto na sétima arte. Não havia mais como escapar. Sentei confortavelmente e apertei o play. O filme envolveu-me completamente. E me deixou pensando dias, semanas, até agora, que alinhavo estas linhas para ver se me livro dos pensamentos -escrever é o único modo de ordená-los e de entender-se a si mesmo- e da convocação que já atendo com imensa demora.
Não é um filme de alienígenas, embora circulem na tela. Nem de linguística, que também tem uma presença importante. Penso que nem mesmo do tempo flexível, como gangorra de dejá vu. O filme é uma tremenda apologia da comunicação. Ou por tabela, uma crítica à pobreza e carência dela nesta sociedade nossa, embora possa parecer o contrário.
Vivemos num mundo conectado sobre o qual temos controle. Passamos as horas trocando mensagens, interligados com o mundo em tempo real, sabemos de tudo e de todos. Mas não nos comunicamos e, consequentemente, não nos entendemos. Somos, mesmo, alienígenas que emitem grunhidos, nossos interlocutores fazem o próprio, e cada um toca a vida do melhor modo possível. Sem perder o controle porque, afinal, isso é o que interessa.
Denis Villeneuve, o diretor canadense que nos brinda este ensaio reflexivo sobre a comunicação -sobra a falta dela, insisto- confecciona um filme de beleza visual, sugestivo, intrigante. Faz pensar -não sei quanto durará essa atitude na maioria dos espectadores- o que já é uma luz no final do túnel. Como disse alguém: experimente uma nova sensação – Pense! Quem está disposto a pensar, terá que admitir que o controle aparente sobre a vida -a própria e a dos outros- não existe. Nem é um espaço blindado, porque pode ser invadido…pelo outro. Que não necessariamente tem de ser o inferno, no dizer de Sartre, mas certamente é uma alteridade que me desafia.
O diálogo que pensamos ter é uma ficção. Até escutamos, mas o nosso foco centra-se em colocar nossa opinião, sem uma abertura vital ao que nos chega do outro, e a ao modo como enxerga a vida e o mundo. Rebatemos a opinião, ou concordamos com um sorriso, mas rapidamente a arquivamos para ressaltar a nossa. Essa atitude faz com que, de fato, não escutemos até o final, embora ouvimos, mas como um murmúrio longínquo, as palavras que nos chegam. Tudo blindado para não ter de sair do conforto do meu posicionamento.
O Papa Francisco, um campeão indubitável da comunicação, aborda este tema com muita frequência. Coincidentemente, tropecei com um texto dele pouco depois de ter visto o filme, quando me encontrava em plena efervescência de reflexão. Dizia mais ou menos que conhecer outras pessoas e outras culturas nos faz sempre bem, nos faz crescer, e sublinhava a importância do diálogo que nos leva à maturidade. O diálogo -dizia- serve para encontrar-se com o outro, não para impugná-lo, o que requer uma atitude de mansidão, de acolhimento com paz, e a coragem de perguntar ao interlocutor, de coração aberto, dispostos a ouvir até o final.
Para isso é preciso sair da blindagem, tirar o escafandro como a protagonista, arriscar-se entrando na atmosfera do outro, onde podemos escutar algo que não nos agrade. O que é muito provável, porque o conhecimento próprio é virtude cada vez mais rara, e as advertências que nos chegam -e nos fazem vestir a carapuça, aliás feita sob medida- incomodam. É mais seguro permanecer no traje isolante, hoje magnificamente representado pelas redes sociais, e pelas inúmeras variações tecnológicas para simular que nos comunicamos. Ledo engano, um diálogo de surdos, daqueles surdos que dizem ser os piores: os que não querem ouvir. Deste modo, se alguém me incomoda com ameaças alienígenas, retiro-o da lista (ou me retiro eu mesmo e saio do grupo), bloqueio o contato, ou simplesmente, apago a tela do computador. Tudo menos enfrentar o outro desarmado, sem possibilidade de filtrar os incômodos. A imagem não é minha, parece-me recordar que Francisco também disse algo similar em alguma ocasião.
A chegada é uma chacoalhada que vomita a grande verdade dos nossos tempos. Não te entendo, não me comunico, porque no fundo não ligo a mínima para o que você tem a me dizer. E nesse feudo onde eu me escuto a mim mesmo -um curioso narcisismo da comunicação disfarçado com aplicativos e conectores sociais (sociais????) – estabeleço um verdadeiro inferno onde ninguém se entende. E fazemos conferencias e encontros mundiais através de organismos internacionais, para fazer de conta que trocamos experiências e opiniões sinceras, quando o jogo já está decidido a priori por cada um. Eu abrir mão das minhas prerrogativas e opiniões em função do bem comum? Mas o que ganho com isso? Aqui é cada um para si, e Deus para todos. Porque é preciso convocar até Deus para apoiar a minha moção que é intocável.
Susanna Tamaro, naquela obra encantadora Vá aonde seu coração mandar, invoca um provérbio índio para facilitar a compreensão do outro: ‘Antes de julgar uma pessoa, passe três luas usando seus sapatos’. E anota a seguir: “exteriormente, muitas vidas podem parecer erradas, irracionais, loucas. Enquanto nos ativermos ao exterior, será fácil interpretar mal as pessoas e nosso relacionamento com elas. Apenas penetrando-as, apenas caminhando três luas com seus sapatos, poderemos compreender suas motivações, seus sentimentos, o que as leva a agir de um jeito, e não de outro. A compreensão nasce da humildade, não do orgulho de saber”
Uma humildade da qual também fala Ortega quando adverte que para compreender o próximo é necessário reconstruir sua paisagem e seu mundo, e para isso o foco do olhar tem de se pautar pela pupila alheia. É preciso colocar-se em sintonia, acertar o tempo melódico ao ritmo do coração do outro. Deste modo, quando chama a nossa porta um estranho, uma ideia ou uma emoção com a qual não contávamos, temos de saber desprender-nos do próprio quintal vital ao qual estamos acostumados; é preciso abandonar a convicção de que não há outra realidade a não ser a que aparece diante dos nossos olhos. Para ser elemento de união e de humanidade, é preciso desconfiar dessa tendência que nos invade.
A Chegada é de fato um filme interessante. Tinha razão a mensagem postada no WhatsApp. Mas é muito mais do que isso. Uma provocação à reflexão, sem perder-se em alienígenas ou em linguísticas. Tudo para ser vivido no dia a dia, domesticamente. Comentou-me um amigo que no prédio dele -um por andar, belíssimo edifício- tem gente que quando nota que alguém vem no elevador, entra de novo no apartamento, para não se encontrar com o vizinho. O encontro pode trazer problemas; não há como desligar a tela com o vizinho na frente. Mas os problemas são café pequeno para as grandes alegrias de quem consegue tirar o escafandro, e contribuir para fazer um mundo melhor. Um mundo onde alguns se comuniquem, façam a diferença, e criem inveja -emulação é o termo, inveja sadia- para que outros saiam da blindagem e se abram aos demais. E como a intrépida protagonista, saberemos deslocar-nos no tempo -vale um elogio à magnífica posta em cena do tempo como protagonista- porque a comunicação e o diálogo conferem perspectivas de eternidade. Toda uma aventura que vale a pena.