Paul Kalanithi: “O último sopro de vida”
Paul Kalanithi: “O último sopro de vida”. (When Breath becomes air) Sextante. Rio de Janeiro, 2016. 167 pgs.
Um médico escrevendo sobre doenças e morte não é novidade. Aliás, cada vez mais são os médicos que se aventuram a escrever sobre este tema. Faço questão de centrar a temática, porque a escritura e a medicina sempre correram paralelas.
Há quem diga que os médicos escrevemos para compartilhar o universo que levamos dentro, fruto das experiências com nossos pacientes. Um mundo velado pelo sigilo profissional, que na escrita assume forma de ficção ou, pelo menos, nomes fictícios. Eu pessoalmente penso que escrevemos para nos entender melhor, para clarificar essa avalanche de vivências que carregamos, e poder apalpar a dimensão fascinante e ao mesmo tempo tremenda do nosso trabalho. Como diz Abraham Verghese -outro médico escritor- no prólogo da presente obra referindo-se ao autor, entender a feroz convicção da dimensão moral do seu trabalho.
Mas este livro é sim uma novidade. Porque o médico que escreve de doenças e de morte, o faz contemplando a própria morte que se aproxima. É, pois, um livro quase póstumo ou, se preferirmos, um testamento. Paul Kalanithi nos deixa um legado muito especial, porque este médico escritor tinha uma formação prévia em Literatura Inglesa, e um mestrado na área de filosofia da ciência. Quer dizer, além de ser um neurocirurgião de prestígio, possuía os recursos necessários para se exprimir com maravilhosa clareza.
E aqui vai a primeira reflexão. Todo médico tem vivencias que merecem um relato. Muitas, inúmeras. Mas nem todos conseguem descrever, talvez porque lhes falta esse recurso de expressão. É preciso aprender o idioma, para exprimir-se, e para entender o paciente. “Os livros se tornaram meus confidentes, com suas lentes me propiciando novas visões de mundo” -diz Kalanithi no seu relato. As humanidades, a literatura em particular, permitem entender a linguagem em que o paciente nos fala. A comunicação fica impedida quando se desconhece o idioma. E também não se ajuda ninguém, por mais boa vontade que se tenha. Recentemente tive a oportunidade de integrar uma banca de doutorado em medicina sobre narrativas médicas, onde a pesquisadora confirmava esta hipótese: a literatura, e as histórias dos pacientes nos permitem aprender o idioma com o qual nos comunicamos com as pessoas que solicitam nossa ajuda como médicos.
Apontado este contexto -um médico que conhece o idioma para se exprimir- as considerações do autor assumem uma melodia especial porque carregam a força do protagonismo. E nos brinda com ponderações utilíssimas para construir esse caminho de comunicação com os pacientes que estão confiados aos nossos cuidados. “Eu entendia bastante de dor nas costas (é um neurocirurgião falando) mas não sabia o que eles sentiam (…) Eu tinha olhado para ela como uma pessoa, não como um problema a ser resolvido”. Eis uma bela reflexão no meio de um trabalho extenuante, de 100 horas por semana. Mesmo assim, os médicos que encontram espaço para refletir, fazem toda a diferença: na vida dos pacientes, e na deles próprios. Colocar no sistema a culpa da desumanização -que sempre está precedida por abdicar de refletir o que temos entre as mãos- é fugir da responsabilidade como médicos.
A presença da própria morte ilumina todas as considerações que Kalanithi vai alinhavando. É como se fossem destacadas com um zoom de quem está navegando no mesmo barco, de alguém quem é parte comprometida no processo. “Antes de o meu câncer ser diagnosticado, eu sabia que um dia iria morrer, mas não sabia quando. Depois do diagnóstico, eu sabia que um dia iria morrer, e continuava sem saber quando. Só que agora eu tinha certeza de que o fim estava próximo. A consciência da morte é perturbadora. Mas não existe outra maneira de viver”.
Por isso, enfrenta com valentia o tema do qual muitos médicos, cada vez mais, fogem: a dor e a morte. Um curioso paradoxo em quem decidiu abraçar essa profissão. “Meu maior propósito não era salvar vidas -afinal todo mundo morre- mas orientar o paciente ou a família na compreensão da morte e da doença (..) O dever do médico não e evitar a morte do paciente ou devolvê-lo à sua vida anterior, mas toma-lo pelo braço e trabalhar até que ele consiga resistir, encarar e entender o sentido da própria existência (…) A vida e a identidade de nossos pacientes podem estar em nossas mãos, mas a morte sempre vence. Mesmo que você fosse perfeito, o mundo não é. O segredo é saber que as cartas estão embaralhadas, que você vai perder, que seu julgamento ou suas mãos vão falhar, e mesmo assim lutar pelos seus pacientes. Não é possível alcançar a perfeição, mas é possível continuar incessantemente lutando”.
Um modo elegante de fugir é colocar as estatísticas de por meio, delegar a responsabilidade, perder o foco daquele paciente que temos diante, para refugiar-se no coletivo. O autor condena essa atitude que considera indigna do médico: “Estatísticas são para centros de pesquisa, não para quartos de hospital. Esses médicos fajutos que dizem para o paciente: ‘Você só tem seis meses de vida’. Quem são eles para afirmar isso? (…). Aprofundar-se demais em estatísticas é como tentar saciar a sede com água salgada. A angústia de encarar a mortalidade não encontra remédio nas probabilidades. ”
O epílogo escrito pela esposa Lucy, já viúva do autor, é um bom resumo da atitude deste médico que soube escrever com a força de quem vivia o que pregava. “A decisão de Paul de não desviar os olhos da morte resume uma força que não celebramos o suficiente em nossa cultura avessa à ideia da mortalidade. Escrever este libro foi uma oportunidade para nos ensinar a encarar a morte com integridade”. É o impacto sempre único do exemplo. Uma força que perdura, educa e transforma.