Jonathan Swift: Viagens de Gulliver
Jonathan Swift: Viagens de Gulliver. Globo. Rio de Janeiro, 1987. 350 pgs.
A clássica obra de Jonathan Swift, protagonizou outra das nossas tertúlias literárias. As viagens e a ficção que rodeia as peripécias de Gulliver, surgiram, ao que tudo indica, como uma crítica social na prosa do escritor inglês. Que na verdade era irlandês, como muitas outras personagens famosas -desde Oscar Wilde até o Duque de Wellington- que nascidos na Ilha do trevo de S. Patrick, acabam creditando a fama para Inglaterra. Afinal, tudo seja pelo Reino Unido, pela Commonwealth.
Nestes tempos que vivemos de crítica a políticos e homens públicos, não deixa de ser divertido repassar as considerações que Swift coloca em boca dos seus personagens, que instruem a um Gulliver ingênuo sobre as surpresas que encerram, não as viagens e os povos, mas o ser humano. Valham algumas amostras de uma atualidade gritante: “A fraude é maior crime que o roubo, porque o cuidado e a vigilância podem preservar dos ladrões, mas a honestidade não tem defesa contra uma astúcia maior… Os processos sempre terminavam de acordo com a vontade dos juízes, de modo que não me confiei mais contra tão poderosos inimigos”.
A questão sempre é a mesma: a carência total de virtude moral do homem público. São esses os que desempenham um cargo sem nenhuma integridade, órfãos de atitudes exemplares, constituindo-se em permanente irradiação de mau exemplo. Mas parece que ignoramos tudo isto na hora de escolher os representantes e os líderes, tanto no século XVIII como na atualidade. “A míngua de virtudes morais está tão longe de poder suprir-se com dotes superiores do espírito que os cargos nunca poderão ser confiados a mais perigosas mãos do que às de pessoas assim qualificadas”.
As críticas atingem também a sociedade, os homens comuns, porque é daí que saem os homens públicos. A opinião popular do que se pensa -uma espécie de facebook da época- rege as atitudes, mesmo sendo ilógicas. “Enterram seus mortos com a cabeça para baixo porque passadas onze luas todos se levantarão outra vez. Confessam os eruditos a absurdidade da doutrina; a prática, todavia, se mantém, numa concessão ao vulgo”. Os defeitos físicos que Gulliver conseguia avistar na mulher gigante, porque distinguia os detalhes como se olhasse com microscópio: “isso me fez refletir sobre a linda pele de nossas damas inglesas, que nos parecem tão belas por serem do nosso tamanho e porque só lhes podemos ver os defeitos através de uma lente de aumento”. E o homem montanha “que carrega um instrumento (relógio) que deve ser um Deus porque raro fazia alguma coisa sem o consultar”
Pensadores e artistas -sempre representados metaforicamente por seres curiosos de países imaginários- entram também na dança. “Não há nada tão extravagante e irracional que algum filósofo não tenha sustentado como verdade”. E recomendações sugestivas para os parlamentares, cuja aplicação sem dúvidas renderia surpresas: “Os validos dos príncipes possuem memórias curtas e fracas. O melhor seria que após um senador ter apresentado sua opinião e arrazoado em sua defesa, deveria ser obrigado e votar contra, o que redundaria infalivelmente no bem público”. Acrescenta cargas de profundidade sobre o vazio de muitas vidas e anseios inúteis quando vendo gente quase imortal, que vive para sempre, “meu grande anseio de perpetuidade decresceu muitíssimo”. E afirma que bom seria “lançar impostos sobre o vício e a insensatez”.
Uma leitura divertida que faz pensar, porque o tema é sempre atual. E, como faz o cinema, que coloca em boca de crianças e de gente peculiar verdades tremendas (Forrest Gump, Rain Man, Muito além do Jardim), as personagens de Swift também dão recados contundentes que podemos aplicar perfeitamente às manchetes do jornal de hoje. Assim diz o governante de um dos países visitados a Gulliver após escutar os relatos da sociedade inglesa da época: “Meu amigo, fizeste o mais admirável panegírico do vosso pais. Provastes que a ignorância, a ociosidade e o vício são os ingredientes adequados à qualificação de um legislador; que as leis são melhor explicadas e aplicadas por aqueles cujo interesse e habilidade consistem em as perverter, confundir e iludir. (…). Não se exige uma única perfeição para que alguém atinja uma posição qualquer entre vós. Não posso senão concluir que a grande maioria dos vossos semelhantes é representada pela mais perniciosa raça de pequenos e odiosos insetos que a natureza já permitiu rastejassem sobre a superfície da Terra”.
Quando as manchetes do jornal são as mesmas do século XVIII já se vê que enfrentamos um problema crônico, e cabe suspeitar se existe realmente vontade política de resolvê-lo. As instituições são formadas por pessoas; e enquanto persistamos distraindo-nos em reformar as instituições sem propor uma reforma profunda que chegue até as entranhas das pessoas -o célebre fator humano, de que falava Graham Greene- as viagens de Gulliver terão leitura atual. São, ao menos, uma advertência da condição humana que como os caprichos femininos de que nos fala Swift, “não são limitados por nenhum clima ou nação, e são muito mais uniformes do que podemos supor”. Não só os caprichos femininos, mas a própria miséria humana, a que cada um de nós carrega. Essa não tem fronteiras geográficas ou temporais. Esse é o mundo que nos toca navegar. Descobrir Lilliput, encontrar-se com os Yahoos (curioso nome que hoje renderia outras considerações internautas) e descobrir, como adverte Guimarães Rosa, que “o sertão é dentro da gente”.