Um homem chamado Ove: a importância de um sorriso

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En man som heter Ove. Suécia. 2015. Diretor: Hannes Holm. Rolf Lassgård, Bahar Pars, Filip Berg, Ida Engvoll, Tobias Almborg, Klas Wiljergård, Chatarina Larsson. 116 min

Os filmes nórdicos são assim. Diretos, pontuais. Sem rodeios, sem enganchar-se em sentimentalismos latinos, sem entrelinhas. Tudo são linhas: claras, diretas ao ponto. Chegam frequentemente embrulhados numa produção sóbria, barata, sem grandes pretensões. A não ser, como digo, dar o recado. Este pequeno filme sueco é mais um exemplo. Um filme modesto, que resulta monumental no conteúdo sem guarnições. E a mensagem é a que consta no título: a importância de um sorriso.

Ove é um velho rabugento que não encontra motivo para continuar vivendo. É mais, quer desaparecer, mas as estratégias discretas para um suicídio sem barulho, não são fáceis. A buscada tragédia desemboca no cômico. Quer dizer, o drama se dilui no humor, como bem apontava Bergson naquele pequeno-grande ensaio sobre o riso que esvazia a tragédia com o quotidiano. Imaginem -dizia mais ou menos o filósofo francês- que Aquiles, o herói dos pés ligeiros, bocejasse ou se espreguiçasse antes do combate com Hector. Um desastre. O filho dos deuses aparece com toda a miséria limitante dos humanos.

Mas, que houve com o nosso Ove? Que aconteceu com este sujeito -nota-se logo que é um homem bom- para tornar-se antissocial, reclamar de Deus e o mundo, brigar com a própria sombra, enfim, apresentar-se como uma criatura insuportável? Por que há situações que conseguem espremer toneladas de azedume das pessoas que, por outro lado, são boa gente? Eis uma questão que contemplamos diariamente, na vida dos outros …. e na nossa própria. O que faz com que tiremos do fundo do poço nossa pior versão?

Postos a aventurar uma resposta, acode à memória aquele livro encantador de outro pensador francês, Gustave Thibon, que reúne artigos variados num título que somente conheço em espanhol: Una mirada cega hacia la luz. A tristeza é justamente a falta de luz, o que nos cega, e nos deixa -nunca melhor dito- dando paus de cego, brigando com o universo inteiro, curtindo uma sensação de incompreensão vital, de vítima global. Diz Thibon, citando Sócrates, que para o homem sacudido pela tempestade da tristeza não é nenhum crime se contradizer. Não se pode recriminar a alguém que é infeliz que seja ilógico, porque a lógica funciona muito bem na teoria, mas falha lamentavelmente no homem concreto, essa mistura contraditória de finito e infinito, e sobretudo quando esse homem padece desgraças, que é a contradição vivida pessoalmente, o absurdo personalizado.

O nosso filme sueco não pretende mergulhar nestas profundidades filosóficas porque -já o disse- é simples, direto, sem filigranas. Mas a associação de ideias -o que lemos, pensamos, e vivemos- brota na mente e impulsiona a mão que escreve, ao tempo que tentamos compreender. Isso é afinal o saldo da cultura: ideias e pensamentos que se entrelaçam e costuram as diversas situações vitais, iluminando-as com novas perspectivas.

A tristeza cega e mata. Não por via de suicídio, como o nosso protagonista pretende, mas aos poucos. O que foi que aconteceu com o Ove? Sente falta do sorriso, da luz, que anos atrás o tirou da timidez e de uma vida anódina. Teve uma infância dura. Perdeu a mãe ainda criança, depois o pai. Mas conseguiu se virar de um modo ou outro até que topou com o sorriso. Ai tudo mudou.

Não ganhou na lotaria, nem foi agraciado com riquezas ou com tentadoras perspectivas profissionais. Ganhou um sorriso que iluminou sua vida, na hora em que soube colher delicadamente a mão que se lhe oferecia. Nem a mão, apenas um dedo, mas um dedo muito especial. Essa é uma das cenas encantadoras do filme que é preciso contemplar, e onde qualquer comentário resultaria pobre e desbotado.

O sorriso tem um nome: Sonja. Aliás, ela é tudo sorriso. Creio recordar que não tem outro modo de aparecer no filme a não ser sorrindo. Ove desabrocha nas suas potencialidades, transforma-se, insere-se no mundo, descobre as pessoas que tem em volta, sai do ostracismo, encontra la joie de vivre. E encontra sua missão na vida.

Novamente Thibon nos adverte de como as emoções influenciam no atuar ético: “Somos mais fieis não quando pensamos melhor, mas quando sentimos mais profundamente. O espiritual tem mais afinidades com o lado sensível do que com o intelectual, e se acopla mais facilmente numa emoção corporal do que numa opinião puramente racional”. Eis uma afirmação de comprovação diária: a tristeza conduz à infidelidade; e para conquistar alguém para o bem é preciso sintonizar com suas emoções, e não apenas saturá-lo de raciocínios. Quer dizer, melhor do que ler o código de conduta, é entusiasmar as pessoas com o bem agir. Algo que outro francês (parece que todos eles vêm à mente a propósito deste filme sobre o sorriso), Saint Exupéry, dizia em forma poética: “Se queres que os homens construam barcos, não lhes ensines a cortar árvores. Faz eles sonhar com a grandeza do oceano”.

Lembrei de um pensamento que li há muito tempo, e que quando recordo, me faz pensar e me cutuca, exigindo responsabilidade. Diz mais ou menos: “não esqueças que os homens precisamos à nossa volta de rostos sorridentes”. É desse modo, aparentemente simples, mas de feitio por vezes heroico, como tiramos o melhor das pessoas, e de nós mesmos. Nossos semelhantes têm matéria e possibilidades que estão à espera de um sorriso para germinar. O sorriso é como o gatilho que permite esse florescimento, a faísca que dá início à fogueira, calor de acolhimento e de aconchego.

Mas, sabemos, não é fácil sorrir sempre. E, por vezes, nem percebemos o quanto estamos perdendo por não saber sorrir a tempo. Lembro de uma viagem por conta de um congresso, com fotos das apresentações e dos grupos acadêmicos. Quase no final alguém tirou uma foto onde eu aparecia sorrindo…. e o comentaram como uma conquista. Caiu a ficha, percebi a raridade de me surpreender sorrindo nas fotos. E na vida? -pensei. Daí em diante, nas fotos e na vida, o esforço é grande, mas reconheço que não é simples, coisa à toa. Um verdadeiro tour de force.

Por que essa dificuldade? O sorriso não é instintivo, como também não o é o agradecer. Mas quando há esforço e se torna um hábito, o poder transformador e enorme. Sim, sobram motivos para dificultar o sorriso. Talvez porque nos levamos muito a sério e tudo se apresenta com um excessivo peso de transcendência. Falta-nos o riso de Bergson para esvaziar a tragédia, e saber que “tudo isso que nos preocupa cabe num sorriso” (outro pensamento que recordei agora mesmo).

Mas e a vida, e a violência, e as agressões que continuamente recebemos dos outros? Como fica tudo isso? Topei o outro dia com uma citação de um escritor do século IV que me chamou a atenção e anotei um resumo do seu raciocínio. Vem a calhar aqui: “Não cometamos o erro de pensar que o nosso mau caráter, depende da forma de ser de quem está à nossa volta. A paz do nosso espírito não depende do bom caráter e da benevolência dos outros, algo que está fora do nosso controle. A tranquilidade do nosso coração depende de nós mesmos. O poder de superar nosso mau caráter não depende da perfeição alheia, mas da nossa virtude”

Simples e direto como o filme sueco. A felicidade depende de nós, e não das circunstâncias ótimas de temperatura e pressão. Mas, afinal, isto é um raciocínio que, como já comentado, nem sempre é fácil de incorporar. Mas com um sorriso -enzima poderosa- somos capazes de entender e facilitar a vida dos outros. Um sorriso como o de Sonja. Um sorriso como aquele que Ove resgata quando conta suas histórias, e aquilo que leva no coração. Porque o sorriso traz a felicidade e ancora-se na memória afetiva. Lembrar dos sorrisos na vida, é de algum modo voltar a vivenciar essas alegrias. Precisamos sim, de sorrisos à nossa volta. E de relembrar todos os sorrisos que foram nutrindo-nos na vida, nos resgataram das tragédias inúteis, e alavancaram os nossos desejos de fazer um mundo melhor à nossa volta.

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