Alphonse Daudet: “Tartarín de Tarascon”

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Alphonse Daudet: “Tartarín de Tarascon”. Saraiva. Editores. 1959. 165 pgs.

A tertúlia literária mensal levou-nos desta vez até um clássico francês: as aventuras de uma personagem singular, Tartarín de Tarascon. E para minha surpresa, o livro agradou muitíssimo. Digo surpresa porque quando li -já conhecendo a história-  tive a impressão de cândida ingenuidade, de um relato sem pretensões onde os recados são dados de modo simples, sem requintes. Depois, ouvindo os comentários que circularam na tertúlia, lembrei que os clássicos têm essa prerrogativa: fazer-se claros, ou melhor, tornar a vida transparente. A da personagem da história e, com ela, a própria vida do leitor que é compelido a refletir.

O corte clássico que Daudet imprime a sua personagem é advertido logo no início: “Havia em nosso herói duas naturezas muito distintas uma da outra. Tartarín levava em si a alma de D. Quixote, os mesmos ímpetos cavalheirescos, o mesmo ideal heroico, a mesma loucura do romanesco e do grandioso, mas que infelizmente, não tinha o corpo de célebre fidalgo, ossudo e magro, aquele corpo que era um simples pretexto, e sobre o qual a vida material não possuía domínio….O corpo de Tartarín era um corpo bonachão, muito gordo, muito pesado, muito choramingas…..o corpo barrigudo e curto sobre patas, do imortal Sancho Pança”. Uma curiosa mistura que, de algum modo, é também a nossa, a dos simples mortais: com capacidade de entusiasmar-nos por ideais grandes, e apalpando as limitações físicas, os percalços da idade que avança, as misérias que arrasta nossa condição mortal. Parece que a verdadeira ciência é saber adaptar os projetos ao realismo do dia a dia, sem deixar que aqueles esmoreçam por conta dos entraves do quotidiano. Como fazer isso, é a questão que presidiu nossos comentários.

Não é difícil sintonizar com o nosso herói, que se sente insatisfeito no seu hábitat, e busca aventuras maiores. O desgaste do quotidiano é enfastiante. “Como caçador de bonés, Tartarín de Tarascon não tinha igual. Todos os domingos pela manhã partia ele com um boné novo, e todos os domingos, à noitinha, voltava com um trapo. Na pequena casa do baobá, os celeiros estavam cheios daqueles gloriosos troféus (…)para uma natureza heroica tal como a sua, para uma alma aventurosa e louca que sonhava apenas com batalhas corridas pelos pampas, grandes caçadas, areia de deserto furacões e ciclones, fazer todos os domingos uma batida ao boné e o resto do tempo distribuir justiça …. não eram coisas suficientes. Pobre grande homem! Com a continuação, aquilo poderia chegar a mata-lo de definhamento progressivo”.

O quintal do vizinho sempre é melhor do que o nosso. Lá sim é que conseguiremos acontecer, sair desta rotina enfadonha. E,  para Tartarín, esse quintal é a Africa, e a caçada ao leão, com a que tanto sonha, da qual fala, e acaba acreditando que não há outro destino a não ser esse. A empatia para com essa personagem foi num crescendo durante a nossa tertúlia, porque também nós apalpamos o incômodo da rotina, o cinza do dia a dia, o pensar que tudo está sempre do mesmo jeito, e não há forma de contribuir com novidades. Resta, então, embarcar com Tartarín e ir buscar aventuras.

A leitura pausada e amenas dessas aventuras -onde nada é como se pensava, e o quintal do vizinho, nem é quintal, nem tem vizinho- rende surpresas. O leão não aparece, por maiores esforços que Tartarín faz por encontra-lo. Porque uma vez convencido -contra qualquer evidência racional- não há quem lhe tire a ideia da cabeça. “A proximidade do leão e esta gente louca, plantando alcachofras nas proximidades dele….. porque enfim, eu não sonhei. Os leões vêm até aqui”.  Decepções com o rei da selva que não faz ato de presença, e com as personagens que distam muito de serem o que o herói considera. Decepções com ele mesmo que sente “vai desmoralizar a França” quando passa mal.

A volta para o seu território no sul da França, é a recuperação do realismo, ou melhor, o resgate de um novo olhar para aquela rotina aborrecida que agora assume outras perspectivas. Carrega por souvenir um camelo desgastado para lembrar-lhe que os sonhos de outros quintais não compensam. “Leva-me -diz o camelo com seu olhar triste- leva-me no barco, longe, bem longe dessa Arábia de papelão pintado, deste Oriente ridículo, cheio de locomotivas e de diligências, onde, dromedário desclassificado, não sei mais o que será de mim”

Assim é também a nossa vida, salpicada vez por outra de sonhos que nos incitam a escapar do quotidiano, buscando a novidade como fuga do trivial comum, do batente diário. Os comentários que encerravam nossa tertúlia sintonizaram com a advertência que Daudet anota no final das aventuras tartarinescas: “No sul da França, todos são um pouco Tartarín, todos são bovaristas, que sonham em ser coisa muito diferente do que na realidade são e creem nessa imagem ideal de si mesmo”. A imagem do habitante dessa região -que “não é mentiroso, mas simplesmente se engana”, como diz o escritor- não é exclusiva do homem meridional francês: é a própria condição humana, a de todos nós. Enquanto mentimos, ainda resguardamos uma verdade que procurarmos ocultar; mas quando nos enganamos -com subterfúgios variados e curiosos- perdemos o rumo, a verdade se esvai, desaparece o gabarito referencial. Uma situação deplorável que contemplamos diariamente e que há quem queira sanar com cursos de autoajuda. Melhor seria ler os clássicos para recuperar o realismo, a simplicidade, o brilho da verdade iluminando o próprio quintal.

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