Uma razão para viver: O carinho criativo.
(Breathe) Diretor: Andy Serkis. Andrew Garfield, Claire Foy, Ed Speleers, Miranda Raison, Hugh Bonneville, Dean-Charles Chapman, Roger Ashton-Griffiths, James Wilby, Camilla Rutherford. UK. 2017. 117 min.
Pode ser um preconceito, talvez experiência, ou muitas horas de voo; mas confesso que é algo do qual dificilmente consigo prescindir: bastam os primeiros dez minutos de um filme para saber se vale a pena investir o resto de tempo assistindo, ou melhor mudar de opção. Este é claramente um dos filmes de diagnóstico válido em dez minutos, ou talvez menos. Embora -tudo deve ser dito- quando sentei para assistir a fita logo percebi que é preciso despojar-se de um viés, em forma de lembranças cinematográficas. É necessário convencer-se de que o protagonista, Andrew Garfield, não é o soldado objetor de consciência de Até o Último Homem. E, mais difícil ainda, abrir mão da Rainha Elizabeth II em The Crown, quando Claire Foy aparece enchendo a tela. A dupla toma conta do celuloide e deixam o resto dos atores em posição de coadjuvantes: não apenas pela história, que é um fabuloso mano-a-mano de ambos, mas pela presença contundente. Expressividade, medida precisa, uma naturalidade tão enorme como convincente; enfim, um filme de envergadura.
O argumento se atém a uma história real, como também acontecia nas produções citadas, de cujos fantasmas -enormes!- temos de nos livrar para prestar atenção ao que aqui se relata. Longe da II Guerra Mundial, e dos protocolos de Buckingham, desenha-se a história de Robin Cavendish: um aristocrata britânico que casa com uma encantadora Diana Blacker. Viajam para África, Diana engravida, e Robin sofre um surto de poliomielite que o paralisa, impedindo-o de respirar espontaneamente. Ele quer morrer, não ser uma carga para a família. Mas o amor é criativo, e aqui está o nervo do filme, uma história de amor e superação.
A história se arrasta por quase quatro décadas, entre respiradores convencionais de hospitais, inovações domésticas, e inventos originais que permitem autonomia para um ser humano que tem de viver atrelado a uma máquina. Seria uma avançada notável do que hoje chamaríamos home care e cuidados de pacientes crônicos, sem a sofisticação dos dias atuais, mas com a dedicação exemplar da família, quer dizer, da esposa que surge como um monumento no meio desta belíssima história. Não apenas de dedicação de tempo e de cuidados de saúde mas de um manancial de continuo bom humor, apoio à iniciativa, e vontade de viver. Diana é, mais que nada, a verdadeira razão para viver, o respirador da alma de Robin que adoeceu com 28 anos, e vem falecer com 64.
“I don’t want just to survive. I want to truly live” -diz Robin num congresso para pacientes deficientes em Alemanha na década de 70. Um congresso onde o único deficiente é ele, falando para uma plateia admirada e perplexa. “Eu queria morrer, mas minha mulher não me deixou. Quis que eu visse meu filho crescer. E aqui estou para que vocês também liberem seus pacientes das cárceres hospitalares e lhes deixem viver, com risco de morrer, como eu assumo esse risco todo dia”. Não se trata de apenas sobreviver, mas de disfrutar de vida na medida das nossas possibilidades.
O filho Jonathan cresceu; ele é o produtor deste filme que dedica à mãe, Diana, e ao pai que escolheu viver para ver ele adulto. Não sei se por isso, ou por gosto do diretor (ou quem sabe por imposição de ambos) recheia esta história de superação com cenas antológicas de amor que tocam pela delicadeza. Os diálogos de Diana e Robin, onde tudo está nas palavras, ou melhor, nos olhares e sorrisos. Nos silêncios. E nas tomadas no Quênia, com a lua no fundo, e Bing Crosby cantando True Love. Para os que amamos o cinema o impacto é enorme, porque o duo da canção é com Grace Kelly, em Alta Sociedade, que seria seu último filme antes de converter-se em princesa de Mônaco. Uma canção emblemática de Cole Porter que canta sobre um anjo de guarda que nós dois temos no céu, e que nada tem a fazer a não ser nos dar amor verdadeiro, true love! Um luxo para os olhos …..e para o coração.
Robin Cavendish não era um homem religioso. Mas li em algum lugar que, paradoxalmente, alguém que era ateu, fez com que muitos outros se aproximassem de Deus. Vale ter isso em mente quando se filtre o filme através dos critérios da bioética, dos cuidados paliativos, do suicídio assistido e de toda essa variante que gravita em torno a pacientes crónicos, terminais, embora nunca sabemos quando sua terminalidade se efetivará.
Eu pessoalmente prefiro ficar com a história e não com o case bioético. Uma história de amor criativo, de superação, de saber fazer limonada do limão…..que acaba calmando a sede de uma multidão que estava confinada no desespero, aguardando a morte em desamparo. Uma demonstração prática de como o carinho consegue superar deficiências técnicas, e cutuca a ciência em busca de soluções ao serviço dos necessitados. Um golpe desafiante na pesquisa acadêmica, fechada e asséptica, cada vez mais divorciada das necessidades dos pacientes, divertindo-se num playground onde os protagonistas são os cientistas, sendo os enfermos números ou, na melhor das hipóteses, meros coadjuvantes.
Veio à minha mente uma história que relatei inúmeras vezes. Foi há mais de uma década, durante um congresso em Florença. O título do evento era sugestivo: como construir uma ponte entre a técnica e o humanismo médico. Nada melhor do que a cidade do Renascimento para abordar esta reflexão.
Nos dias em Florença, quando visitava Ponte Vecchio -emblemático, sobre o rio Arno- me explicaram (e assim constatei) que a ponte na verdade, era dupla: a parte inferior para o povo, e a superior, fechada e protegida, para os Médicis, para a nobreza. Afinal, que ponte queremos construir? Uma ponte asséptica, segura, separada dos pacientes e dos estudantes? Uma ponte que não nos comprometa nem nos complique a vida? Lembro que a conclusão que anotei na minha apresentação na última linha desse diapositivo sugeria que a única ponte possível era na nossa alma: dai nasce a atitude que consegue unir a ciência com o cuidado atento do ser humano!
O sofrimento faz parte da vida. As doenças chegam sem avisar, mesmo com a prevenção que hoje os médicos promovemos. E nesse momento, o enfermo precisa de assistência técnica moderna, sem dúvida (hoje se curam doenças que há 40 anos quando me formei eram fatais). Mas precisa, também, de esperança; de um olhar que lhe de perspectiva de vida, razão para enfrentar a enfermidade com serenidade. Não adianta buscar esse recurso na tecnologia nem nos medicamentos. É preciso tirá-lo do fundo da alma de cada um que está envolvido nos cuidados, construir a ponte verdadeira -sofrida, comprometida, arriscada- nos cuidados modernos e humanistas. Esse é o respirador que mantém viva a alma do paciente. Esse é o amor verdadeiro que se torna criativo. Como o guardian angel on high with nothing to do.……a não ser inspirar-nos no cuidado e no afeto pelos que sofrem. Um filme superior, um roteiro de exame de consciência, um projeto de pontes para a alma.